Uma Cidade Pacata – O Dia em que o Pesadelo Começou
Capítulo 61: Medo
— Puta merda, bicho! — Indignado, Mark mostrou os dentes para a janela. — Eu vou mandar que fez essa merda para a casa do cacete…!
— Como nós fomos tontos…! Hahaha! — Lira, por outro, parecia entregar mais de si para a insanidade. — São tantas… Tantas…!
No meio do caos de gritos crescentes de desespero, a consciência de Ryan se dividia entre o desejo de ir ajudar aqueles no andar de baixo, a vontade de olhar o movimento sobrenatural do lado de fora e a urgência de socar o rosto de Lira como um computador velho e travado, para que voltasse a pensar apropriadamente.
Os zumbidos aumentavam de volume, proporcionalmente à escala em que a luz desaparecia das janelas e a vista externa se via encoberta pela enorme massa estranhamente organizada de pequenas criaturinhas monocromáticas.
— Eu nunca vi tanta borboleta na minha vida…! — O mais atlético do trio anunciou o óbvio. — Mas de onde caralhos veio esse monte todo…?!
Levou poucos segundos para que o grupo enorme de insetos cobrisse tudo. Com isso, Ryan, o mais próximo da porta e, por consequência, do disjuntor, não perdeu tempo em acertar as luzes e ligá-las para proporcionar o mínimo de visão.
— Ryan, seu babaca…! Isso só vai chamar essas coisas aqui para dentro…! Desliga essa merda!
— Não, Mark… — Sua voz saiu calma, estranhamente focada no enxame. — Elas não vão… Até porque já estão fazendo isso mesmo sem a luz…!
Os clamores do lado de fora se agravaram, juntos de uma intensa explosão e sentiram o chão tremer, o que apenas serviu para ampliar a noção de urgência quanto à situação terrível e não antecipável.
— Droga…! Tem alguma coisa muito mais séria rolando lá embaixo…! Qual é a intenção desses merdas?!
Três grandes batidas na mesa de madeira usada pelos professores ecoaram. Por todos os lados, entre os vários barulhos dos mais diferentes tipos, somados em uma cacofonia, um soou mais alto.
— Eles pegaram a gente…! — Lira exclamou alto, sem qualquer preocupação com estar sendo escutada. — Eles querem que ajamos…!
Entre os dois, Ryan foi o mais afetado pela revelação. As memórias trazidas de seu confronto com o Perfurador de Elderlog voltavam a todo vapor, trazendo os detalhes perdidos nos pontos mais escuros de suas lembranças da ocasião.
“Ele…! Ele disse que já tinha notificado a tal de Samantha sobre a minha existência…! Sejam lá quem forem, eles todos sabem que eu existo e que estou junto com esses dois nessa…!”
Isso bastou para envolvê-lo irremediavelmente na série de eventos. Não foi um ataque planejado apenas para os dois, mas também para eles.
E na ocasião de Lira estar certa, uma resposta se encaixava sem faltas.
— Eles querem uma exibição?! Mas que merda é que tão pensando? Que a gente é um bando de super-heróis?!
Murmurou por baixo, mas isso não impediu o raciocínio de ser captado.
— Ah, mas como eu não pensei nisso antes…? — A asiática negou, sorrindo. — E eu aqui pensando que ia ser um ataque organizado, uma coisa dirigida especialmente a nós… Eu imaginei que deixariam ao menos um sinal coerente… Parece que eu subestimei a capacidade de quem quer que sejam esses bastardos de se organizarem…
Sem diretamente responder sua pergunta, a Suzuki saltou de sua mesa, em direção à mochila. Dali, Ryan notou seus dedos tremerem e as mãos transpirarem.
Em seu desespero pessoal, se via muito mais fora de si, longe da frieza tão apreciada e requerida, tão marcante em sua figura.
— Parece que estão nos forçando a tomar as coisas em nossas próprias mãos aqui… — Cada palavra saía incerta, perdida. — Eles querem que nos envolvamos de qualquer forma… Querem que apareçamos bem diante dos olhos públicos…
O branco de seus dentes disputava espaço com a loucura de seus olhos rosados e o suor a escorrer da testa quando agarrou a pistola carregada de seis balas.
— Nos querem salvadores… — sussurrou, sua voz a falhar.
As seis balas a mais roubaram o calor de sua palma, postas em seu bolso sem calma ou carinho.
— Mark… Ryan Savoia… — Os chamou, falando para o metal. — Espero que estejam preparados para a possibilidade do que vai se seguir adiante…
Secou sua testa com a manga do casaco de cor bege e umidificou os lábios com a ponta da língua, cada gesto tornando mais clara sua tensão e evidenciando a vontade de ter mais tempo.
— Correremos sérios riscos de sermos gravados ou de termos nossas identidades vazadas. Em todo caso, não hesitem em lidar com quem tiverem de lidar para impedir que isso aconteça. Não podemos correr o menor risco.
O barulho longínquo de vidraças reduzidas ao nada de infinitos fragmentos os alcançou.
— Fugir não é uma opção. O que quer que tenham feito… Eles fizeram para causar a maior quantidade de caos possível ao mesmo tempo que impedem qualquer escape das dependências da construção… Ouvem isso? Gritos aqui dentro… Mas nada do lado de fora.
Seus olhos brilharam, sentindo a massiva chegada de algo e segundos depois, alguns estudantes passaram correndo, seguidos por uma grande massa branca de milhares de componentes.
— Estão vindo.
Dito e feito e a loucura se manifestou, encarnada em exército vermelho.
— Olhem isso…!
Formigas carpinteiras, entrando pelas mínimas brechas da porta, instalações elétricas ou qualquer outro caminho, se acumulando e avançando, cobrindo cadeiras, mochilas e mesas em questão de segundos.
Organizadas, avançavam velozmente, sob a forma de uma massa compacta de matéria viva, tomando chão e paredes.
— A gente tem que sair para um local aberto…! Não acho que elas vão conseguir nos matar se formos rápidos, mas quem sabe o perigo que podem fazer?!
— Não, Mark… — outra vez, Ryan se opôs. — Com esse número, pisar no meio dessa colônia é pedir para morrer…!
— Ah, é?! Não me diga…! — O satirizou. — Alguma ideia brilhante então, gênio?!
Ele não tinha qualquer sugestão e mesmo que tivesse, outra pessoa falaria primeiro.
— Ele pode não ter, mas eu tenho…!
Lira apontou sua pistola para a porta, reforçando o agarro instável com sua canhota, uma única gota de suor caindo de seu nariz.
PAH!
No contato desta com o solo, o estampido se misturou ao caos fervente, adicionando a ele.
A fechadura foi danificada, mas este foi apenas um passo em sua libertação.
— Sua vez, Mark! Acerta a porta com uma cadeira! Ryan Savoia… Faça alguma coisa de útil…!
— Pode deixar na mão, patroa!
O rapaz de pele pálida girou todo o corpo, agarrando a primeira cadeira que viu e, motivado pelo comentário, acertou a porta, a destravando.
— Boa…! — comemorou exasperadamente. — Agora é contigo, Ryan. Ela não deu trabalho só para mim! Deixa de ser preguiçoso!
Muito menos exibido que seu predecessor, o Savoia moeu as palavras não ditas em seus dentes cerrados, tomando para si uma mesa à sua direita.
“Eu não sei porque ainda me dou o trabalho…!”
A porta aberta simbolizava a possibilidade de saída e, ao mesmo tempo, a de entrada para as criaturas exteriores e, com o caminho lotado de soldados e drones, um passo significaria uma morte dolorosa.
— Eu vou limpar o caminho.
Aprontou a mesa contra o chão e a chutou, rasteira, em linha reta, criando um caminho, pintado com o excruciante som do esmagamento de milhares de exoesqueletos.
— Vamos sair…! E não se atrevam a parar de correr!
Bravamente, Lira foi a primeira a tomar uma iniciativa. Sem calcular seu caminho, preocupou-se com mover suas pernas e continuar seguindo em frente, cobrindo a metade inferior do rosto com o cotovelo.
— Bora logo então… Acabar com essa palhaçada…! — Mark a seguiu, esboçando igual coragem.
Ryan não teve escolha senão seguí-los e, enquanto não se sentia particularmente corajoso, seu cérebro era o que mais trabalhava entre os três, maquiando teorias, se balanceando entre perder-se em pensamentos e reagir à realidade.
“Quem tá controlando todos esses insetos?”
Seria essa a habilidade de Phoebe Martinez? Estaria ela agindo contra toda a escola em algum tipo de ato para a vingança? Àquela altura, já não sabia o que pensar.
— Merda…! — A exclamação de Mark destruiu seu trem de pensamentos, arrastando-o de volta para o mundo real. — Tem um oceano dessas formigas aqui fora… E as borboletas tão deixando complicado de se orientar…!
— Elas não estão atacando aleatoriamente… Estão propositalmente buscando qualquer alvo que possam atingir…! — Lira o respondeu, alerta. — Mark…! O extintor de incêndio… Vai ser a nossa única saída! A gente vai ter que congelar essas coisas!
O lado de fora configurava uma cena apocalíptica do mais horrível filme de ficção científica e em cada canto, estudantes corriam, expulsando quantidades copiosas de formigas de suas peles e roupas.
Alguns já sangravam por tantas lugares que não tinham como apontar de onde vinham as dores ou onde eram mais intensas, pisoteando o chão para pouco sucesso. Enquanto isso, o enxame de pequenas borboletas e o som de suas asas os tiravam de orientação, bloqueando luzes e janelas.
Um cenário típico de uma praga mítica.
“Eu também tenho de fazer alguma coisa…!”
Não aceitaria sua posição como um mero peso morto. Se nem mesmo Lira tinha ordens além de uma corrida ao improviso, por que ele deveria obedecê-la?
— Ryan…! — Mark o chamou, ao passo que rompia a trava de segurança do extintor de CO2. — Mas para onde caralhos tu pensa que vai, seu filho da puta?!
Ignorava as várias picadas a escalarem suas pernas, escolhendo o caminho à esquerda do anteriormente pensado, rumo às escadas que o levariam ao andar inferior.
— Eu vou verificar a situação lá embaixo, e vocês não podem me impedir.
— Tá ficando maluco, porra?! Tu vai ser devorado, oh, cérebro de Einstein…!
Pressionar o gatilho do extintor liberou uma gélida nuvem asfixiante. Prontamente, Mark a mirou para todos os lados ao mesmo tempo, sem um alvo determinado.
— Ryan Savoia…! Você não se atreva a fazer isso…! — Lira rosnou em fúria, expulsando várias formigas que escalavam por suas roupas. — Não pode estragar tudo…! Você precisa de nós…!
Não houve resposta e com a espessa névoa artificial cobrindo todo o caminho, sua visão foi restrita.
“Mas que porcaria…! Aquele merdinha!”
A propriedade do CO2 de expulsar as moléculas de oxigênio do ar pesou depressa em seus pulmões. Para evitar um desmaio, decidiu não mais falar.
“Sem nós, ele vai acabar morrendo…!”
Ainda pensando no gesto inconsequente do Savoia, focou em sua primeira necessidade: sair dali, para uma zona com mais ar fresco.
“Os insetos vão morrer depressa sem o oxigênio e com o frio do jato, mas… Onde o Mark foi?”
Não ouvia mais o som da liberação do gás e ele não dava quaisquer sinais de estar próximo.
“Mark… Não me diga que você também resolveu se separar de mim…!”
Ativou sua habilidade e o local, cheio de fumaça pálida, se encheu de róseo. Olhava por todos os lados, contudo, não via coisa alguma.
“A escola toda tá em pânico… Tá formando uma massa grande demais para conseguir enxergar qualquer outra coisa…!”
Por onde olhasse, percebia na pele o frio grudento do medo intenso e compartilhado.
“Isso… Isso é demais… É demais para mim!”
A carga energética detectada superava qualquer parâmetro anterior, culminando em uma excruciante dor de cabeça.
“Minha cabeça…!”
Os nervos dançavam e pulsavam, rendendo-a inútil e o acúmulo de pressão expressou-se nas veias em sua testa.
“Mark…! Onde você se meteu?!”
Seus pensamentos se resumiam a ele — mais especificamente, em seu medo de perdê-lo — e por mais que tentasse focar, a enxurrada de acinzentado frio jamais permitia.
“Mark…!”
Escutou um eco metálico, no sentido oposto ao tomado por Ryan. Sem mais delongas, navegou o mais depressa quanto suas pernas repletas de mordidas permitiam, esmagando dezenas de formigas com cada passo.
“Mark…!”
Como uma criança assombrada pelo tão primitivo medo da escuridão, engatinhou para além da parede de fumaça, se deparando com algo muito pior do que jamais imaginaria.
— Eu não acredito nisso…
A massa de insetos envolta no extintor de incêndio pulsava como um único organismo de proporções gigantescas, não mais feita somente de coisinhas inofensivas.
Agora, o amontoado podia atacar de verdade.
— Mark…? Mark, por favor… Para com essa brincadeira…!
Os reforços haviam chegado — baratas, abelhas, vespas, cupins, besouros, centopéias, aranhas e até mesmo as inocentes libélulas —, todos se uniam aos já presentes, em uma coisa só.
A estrutura amorfa crescia diante de seus olhos, adquirindo um tamanho titânico. Do chão ao teto, as pragas se acumulavam em um comportamento nada natural, consumindo tudo ao redor.
A explosão de infinitos barulhos se somava à confusão interna de sequer tê-lo visto sumir. Paralisada, pensamentos corriam a mil, incertos do que fazer.
— Mark…
Ele havia sido levado pela onda.
— Mark… Não me deixa aqui…
Ele a deixou ali, sozinha.
— Mark… Por favor… Isso não tem graça…
Abandonada à própria sorte no pior momento possível, de cara com o pior desafio de sua existência.
— Mark!
Ele sempre esteve lá quando ela precisou. Podia ser inconveniente ou incerto, porém, nunca a deixaria na mão.
— Ah… Não…
A massa biológica não tinha outro alvo, suas centenas de milhares de olhos, mirando em foco único.
— MARK! NÃO BRINCA COMIGO DESSE JEITO…!
Perdida, apontou sua arma na esperança de algo acontecer e disparou dois cartuchos ao vento.
— Mark… Não me abandona…
Um esforço inútil. Agora, com três tiros a menos e pura agonia, se viu sozinha contra um inimigo que seus orgulho e atitude não podiam vencer.