Uma Cidade Pacata – Nova cidade, Nova vida
Capítulo 27: Desgostos do Passado
Sua mão tocou na maçaneta da porta deixada entreaberta e em um movimento acelerado, empurrou e entrou na sala de aula vazia.
Por um segundo, silêncio absoluto, para então...
— PORCARIA...! — sentiu em seu rosto a sensação de sofrer várias agulhadas.
A reação de Mark à imensa surpresa do impacto tão estranho foi se jogar no chão da sala imediatamente. Sem calcular seu curso, o pálido rolou até se chocar com várias cadeiras.
— Hehe! Então você escolheu me seguir mesmo, né? Não dava só para ficar na sua e me deixar ir embora, né, Mark?
A voz zombadora do sujeito que julgava como “um pouco mais que irritante” preencheu os ouvidos assim que retomou a consciência controlada de seu próprio corpo.
O Menotte aos poucos se ergueu, apoiado com o braço em seu joelho.
— Eu te daria um espelho se tivesse um... Pena que nenhum conseguiu furar o olho! — Ele disse, em total diversão. — Sente isso na sua cara?
O rapaz mais magro tentou deslizar sua mão direita pelo contorno de sua bochecha esquerda, mas logo se viu impedido por algum tipo de barreira mecânica. Em um misto de curiosidade e alerta, puxou uma das várias agulhas que sentia perfurarem sua face.
Era um pequeno e frágil palito de grafite, que de alguma maneira acertou com força suficiente para ser sentido por sua língua, do outro lado da espessa carne.
— A metade direita da sua cara tá cheia desses...!
Mark saltou em outra reação tão instintiva quanto a primeira. A acrobacia em seu pulo o levou para cima de uma mesa à direita e o permitiu desviar com sucesso da leva de cerca de 10 lápis com intenção de perfurá-lo.
— Filho da puta...! — exclamou, ao mesmo tempo que tentava se equilibrar sobre a madeira. —- Eu vou fazer você engolir esses lápis todos...!
— Heh… Outra vez, falando palavras grandes demais. Se não vai conseguir manter, então não adianta!
O Perfurador de Elderlog arrumou seus cabelos desordenados, em um sinal de vaidade. Logo, se colocou a estudar a distância que existia entre os dois e a calcular as chances de sua vitória.
— Sinto muito, cara... Mas aqui é o meu campo — disse, ao elevar mais uma vez sua mão direita. — Foi mal mesmo, e eu poderia me esforçar para te deixar vivo agora, mas...
Do chão escuro da sala, vários lápis, canetas, borrachas e até um par de canivetes se elevaram, acumulados ao redor de seu braço, em um sentido único que o tinha como alvo.
— ... Agora que você já sabe a minha cara, não vai dar para te deixar à solta assim... E eu digo o mesmo daquele seu amiguinho.
A mudança de seu foco fez seus olhos brilharem naquele intenso tom de azulado. Sem mais dizer uma palavra, dirigiu a seleção de objetos.
Logo antes de acertarem, contudo, houve um pequeno sorriso.
— ... Por que eu não imaginei antes que você faria isso...?
A ilusão se desfez no instante exato em que Mark foi acertado e desapareceu em estática. A resposta parecia ser óbvia, mas não seria desse jeito. Não era do feitio de Mark Menotte.
“Não vai ser um ataque por trás”, pensou no último milésimo de segundo. “Então eu vou…”
O assassino com o talento de controlar objetos reclinou seu corpo inteiro para trás ao ponto de quase se permitir cair de costas para o chão, quando a única coisa que impediu isso foi a força ampliada de seu braço direito, a usar a mesa dos professores como suporte.
Um sorriso breve de plena satisfação o consumiu, ao ver os contornos da perna de Mark, que visaram acertá-lo diretamente de frente, em um chute voador. Era a chance perfeita.
— Hehe! — riu, logo depois de agarrar a perna direita de seu oponente.
Aplicou toda a sua mais nova força em um giro de seu corpo em sentido anti-horário, em torno do próprio eixo. Pela distância, infelizmente ainda seria incapaz de bater a cabeça de Mark contra a lousa, o que julgou ser uma pena.
“Mas não faz mal...!”
E então, logo no princípio do que seria um segundo giro, fez o gesto de jogá-lo contra o chão como se fosse uma almofada velha, com intenção de fazê-lo bater de costas.
Isso foi fácil demais para ser verdade.
—Mas é um idiota do cacete mesmo...! — exclamou Mark ao revelar sua real localização.
“MAS QUE MERDA...! ELE ENGANOU A MINHA ENGANAÇÃO!”
Os dedos do Perfurador de Elderlog congelaram, imóveis, ao ver que sua vítima se tratava, na realidade, apenas de uma mera mochila preta de algum estudante qualquer da sala. Onde viu pés, na realidade existiam alças, e o corpo da mochila correspondia a todo o restante da perfeita ilusão criada por ele.
Não teria a menor chance de desviar do chute que vinha pela esquerda e que, embora não soubesse, supunha ser bem real. O rapaz pálido deu um salto magnífico, um que propeliu cada centímetro de seu ser e arranjou para que fosse o golpe perfeito.
Era impossível vencer Mark Menotte em seu próprio jogo e o impacto do chute que acertou sua testa em cheio, no segundo mais doloroso de sua vida, foi o que comprovou a ideia.
O impacto de seu corpo ao ser mandado contra a janela fez toda a vidraça se espatifar. Ali se via toda a força vinda da raiva do rapaz mais magro e franzino daquela situação.
— REGENERA! ANDA! — Ele exclamou, em demanda. — EU SEI QUE ISSO NÃO É TUDO...!
Mark pisoteou o chão com força, o que mandou um eco por todo o corredor do lado de fora. Olhava para o corpo largado e a sangrar de sua vítima, mas não era isso o que via.
— CURA ESSE FILHO DA PUTA LOGO E ME DEIXA PASSAR POR CIMA DELE PRA DEPOIS IR ATRÁS DE VOCÊ, SUA VADIA DO CACETE!
— Heh... Hehehehehe!
O psicopata adolescente riu da frustração odiosa de Mark, ainda sem ter movido sequer um músculo. Estar desse modo, com a metade superior do corpo a pender para fora da janela, talvez já o houvesse matado.
— Ah, Mark... Ela já tá aqui... Ela tá juntinha comigo...!
Força bruta fez seu corpo se levantar entre o vidro quebrado. Os cacos caíram de sua pele e cederam ao chão, para deixar nada além de grandes cortes perigosamente profundos em cada região de seu corpo.
— E eu vou te contar uma coisinha... — estalou o pescoço. — Você conseguiu deixar ela bem, mas bem brava mesmo.
Os ferimentos em seu corpo não se curaram, pois dizer isso significaria falar que se fecharam ou regeneraram, quando não foi de longe o que aconteceu.
Em menos que um piscar de olhos, todos simplesmente sumiram.
Batalhar contra ele era quase o mesmo que ter que vencer um verdadeiro vampiro.
— E justo por essa sua provocaçãozinha que você não tinha como ficar calado a respeito...
Os reflexos de escapada de Mark se ativaram todos simultaneamente ao gesto do Perfurador de Elderlog, no instante em que seu sorriso louco e braços cruzados frente ao nariz chegaram ao acrobata.
— ... QUE ELA RESOLVEU ME DAR TUDO O QUE MAIS PRECISAVA PARA DAR UMA LIÇÃO EM VOCÊ...!
De repente, as quatro grandes placas de vidro das janelas da sala se espatifaram e uma grande chuva de vidro em cacos uniu suas unidades aos milhares, acumuladas em torno dele, como um planeta cheio de luas.
Das mochilas de cada estudante, lápis, canetas, borrachas e qualquer outra coisa saltaram para além de qualquer barreira de tecido, sem se preocupar com a incoerência que significaria rasgar várias camadas de pano resistente, tudo a caminho de se unir aos cacos que lhe pareciam infinitos.
Aos olhos de Mark, aquele processo não durou quatro segundos inteiros para se completar.
Ele tinha que se defender e com urgência.
— MORRA!
Um movimento de sua mão e os projéteis foram lançados com mais potência do que nunca antes. Mark não tinha tempo de ir até a porta e não existia sequer um único ponto cego alcançável em toda a sala de aula para que se pudesse se esconder.
Sua melhor escolha residia em apostar.
— Ah, mas vá pra puta que pariu...!
Seu corpo reagiu no último segundo, diante da única coisa que possivelmente o defenderia na sala inteira. Em velocidade máxima, usou de toda a força em seu corpo inteiro para levantar a mesa usada pelos professores e se esconder atrás dela.
— Isso! Continue prolongando o inevitável! — exclamou o assassino. — Essa sua barreira aí não vai durar dois minutos nas suas mãos...!
Os impactos contundentes de tudo o que atingia a superfície rígida denunciavam a falta de segurança na estratégia, onde Mark sequer conseguia respirar sem que um mero caco de vidro acabasse por lascar fora um pedaço grande de madeira.
“Merda... Merda! MERDA...! Eu não posso deixar isso ficar assim...!”
Cada choque fazia a mesa verticalizada vibrar por inteiro, como se estivesse a ser acertada por múltiplas marteladas por segundo.
Não demorou muito e a sala de aula havia se tornado uma representação total da loucura. Lápis e outros pequenos objetos eram jogados como balas de rifle e arrancavam fatias absurdamente enormes daquela que era dita ser uma das madeiras mais resistentes e nobres presentes no território dos EUA.
Sequer por um momento duvidou que não passaria de um cadáver sem pele àquela altura, se houvesse resolvido encarar de frente.
— EI...! — Mark atreveu-se a chamá-lo. — SEU ARROMBADO DESGRAÇADO! Depois que eu passar dessa merda... DEPOIS QUE EU PLANTAR A MINHA MÃO NO MEIO DESSA SUA CARA...!
— Vai fazer o quê?! Me bater até eu chorar?! Ah, por favor...! Não acha que já tá na hora de parar de bancar o durão e só aceitar que tu não passa de ser o merda que afirma que os outros são?
O ricochete das “balas” danificava até mesmo as próprias paredes, e mesmo desaceleradas pelo choque contra a madeira, alguns fragmentos que atingiam na angulação correta ainda acumulavam energia cinética suficiente para estourar as lâmpadas da sala.
Ao atingirem a mesa, a maioria dos objetos se quebrava em pedaços menores e estes se espalhavam por toda parte, efetivamente multiplicando o arsenal dele.
— Qual é o problema?! Gostou?! Em nenhum momento eu disse que não poderia aumentar a velocidade e a força de impacto! Essas coisas podem ir tão rápido que essa mesa, não importa o quão forte seja, vai cair!
Vários buracos foram continuamente perfurados nas paredes. A sala de aula não seria mais inutilizável depois disso.
“Ah, mas esse arrombado...! Eu tenho que conseguir pensar em algo... E segurar pelo menos até a Lira chegar...!”
A habilidade de Mark em criar ilusões se tornava inútil no instante em que não existia mais a incógnita de localização entre ele e seu oponente. Nesse contexto, o rapaz de cabelos castanhos sabia que ele não tinha como sair de onde se encontrava no momento.
Movimento significaria uma sentença de morte. Podiam ainda não serem tão intensas quanto balas lançadas por uma arma real, mas não havia como dizer se aguentaria sequer um mísero segundo de contato direto com os projéteis.
Para piorar a situação, sempre esteve cego demais às possíveis fraquezas desse poder, se havia uma. Em sua raiva contra uma pessoa específica, deixou seus sentimentos cobrirem o raciocínio.
“Samantha...! Assim que eu sair daqui... EU VOU TE MATAR...!”
Aquele nome significava bastante; bem mais do que ele admitiria para qualquer um.
... ... ...
Os objetos continuavam chegando e Mark continuou a defendê-los, mas sua defesa não duraria mais. Já eram visíveis rachaduras na madeira e as extremidades da mesa estavam lascadas e destruídas.
Ele estava nas mãos do ataque inimigo.
“Eu não posso me deixar ter um fim tão patético assim... Morrer para um monte de canetas!”