Carta da Alma Brasileira

Autor(a): Zeugma


Volume 1

Capítulo 4: O Herege

Sua pele estava quente como fogo. Aquele líquido pegajoso e morno como um banho quente num dia frio banhava toda sua barriga e abdômen. O gosto em sua boca fazia seus nervos enlouquecerem. O corte foi profundo e delicado, digno de uma profissional, uma assassina treinada. 

Arf! Arf! — Um bafo quente escapava de sua boca incontrolavelmente.
 
— Como... como você está aqui?! — Gritava Ester enquanto segurava as suas entranhas em um gesto desesperado.
 
Segurando uma de suas adagas, banhada naquele vermelho carmesim incandescente — seu carrasco.
 
— Parece que seu herói não está aqui para salvá-la.
 
Pavor.

Seu corpo tremia, tanto quanto da última vez. Se essa mulher está aqui, significa que aquele homem perdeu? Não importa mais... Seu pescoço foi agarrado pelas mãos daquela mulher, levantando-a como uma criança indefesa. Seu sangue banhava o chão como um balde de tinta que cheio foi virado de cabeça para baixo.

Não tinha forças nem para gritar. Tentava! tentava! Desesperadamente tentava chutar o peito de sua agressora. Falhava miseravelmente... Seus olhos iam de encontro um ao outro, aqueles olhos frios dominavam os olhos inocentes da jovem presa. A assassina surpreendeu-se. Mesmo à beira da morte seus olhos emanavam uma chama, mais ardente do que as labaredas do purgatório. 
 
— V-venha.
 
O ar condensou e liberou uma cortina de fumaça, que ao cessar revelou um livro velho e empoeirado que pairava o chão, tomando a atenção da ladina. 
 
— O que diabos é isso? — disse enquanto apertava com mais força o fino pescoço da jovem. 
 
Creck! — Seus ossos estalaram 

Com suas últimas forças junta sua saliva misturada com sangue e cospe nos olhos da assassina. 

— Vagabunda! — Gritou a mulher irritada. 

Aproveitando a situação Ester pega uma carta de seu Grimório — Bola de fogo. 
 
— Se eu vou morrer, te levo pro inferno junto. — Exclamou
Bola de f-

É interrompida por um soco em seu peito, fazendo derrubar a carta no chão.

— Não sei o que diabos é isso, mas você precisa ser mais rápida se quiser tentar algo. 
 
É o fim. Seu corpo não tem mais forças nem para levantar os braços. O oxigênio não consegue mais entrar em seus pulmões devido ao sufocamento, restando poucos segundos até a perda de sua consciência, e sua morte. 

Sua visão começa a ficar turva, pouco a pouco seus olhos vão se fechando. Dessa vez não tem ninguém para protegê-la. Ela percebeu a diferença de poder entre um herói e uma pessoa comum do jeito mais duro. 
 
— Pare. — Uma voz ecoa pelos corredores do hospital

—  Por quê?! — A entidade a sua frente grita com desdém

Parecia estar discutindo com alguém, mas Ester já não ouvia mais. Gritavam, gritavam, que barulhentos... não respeitam alguém prestes a morrer? 
 
Ester cai.

A ladina soltou seu pescoço deixando a marca de suas mãos em vermelho e guardou sua adaga no cinto. 

“Por quê?... Ela não ia me matar? Termina logo com isso.”  Pensou Ester

Ester foi banhada pelo seu próprio sangue que não parava de sair. Seu ouvido estava zunindo como se centenas de mosquitos estivessem a rodeando, não permitindo ouvir claramente o que estavam falando, porém, algumas palavras saltaram da conversa.
 
— Mestre... vai mesmo deixar ela viva? ... Ela é? ... Sim, senhor.

 Olhou para Ester com olhos tão gélidos quanto o inverno do Alasca.

— Na próxima que nos vermos será seu fim.

Virou de costas e partiu, adentrando em uma parede e desaparecendo sem deixar rastros.
 
O calor de seu corpo está se esvaindo. Desesperadamente começa a se arrastar pelo chão deixando um rastro de sangue por onde passa. Quantos litros de sangue um humano pode perder antes de morrer? Ester não sabia, porém, sabia que faltava pouco para chegar em seu limite. Irônico não? Estava em um hospital, mas não havia ninguém para salvá-la. 
 
Quase apagando, uma voz tremula ecoa pelos seus ouvidos dizendo duas palavras simples, mas incoerentes a situação.

Sinto muito.
 
Passos... Passos... Alguém apressado vai em sua direção. Mancava, parecia machucado, mas nada tão sério. Quem seria... Seu salvador, ou seu carrasco? Naquele momento, Ester fechou seus olhos em um momento de fraquejo.
 
Tudo escurece mais uma vez...

Tum, Tumturu, Tururu! — Um alarme tocava sem parar.
 
Ester está em um quarto pequeno, deitada em uma cama bagunçada. Pela janela é possível visualizar uma luz que invade o quarto. Pelas paredes, inúmeros quadros com pessoas estranhas. Parecem ser quadros com Ester junto a uma outra pessoa: um homem, alto, loiro, usando um óculos escuro e com uma tatuagem de cruz em seu braço direito. Há diversas roupas e brinquedos jogados pelo chão, e ao seu lado, acima de uma mesinha, um alarme digital. É meio-dia.

—  É verão?  Olha a hora, vou me atrasar! Ah, verdade, hoje eu não preciso ir para aula estou de férias. — Ester bate no alarme, cessando seu barulho irritante.
— Que fome, acho que vou dormir mais um pouco e ir comer. 

— Ester! — Uma voz masculina a chama
 
Ester levanta com o susto.
 
— Tá pronta a bóia! — a voz ecoou
 
A porta de seu quarto é aberta, porém a claridade cega sua visão. Após seus olhos se acostumarem com a luz, aos poucos é revelada a imagem de um homem. Ele está vestindo um avental de cozinha. Mas, antes que ela pudesse vê-lo, seus olhos são repletos de lágrimas.

Que gosto salgado... 
 
— Ei, ei, ei!! Por que você tá chorando?!! — Se aproximou preocupado — Teve um pesadelo? Está tudo bem, eu to aqui agora!
 
Ele põe a mão sobre seus ombros e dá um sorriso gentil.

— Venha, eu fiz sua comida preferida, panqueca de frango!!
 
“Sim... Foi tudo um pesadelo. Ufa...” Pensou Ester
 
“Mas, por que... por que meu peito dói tanto? Por que... por que você me deixou sozinha, Arthur?”

... 

— Vossa majestade! Vossa majestade!!! — Alguém gritava sem parar.
 
Seus olhos se abrem, ah sim... aquilo era apenas um sonho.

A realidade não é tão boa assim.

Ester está no chão, e ao seu lado está o homem de cabelos verdes. Ele está com suas mãos sobre o ferimento de Ester, emanando um brilho verde estranho. De algum jeito, seus tecidos, músculos, órgãos, ligamentos e todo seu organismo estão se reestruturando, pouco a pouco. Era mágico. Deixaria até os melhores cirurgiões com inveja.

 —  Vossa majestade, você ainda tá viva?! — Gritava o homem. 
 
Ela apaga.

... 
 
Desperta assustada, estava novamente em sua cama de hospital, dessa vez rodeada de médicos e enfermeiros.
 
— Senhor, senhor! — gritavam as enfermeiras cutucando o médico — ela acordou!!!
 
Rapidamente cercaram-na, iniciando seus procedimentos padrões. Mediram sua pressão, verificaram sua respiração, suas pupilas, tudo parecia incrivelmente bem. 
 
— Incrível, é como se fosse magia! — Disse o médico
 
Ester, porém, estava mais preocupada com as imagens em sua mente. Tudo era claro, ela estava à beira da morte instantes atrás. Onde será que aquela mulher foi? E por que... por que a poupou? 
 
— Senhorita, está tudo bem? — Uma enfermeira interrompe seus devaneios
 
— Ah, sim! Desculpe. Que dia é hoje? — Pergunta Ester

— Dia 6 

— Entendo... só por curiosidade... Aconteceu algo ontem à noite?

— Na verdade...  parece que sofremos um tipo de ataque noturno, destruindo muitas instalações do hospital. Graças a Deus não houve feridos, mas como você soube?
 
— Ah Eu acordei de noite com os barulhos, heheh...
 
— Sinto muito. Já acionamos a polícia para investigar.
 
"Então, eles não sabem sobre aquela mulher..." Pensou
 
— Mudando de assunto, quando posso receber alta?
 
— Ah claro, hoje mesmo! Sua condição está ótima. Mas, antes disso fiquei sabendo que havia duas pessoas querendo falar contigo hoje de manhã, posso trazê-los aqui?
 
Com um sorriso de ponta a ponta, Ester sabia muito bem quem eram. — Claro!
  
Abrindo a porta com força, entram juntas as pessoas que Ester mais adora no mundo inteiro, Noah e Violet! Violet segurava flores —  ironicamente violetas. Já Noah segurava livros espessos de capa dura. "Geometria plana e espacial", "História do Brasil", entre outros...
 
— Ester!! — ambos gritaram. — você está bem?!
 
— Sim, estou melhor agora.

— Sua imbecil! deixou a gente muito preocupado! — Disse Violet
 
— Sinto muito...
 
— Você está bem mesmo? — Falou Noah, que estava verificando os monitores das máquinas pela sala.
 
— Sim... foi só uma recaída. 
 
— Isso que dá trabalhar de mais! Você precisa de umas férias. — Disse Violet
 
— Eu concordo! Você não pode se forçar tanto assim. — Noah balançava sua cabeça em afirmação. 
 
— Cerro, certo. Vou pensar no assunto. 
 
Ester parou por alguns segundos, apenas para apreciar a situação. Violet e Noah estavam falando algo, mas ela não ouvia. Simplesmente estava sorrindo feliz por seus amigos estarem ali. Eles estavam ali por ela. 

Após algum tempo de conversa, ambos decidiram que era hora de partir. Violet pôs um vaso com água em cima da mesa e guardou suas flores delicadamente dentro do recipiente. Noah deixou seus livros organizados, junto de algumas notas de apoio que ele mesmo escreveu na mesa ao lado de Ester.
 
— Obrigado por virem pessoal, fiquei muito feliz mesmo! 
 
Violet e Noah sorriram e ficaram vermelhos. 

— Você é nossa amiga, afinal! — dizem ambos.

— Ester? — Violet disse olhando para a mão de Ester — que tatuagem maneira!!! Quando você fez?
 
— É... eu ia mostrar para vocês depois! Heheh...
 
Noah encarou-na cerrado sua sombrancelha ao fundo.
 
— Achei muito foda! — Disse Violet, mostrando suas tatuagens pelo corpo. Ela tem aranhas, rosas, violetas, peixes, entre muitas outras...
 
— Valeu... —  Respondeu Ester.
 
Estavam abrindo a porta para partir, sendo xingados pelos enfermeiros que diziam que já havia terminado o horário de visita, quando Ester lembra de algo.
 
— Noah 
 
— Sim?
 
— Por que você não foi a aula nessa semana?
 
— Ér... eu tive uns problemas pessoais, te conto detalhadamente depois.
 
Ester olhou para ele com julgamento, porém, resolveu deixar passar. 

—  Ta bom, eu vou cobrar depois ein! — Respondeu.
 
Assim, os dois foram embora. 
  
Ester arrumava sua cama, observava o ambiente sereno pela janela. Estava na hora de partir, hora de descobrir os mistérios envolvendo os últimos acontecimentos. Ester estava com a respiração acelerada, ansiosa. 
 
Paft! —  A porta se abre bruscamente.
 
Era uma enfermeira, pequena e delicada. Parecia recém-formada, nervosa. 
 
— Eu quase me esqueci. Quando você chegou o homem que te trouxe me disse pra entregar uma coisa pra você. 
 
"Um homem?" Ester pensou 
 
— Aqui — estendeu-lhe a mão, mostrando uma carta estranha.

Nela tinha um desenho de um touro humanoide, semelhante àquela aberração de antes.

Estava gravado nela:

[Minotauro (Monstro)
Besta monstruosa, não adianta se esconder.]
 
Arregalou os olhos e escapou-lhe um suspiro

— O que?!

— Algum problema? — Indagou a enfermeira. 

— Não... não é nada. Quem era o homem? Ele disse alguma coisa?
 
— Não. Ele estava vestindo uma túnica velha com capuz, não pude ver seu rosto. Quando perguntei seu nome ele apenas partiu sem dizer nada.
 
"Isso é muito estranho... por que esse estranho me ajudou?" 
 
— Muito obrigada — disse Ester enquanto pegava a carta.
 
Algum tempo se passou, Ester preencheu papéis para sua alta, terminou de arrumar suas coisas e, enfim estava pronta para partir. 
 
— Venha.
 
Seu Grimório surgiu. Ester começou a folear até a página onde suas cartas estavam armazenadas. Todas estavam lá, exceto por uma. "Roy, o herege".
 
— O que?! Onde ele está? 
 
Revirava seu quarto a procurá-lo, olhava até onde os ratos evitavam ir.

— Roy, Roy!!

Sem resposta. Olhou seus bolsos, suspirou aliviada —  ele estava lá. Ela pega a carta e observa-a por alguns instantes num misto de sentimentos. Medo, ansiedade, felicidade, inquietação. Não sabia se deveria o fazer, mas o fez.
 
— Venha, Roy, o Herege. 
 
Vuoosh!

As janelas começaram a bater na parede. Um vento forte levantou os lençóis, abriu os livros na mesa e por pouco não derrubou o vaso de flores. Fumaça tomou conta do quarto. Uma pessoa estava lá. Era ele, aquele mesmo homem de antes. Seus olhos foram de encontro, era o encontro do pôr do sol com o céu azul. 
 
— Respondo ao teu chamado, vossa majestade. Receio que não tenha me apresentado adequadamente, prazer em conhecê-la, me chamo Roy Starlight, antigo Arque-Mago e guarda costas da família real do reino de Ysgirr.
 
"Arque-mago? Capital real? Ysgirr? Do que ele tá falando?!"
 
— Oi, o prazer é todo meu. Me chamo Ester Bruma. — disse estendendo a mão para Roy, que lhe deu um beijo delicado. 
 
— Ei?! 
 
— O que foi majestade?
 
— N-Não precisa me tratar assim. — disse com suas bochechas coradas, evitando o olhar. — Pode me chamar só de Ester! 
 
— Certo, Ester.
 
— Obrigado. Foi você que me salvou ontem, não foi?
 
— Sim. Porém falhei em defendê-la da Evellynn.
 
— Tudo bem... espera, quem é Evellynn?
 
— Aquela ladina.
 
— Você a conhece?
 
— Sim, ela é uma ladina famosa no meu reino. Ninguém nunca foi capaz de pegá-la.
 
— Ladinos, magos, isso não existe aqui... seriam vocês... de outro mundo?! 
 
Ambos se olharam fixamente

— Provavelmente — disse Roy.
 
— Eu, eu não acredito que algo assim realmente possa ser possível... pensei que isso fosse coisa apenas de jogos!! Então, se você é um mago pode me mostrar alguma magia sua?
 
— Claro.
 
Roy ergue seu braço direito, projetando-o para o vaso de flores. Algo estranho começa a acontecer. É como se a água estivesse viva de repente! Ondas se moviam no interior do vaso, e como se fosse um tornado de água ela começa a esguichar tomando uma forma de linha. 

A água flutuava no ar secando o vaso por inteiro enquanto Roy começava a mover seus dedos, com a água acompanhando-os e gerando desenhos dinâmicos. Inúmeros peixes voavam pelo quarto de hospital, era como um aquário, só que sem água! Uma visão única, incrivelmente bela. Então, Roy fecha o punho e a água lentamente começa a voltar para o vaso, até que enfim ele é enchido por completo.



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