Volume 1 – Arco 4
Epílogo: O rosto de Rodrigo
— Eu não sabia que tinha um lugar tão bonito assim nessa floresta, e olha que moro aqui desde que nasci — disse Jhou, depois que a tontura passou e conseguimos focar nossos olhos.
— Esse é o Rio de Água Pesada — falei —, o meu local de treinamento. Mas não se enganem, esse rio é traiçoeiro.
Parecia inofensivo e fluía com leveza enquanto brilhava à luz do sol. O único som que preenchia a floresta era o da queda d’água, um ruído estrondoso e, ao mesmo tempo, tranquilizador. E o portal ainda pairava às nossas costas.
— Será que isso vai ficar aí pra sempre? — disse Natsuno com receio.
— Cinco minutos — respondeu Riku, bocejando. — Depois, ele some.
O que era ótimo, considerando que não seria nada legal alguém encontrá-lo exposto daquela maneira. Imaginei vampiros o atravessando e atacando o profeta Zaoi.
— O que vocês pretendem fazer agora? — Natsuno nos perguntou, ignorando o portal.
— Eu só penso em tomar um banho e dormir — admitiu Pedro, rindo.
— Acho que vou passar na Lanchonete Lendária e comer alguma coisa — disse Jhou, com a mão sobre a barriga.
— Ué — o Kogori o encarou. — E o seu estoque?
Olhamos para a gigantesca mochila do grandalhão. Reparando melhor, não parecia mais tão cheia.
— Acabou — disse ele, lamentando. — Todos os meus sanduíches. Todos os meus cachorros-quentes. Estou faminto! — choramingou.
Natsuno revirou os olhos. Então me olhou, percebendo que eu estava pensativo.
— E você, Dio?
Olhei para Jhou, sério e determinado ao mesmo tempo, e falei:
— Jhou, acho que você vai ter que aguentar a fome mais um pouco.
— Por quê? — estranhou ele com os olhos tão verdes quanto confusos.
— Porque nós vamos encontrar o seu pai.
— Como vamos fazer isso? — perguntou ele, enquanto caminhávamos pela floresta rumo às ruas do meu bairro. Olhei a hora no meu relógio e me perguntei se ela acordaria tão cedo em pleno domingo. Ia dar sete da manhã, ainda.
— Você encontrou o que te pedi? — perguntei.
— Você diz a foto? Encontrei sim.
Jhou mostrou seu celular, ainda confuso. Na imagem havia três pessoas abraçadas: um casal e um filho, todos sorridentes. A mulher era gordinha e bonita, tinha o cabelo curto e olhos castanhos. O homem era negro e robusto, de aspecto firme, ao mesmo tempo em que aparentava ser carismático. Tinha o cabelo muito ralo e vestia um jaleco branco — e o fato de tirar foto com a roupa de trabalho era sinal que ele vivia trabalhando. Deduzi que Rodrigo era um homem muito esforçado.
Já o garoto era Jhou, uma criança sorridente de, aproximadamente, nove anos. Era fortinho já, pele negra como a do pai mas algumas características do rosto lembravam mais a mãe, um sorriso enorme e um olhar firme, verde.
Todos pareciam felizes.
— É a minha foto favorita — disse o grandalhão, parecendo segurar as emoções. Eu não sabia o que falar, mas sentia muito por ele.
Continuei examinando a foto, os três felizes. Eu também tinha uma foto com meus pais no meu quarto. Éramos felizes também, pois mesmo sendo um pouco distante de nós, meu pai sabia nos alegrar. Ele era um homem incrível.
Fazia frio, e o céu agora estava nublado. As folhas moviam-se levemente com o vento, algumas chegando a cair. E a floresta estava calma. Animais e insetos faziam barulhos à distância e besouros voavam por toda parte. A grama era pouco espessa, e enfim chegamos à grade que separava a zona verde das ruas. Foi por ali que eu fugi quando o Billy me perseguiu na sua forma grande, quando o encontrei pela primeira vez.
Escalei a cerca e pulei para o pequeno beco; Jhou fez o mesmo. Tínhamos nossas mochilas nas costas ainda, porém não nos atrapalhavam em nada. Natsuno, Riku e Pedro já haviam ido embora porque pedi, uma vez que muita gente poderia chamar a atenção, mesmo que ainda fosse cedo.
Natsuno nem sequer protestou, de tão cansado que estava — isso sem mencionar o suor e as roupas encardidas.
— E aí, você ainda não me disse como vamos encontrar o meu pai.
— Você vai saber na hora certa.
Cheguei em frente à casa dela e bati na porta: Toc toc!
— Quem mora aqui? — perguntou Jhou.
— Uma amiga — respondi. Esperamos por alguns segundos, até alguém abrir. Mas não era ela.
— Bom dia, Cristina, a Zoe está? — perguntei, tímido, surpreso como sempre ficava quando a via; era incrível a semelhança entre mãe e filha, mudando apenas a cor das íris, pois Cristina possuía olhos castanhos.
— Diogo? — Cristina bocejou, e me senti mal por acordá-la. — Bem, acho que ela está dormindo agora...
— Quem é, mãe? — perguntou Zoe, e neste momento me ajeitei para tentar vê-la. A garota estava parada na escada, esfregando os olhos, com os cabelos emaranhados. E ela usava pijama. Quando me viu, arregalou os olhos repentinamente e se escondeu, envergonhada. Cristina me olhou e riu.
— Ela já vem.
Quinze minutos depois, Zoe desceu. Jhou e eu ficamos esperando em sua sala, inquietos, enquanto Cristina fazia o café na cozinha. Perdi a conta de quantas vezes o estômago de Jhou roncou. Era difícil saber qual de nós dois estava mais ansioso — apesar de o grandalhão ainda não saber o que eu estava tramando.
— Não esperava que você viria tão cedo — disse a garota enquanto se aproximava, um pouco corada. Seus cabelos estavam presos em um rabo de cavalo, cachos castanhos que eram lindos mesmo amarrados. Zoe tinha um lindo olhar verde, que me fez sentir vergonha por estar sujo, embora parecesse que a garota não se importava com isso. — O que o trouxe aqui? E quem é ele?
— Esse é o Jhou — respondi, me levantando.
— Oi — disse o grandalhão, sem jeito. Mas então sua atenção foi chamada para alguns biscoitos que Cristina trazia. Não eram tantos, por isso fiquei preocupado se mataria a fome do garoto.
— Já, já trago o café — disse ela, muito simpática.
— É... não precisa — falei, sem jeito. — Estamos de saída.
— E vocês vão para onde? — Zoe parecia confusa.
— Zoe, precisamos de você.
— Então quer dizer que vocês precisam de mim para encontrar o pai desaparecido do Jhou, um cientista que descobriu a cura para o "vírus de vampiro"? — perguntou a garota, surpresa, enquanto nós três caminhávamos rumo ao parque, Jhou comendo os biscoitos de maisena.
— Exatamente — falei, confiante.
— Um cientista que a organização do seu pai procura há anos?
Assenti.
Zoe parecia surpresa. Jhou, por outro lado, continuava confuso, mastigando de forma inquieta.
— O que está acontecendo? — perguntou ele, engolindo o último biscoito. — E para onde estamos indo?
Sim, eu sabia que a mãe da Zoe tinha conhecimento do poder da filha, mas ainda assim eu me sentiria desconfortável para pedir a “ajuda especial” da garota perto dela, portanto tive que inventar alguma desculpa para irmos ao parque, onde eu me sentia melhor. Zoe, como era uma garota muito compreensiva e, querendo ou não, conseguia ler minhas emoções, aceitou vir comigo, o que me fez amá-la ainda mais — amá-la no sentido de... ah, você me entendeu.
Encarei um Jhou que ainda me olhava querendo uma resposta. Suspirei e expliquei:
— Jhou, você é um místico.
Zoe não pareceu surpresa, talvez pelo fato dos olhos verdes do grandalhão serem idênticos aos seus. Ainda assim, o olhou com uma curiosidade nova, e imaginei que para ver a reação do grandalhão ao receber a notícia. Jhou apenas ficou sem entender, mas continuei:
— Místico é uma raça especial assim como os caçadores e vampiros. Eu sei que você também estranha o fato de ser mais forte que o normal, e a única explicação para isso é que você tem um poder especial, assim como a Zoe, assim como o meu tio Michael. Os místicos são seres que nascem assim, anormais, diferentes, especiais. E geralmente têm olhos verdes.
Jhou olhou para Zoe, como se quisesse confirmar a última informação.
— Então você está dizendo... que eu sou um mutante?
Zoe e eu rimos, chegando finalmente ao parque, deserto pelo horário.
— Não sei bem explicar se sim ou se não, mas o fato é que os místicos têm poderes, e é através do poder da Zoe que encontraremos o seu pai.
— Eu posso rastrear qualquer pessoa no mundo bastando imaginar o seu rosto — explicou ela, me ajudando.
— Por isso você pediu a foto do meu pai! — Jhou enfim entendeu.
Assenti, e nos sentamos no banco de pedra.
Por um lado eu estava ansioso. Poderíamos encontrar o cientista que meu pai e Cláudio procuravam por anos. Mas eu também estava inseguro. Não tinha convicção se só de olhar para a foto o poder da Zoe funcionaria.
— É a primeira vez que vou fazer isso olhando o rosto da pessoa apenas por foto — disse ela, nervosa, adivinhando meu medo.
— O rosto de Rodrigo — falei, observando o cientista alegre ao lado de sua família.
— O rosto do meu pai... — disse Jhou, abalado.
— Você consegue? — perguntei à garota.
— Eu não sei — respondeu ela. — Por foto não sei se funciona.
— Vamos fazer um teste, primeiro, então.
Peguei minha carteira no bolso da mochila — pois é, eu não andava sem documentos, nem mesmo em Venandi — e tirei uma pequena foto de dentro. Retratava eu, a minha mãe e a minha avó, uma mulher de idade, com seus cinquenta e sete anos. Tinha rugas ao redor dos olhos e dos lábios e seus cabelos eram lisos e claros, uma mescla entre o loiro e o grisalho. Dona Rose era sorridente, assim como a minha mãe, postada ao meu lado na foto. Eu estava no meio, abraçando as duas. A foto foi tirada pelo tio Michael no Natal de 2014. — Essa é a minha avó, mora lá em Belém. Tente rastreá-la.
Zoe olhou bem a foto e fechou os olhos, concentrando-se. Em seguida, começou a brilhar. Uma aura verde contornava o seu corpo por completo, semelhante às ocasiões em que a minha Takohyusei e as Takohyuseis de Riku e Natsuno se encontraram pela primeira vez.
Jhou e eu ficamos surpresos vendo a cena. E como era linda...
Dei uma olhada em volta, para me assegurar de que não havia ninguém olhando; nenhum sinal de vida por perto.
Voltei a olhar para Zoe, cujos olhos ainda estavam fechados.
Então ela os abriu. Por alguns segundos, seus olhos pareciam faróis acesos em um cenário cinzento. Jhou e eu nos entreolhamos, admirados. Quando seus olhos voltaram ao normal e seu corpo parou de brilhar, a garota soltou um longo suspiro de alívio, como se estivesse cansada.
— E aí, o que viu? — perguntei, curioso.
— Sua avó é uma mulher bem disposta. Está lavando a calçada de uma casa amarela, e parece bem alegre.
— Típico dela — falei, sorrindo, sentindo saudades da minha avozinha. A casa amarela confirmava que a Zoe vira mesmo ela, uma vez que a nossa casa lá de Belém realmente era amarela.
A garota sorriu.
— Agora é a vez do Rodrigo — falei, pedindo o celular do grandalhão.
Jhou ainda deu uma última olhada na foto e me entregou, depois passei para a garota. Zoe analisou o rosto do homem de jaleco e respirou fundo, fechando os olhos. E, outra vez, ela brilhava.
Jhou parecia ansioso e inseguro. Eu sentia na pele o que ele estava passando. Se a Zoe achasse o seu pai seria a melhor notícia do mundo. Mas, se não achasse, era sinal de que ele estava morto...
O grandalhão estava tremendo.
A garota ficou vários segundos concentrada. Depois, abriu os olhos e mostrou novamente os "faróis verdes" por alguns segundos. Quando voltou ao normal, Jhou logo perguntou:
— E aí, o que viu? Achou o meu pai?
Ele estava muito ansioso.
Zoe e eu trocamos um olhar, a garota claramente exausta, e notei nela uma expressão de tristeza. A garota disse, em tom de lamento:
— Sinto muito, mas eu não vi nada.
E o grandalhão começou a tremer mais ainda, de olhos para o chão.
— Tudo bem — disse ele com voz infeliz. Uma lágrima escorreu pelo seu rosto. — Pelo menos agora eu sei que… ele não está mesmo mais entre nós.
Assim que disse isso, eu me senti péssimo. Não só pela notícia, como também por insistir em uma ferida já cicatrizada.
— Me desculpa, Jhou... — pedi, me sentindo a pior pessoa do mundo.
— Obrigado, Diogo — disse ele, forçando um sorriso e me estendendo a mão. — Você só queria o melhor pra mim. Obrigado, meu amigo.
Eu apertei a mão dele.
Pela primeira vez, o grandalhão não usou tanta força, o que me deixou aliviado.
— Sinto muito pelo seu pai — falei, afinal.
— Eu também. — Zoe parecia triste.
Cabisbaixo, Jhou anuiu com a cabeça. Senti pena dele...
O sol apareceu por entre as nuvens pesadas, iluminando cada canto ao nosso redor. Eu me perguntei quantas mortes eu descobriria na minha nova profissão. Cláudio, Rodrigo, os pais do Riku e os ex-companheiros do Natsuno eram apenas exemplos. Eu havia deixado de ser aprendiz, no entanto já sabia que a vida de caçador não seria mil maravilhas. Queria proteger o mundo, sim, porém não queria perder ninguém próximo a mim — embora o fato parecesse cada vez mais difícil.
Não sabia por que, mas eu estava com um mal pressentimento.