Volume 1 – Arco 2
Capítulo 23: Shin
Quinta-feira.
O despertador me acordou exatamente às seis da manhã.
Mas não era o despertador que ficava no criado-mudo ao lado da cabeceira da minha cama, e sim o Billy latindo! O cachorrinho latia tão alto que provavelmente acordara a casa inteira. Assim que viu que meus olhos se abriram, ele saltou em cima de mim e lascou uma lambida no meu rosto. Eu passei minha mão sobre sua cabeça, bocejando.
— E aí, amigão.
Billy latiu de alegria. Bruna colocara uma casinha de madeira no meu quarto, junto ao guarda-roupa, onde o cãozinho dormira confortável.
Eu me levantei e fiz a mesma rotina de sempre, percebendo que o cachorro realmente acordara todo mundo. Não pude controlar o riso.
Quando saí para ir à escola, percebi algo surpreendente: Riku estava me esperando em frente à minha casa.
— Riku? — Eu obviamente estranhei, fechando o portão atrás de mim.
— Vamos ou não? — disse ele, me olhando com desinteresse; não tive nada a fazer a não ser assentir.
E mal começamos a caminhar quando Riku abriu a boca:
— Diogo, meus pais não morreram em um acidente de carro.
— Isso eu já sabia — respondi, lembrando o dia em que nos falamos no parque, o dia do “aviso para não entrar em seu caminho durante sua caça ao Pedro”. — Você disse que eles haviam sido atacados por vampiros.
— Era mentira.
De imediato eu fiquei surpreso.
— Mentira? Como assim?
O rosto sereno do Riku levava um leve tom de amargura. Ele explicou, com a sua voz firme e tranquila:
— Tínhamos um grande amigo da família, Shaong Kabeiyama, também um caçador de vampiros. Não sei bem onde ele e meus pais se conheceram, mas eram próximos há bastante tempo. Porém, esse mesmo amigo que apoiava minha família nos momentos mais difíceis, nos ajudava nas dificuldades e horas ruins, é o mesmo amigo que os assassinou.
Essas palavras me provocaram um choque muito grande.
Então quer dizer que os pais do Riku foram assassinados por um homem que dizia ser amigo deles? Isso com certeza era uma baita covardia. E não deixei as dúvidas crescerem na minha mente.
— Mas qual foi o motivo de isso ter acontecido? — perguntei, procurando encarar Riku nos olhos; ele apenas olhava para frente, como se me ignorasse. Mas ele não ignorava, era apenas aparência. Riku era diferente do que demonstrava.
— Eu não sei. Ele invadiu a nossa casa e nos atacou. Matou o meu pai, que era um homem muito forte, e em seguida a minha mãe. Consegui fugir, mas... me arrependo disso.
Percebi que o garoto solitário possuía, agora, um olhar trêmulo, como se estivesse com vergonha de si mesmo e raiva do assassino ao mesmo tempo. E ele fazia de tudo para não demonstrar seus sentimentos. Ainda assim eu sentia na pele seu sofrimento.
— Eu deveria ter ficado lá e ter lutado! — lamentou, assumindo, pela primeira vez, uma expressão furiosa. — Mas fugi como um rato, deixando os meus pais morrerem nas mãos daquele maldito...
— Se você tivesse ficado, poderia estar morto agora — tentei consolá-lo, voltando a olhar para a frente.
— Eu preferiria assim. Minha vida não tem mais tanto sentido. Perdi meus pais, meus únicos bens. Agora só me resta honrá-los…
Os olhos do garoto recaíram sobre o asfalto, o que era um claro indício do sentimento de vergonha.
— Sinto muito — foi a única coisa que consegui dizer em meio ao clima.
— Por isso decidi me juntar a vocês. Não quero que suspeitem de mim por eu fazer parte do clã Medeiros. Minha única vontade é de evoluir junto de minha espada para finalmente poder me vingar de Shaong. Vocês dois são a minha escada.
Então me senti menosprezado, era como se Riku estivesse nos usando.
— É isso o que significamos pra você? — perguntei irritado.
Ele parou e me lançou um olhar desafiador.
— Óbvio que sim. Pensou que eu me tornaria amiguinho de vocês?
Cerrei os punhos. Faíscas pareciam querer sair dos meus olhos. E a tranquilidade no rosto de Riku me deixava ainda mais zangado.
— Isso não é certo.
— Qual o seu objetivo? — perguntou ele de repente.
— Do que você está falando?
— Seu objetivo. Todos temos um. Estou curioso.
Riku me pegou de surpresa. Então percebi que eu tinha inúmeros objetivos. Deixar de ser aprendiz, deixar meu pai orgulhoso, proteger pessoas, transformar o mundo num lugar melhor.
— Presumo que você tenha vários — disse ele antes que eu pensasse numa resposta —, e um deles é o de deixar de ser aprendiz. Não se importe comigo, apenas cumpra este objetivo, ou seja, você também precisa de mim. Após isso, pode ter certeza que vou seguir meu rumo e ficar bem longe de você e do seu amigo Kogori. Nossos modos de pensar são bem diferentes. A propósito, desisti de matar o Pedro por ele não representar nenhum tipo de perigo pra ninguém. Posso mudar de ideia caso perceba que estou enganado.
Após essas palavras, Riku tornou a andar, deixando um Diogo bem pensativo para trás. De uma forma ou de outra, ele não estava errado.
— Será que a Sophia vem hoje? — ironizou Natsuno, me encarando com um sorriso zombeteiro, quando já estávamos em nossos lugares. Não respondi, apenas torcendo para que a resposta fosse 'sim' no final das contas.
Nem sinal dela.
Isso me deixou com certa mágoa.
A professora chegou, então abrimos os nossos cadernos.
De repente, quando a porta já estava fechada, alguém bateu, atraindo a atenção de todos, principalmente a minha.
Imediatamente pensei que fosse a Sophia, mas senti uma presença estranha, diferente.
Estremeci.
A mulher abriu a porta e um garoto asiático entrou, cujo cabelo moicano era de um vermelho vivo. Senti a mesma sensação que senti quando encontrei Riku e Natsuno pela primeira vez, portanto olhei para trás, percebendo que Riku parecia estar trêmulo, mas trêmulo de raiva.
— Foi mal aê por chegar atrasado — disse o garoto à professora, olhando-a nos olhos com desdém. Sua feição definia bem o que eu chamo de cara malicioso.
— Faz tempo que você não comparece às aulas, Shin — disse ela.
E o nome não me pareceu estranho. Coloquei a cabeça para funcionar e então a lembrança me veio à tona. Shin era o “traíra” mencionado pelo Natsuno dias atrás, um caçador de um clã ambicioso que nem mesmo o Riku confiava.
— Estava viajando — explicou-se, uma mentira um tanto nítida. Shin lançou um olhar de escárnio para Riku, Natsuno e, por último, para mim, abrindo um sorrisinho provocador que eu não gostei nem um pouco. Aparentemente, ele sabia que nós três também éramos caçadores, e estava querendo me fazer “perder a linha”.
— Encontre um lugar e sente-se — ordenou a professora.
Shin foi até a última carteira da fileira que ficava encostada na parede da porta e lá mesmo se sentou, folgado, sem nem ao menos tirar as coisas de sua mochila. Fiquei observando-o com os olhos semicerrados, quando ele voltou seus olhos puxados para mim e sussurrou, como se quisesse que apenas eu entendesse aquilo:
— Algum problema… Kido?
Como ele sabia meu sobrenome, eu não fazia ideia. Eu nunca o havia visto antes e acreditava que ele também não me conhecia. Não respondi à sua provocação e Natsuno se virou para mim.
— Fique esperto com ele, maninho — ele me avisou. Depois olhei para o Riku, que apenas retribuiu o olhar, desinteressado como de costume.
— Não sei por que — disse o grandalhão Jhou, virando-se para mim e para o Natsuno —, mas tá me dando uma vontade enorme de bater naquele cara.
— Calma, grandão — pediu Natsuno. — Sem agressões… por enquanto.
Pedro parecia se divertir com a cena.
Já no refeitório, na hora do intervalo, sentamo-nos em uma das mesas do centro. Não sabia explicar o porquê, mas eu sentia a falta dos três valentões, do professor de História e do diretor assassino. Eu me perguntava onde eles estariam naquele momento. Um dos valentões, Cláudio — que na verdade era um caçador disfarçado —, estava morto. O diretor também. Os outros três vampiros, no entanto, simplesmente desapareceram do mapa. E eu não fazia ideia de como e por quê. De qualquer forma, a única figura assustadora que sobrava na escola era a senhorita Abigail. Ela superava até mesmo o diretor demoníaco.
Como sempre fui um cara observador, avistei o Shin provocando algumas meninas e, em seguida, derrubando os lanches dos “nerds”. Fiquei furioso, cheguei a me levantar para tirar satisfações com ele, e só não o fiz porque Pedro segurou o meu braço, impedindo que eu fizesse alguma besteira.
Shin olhou na minha direção e mostrou o seu sorriso provocador que, novamente, me deixou cuspindo fogo.
— Não caia na provocação dele! — Riku advertiu com rispidez.
Ele estava certo.
— Dio, é verdade que você tá treinando duro? — perguntou Natsuno, tirando-me daquele devaneio.
— Sim... — Eu o fitei com o cenho franzido. — Como você sabe?
— Um passarinho me contou.
— Sei... Pois é, eu estou treinando com o meu tio Michael, que é um excelente treinador.
— Pensei que você já soubesse lutar — disse Riku, em tom arrogante.
— Lutar eu sei, mas estou aprendendo outras coisas.
— Tipo o quê? — Natsuno quis saber, tão curioso quanto o Pedro, que também estava atento à conversa; o grandalhão apenas comia sem parar, praticamente atropelando alguns sanduíches.
— Vocês saberão em breve — eu disse sorrindo, deixando o suspense no ar; mordi a minha esfirra.
A professora Kátia, de Sociologia, estava passando lição no quadro negro, quando alguém bateu à porta:
Toc-toc!
Ela abriu e o treinador Rubens Almeida apareceu, pedindo a ela, sem jeito:
— Desculpe-me, professora, mas eu posso dar só um recadinho ao time masculino do futebol? Aconteceu que terei que ir embora daqui a pouco e cancelar minha aula.
Era até estranho vê-lo falando de forma gentil.
— Claro! — respondeu ela, sorrindo, com as bochechas ruborizadas. Rubens virou-se para os alunos e disse:
— Atenção, time. Amanhã haverá o nosso primeiro jogo do campeonato de futebol.
Era como se ele tivesse dito que o Estado Islâmico planejava lançar um avião-bomba na nossa escola. Isso porque no cartaz dizia que o campeonato teria abertura no dia primeiro de maio, ou seja, duas sexta-feiras depois.
— Por quê? — exigiu Marcelo, o líder do time, tão perplexo quanto a todos.
— Houve uns imprevistos na escola — explicou o treinador, sério — e acabaram adiando alguns jogos.
— Mas ainda nem estamos preparados! — interveio Samuel.
— Estamos sim! — Rubens advertiu, seus olhos cor-de-mel mostrando irritação por detrás de seus óculos. — Já tivemos dois treinos semana passada, o que foi o suficiente. Hoje não poderei treiná-los, portanto se preparem da melhor forma possível, ou então irão passar vergonha. Bom, só vim avisá-los sobre isso. Tragam suas chuteiras amanhã, porque iremos enfrentar o 3° A na última aula.
Ficamos mais surpresos ainda.
Muitos comentários surgiram pela sala, como: "Vamos pegar um 3° ano de cara!" ou "Caramba, vamos levar uma surra!". Até Natsuno mostrava-se preocupado, e o treinador inseriu, com a sua voz grossa e autoritária:
— E, se não vencermos esse jogo, vocês serão duramente castigados. — Ele sorriu melancolicamente. Aparentemente, gostava de ser odiado por seus jogadores, visto que a última frase serviu apenas para acender a raiva do time.
— Calem a boca, seus idiotas! — gritou Shin, ficando de pé com uma ousadia surpreendente. — Vocês estão com medo de quê? Eu estou aqui e vou acabar com a raça desses veteranos. E, se não ganharmos, eu vou acabar é com vocês! — Essa frase deixou todos os garotos ainda mais nervosos, e quase todo mundo partiu para cima dele.
— Você nem é do time, otário! — Marcelo fez questão de dizer, encarando-o.
— Agora é! — replicou o treinador. Todos (inclusive eu) voltaram os olhos incrédulos para ele, sem acreditar em tais palavras. Shin deu seu sorriso provocador. — Como aluno desta classe, ele tem o direito de fazer parte da equipe. Eu mesmo farei sua inscrição amanhã bem cedo. De qualquer forma, nos encontramos lá no campo amanhã às onze e meia. Não se atrasem!
Com isso, Rubens agradeceu à professora e se despediu da sala, direcionando um último olhar na minha direção. Em seguida, a professora voltou a escrever na lousa, enquanto todos os garotos ainda se seguravam para não avançar no coreano do moicano, que apenas ignorava, como se gostasse de provocar os outros.
Quando deu a hora de ir embora, voltei para casa junto de Riku. Caminhamos em silêncio, cada um pensando em uma coisa diferente. Eu não imaginava o que o preocupava, mas os meus pensamentos estavam voltados para Zoe e Sophia. Pensei nelas durante todo o trajeto.
A primeira coisa que fiz quando cheguei em casa foi almoçar, depois subi ao meu quarto para me trocar. Em casa estava apenas a minha mãe e a minha tia. Tio Michael havia ido procurar alguma casa, e Billy provavelmente estava com ele.
Eu estava enganado.
— Au-au! — Ouvi o latido fino do cãozinho, vindo de alguma parte de fora da casa.
Corri até a janela e olhei para o espaço que havia entre a minha casa e a floresta. E lá estava ele, aparentemente me chamando, abanando o rabo com ansiedade. Pulei à sua frente, aterrissando na grama verde na ponta dos pés (o treinamento no Rio de Água Pesada surtira efeito) e Billy disparou floresta adentro, me deixando para trás.
— Billy, espera! — ordenei, mas o cachorrinho vermelho ignorou. Não tive nada a fazer a não ser segui-lo.
Ele não era tão rápido quanto na sua "transformação gigante e assustadora" devido às suas patas curtinhas, mas ainda assim era veloz, desviando fácil das árvores à sua frente e pulando sobre os arbustos e obstáculos. Eu não entendia para onde ele estava indo, até que chegamos até meu tio, que estava parado no gramado que havia entre as árvores e a margem do Rio de Água Pesada.
Estranhei, olhando em volta com a respiração um pouco cansada. Ou eu estava enganado, ou a grama onde o meu tio estava pisando deveria ser alta; ela estava bem aparada e fofinha.
— Por que demorou tanto? — Michael reclamou, com um olhar determinado. Notei que havia uma roçadeira encostada à rocha que meu tio se sentara no dia do primeiro passo do treino.
— Desistiu de procurar casas? — ironizei, caminhando até ele, com o cachorrinho vermelho ao meu lado.
— Digamos que já estão cuidando desse assunto pra mim. E aí, pronto para o terceiro passo?
Essa pergunta me deixou feliz e animado.
— Totalmente!
— Então vamos começar!