Volume Único

Terceiro Ato: Pântano / Pouco Depois do Meio-dia / Céu Nublado

O antigo poço ficava próximo ao limite da província. Ao mesmo tempo que passava um ar de tranquilidade, também passava uma sensação sinistra. Em algum lugar, um tordo cantava e podia-se ouvir o farfalhar distante das árvores que cercavam a região, além do múrmurio do riacho.

O poço ficava logo após um estreito cruzamento, de frente para o rio. Porque será que cavaram bem na frente de um rio? Eu não sei dizer. Provavelmente quando ele foi construído ─ há cem, duzentos anos ─ não havia um rio aqui ou mesmo que tivesse, era perigoso e não podia ser usado. Por enquanto essa informação não é muito importante. A questão é saber quantos assassinos vieram até esse poço.

Eu e o Ayatsuji-sensei viemos investigá-lo devido aos rumores. Para ser franca, não foi uma jornada fácil localizá-lo. Primeiro, eu tive que achar a editora da revista de fofoca mencionada pelo Ayatsuji-sensei para conseguir informações sobre o jornalista do artigo. E então com o jornalista ─ que falava bastante e era bem amigável ─ eu consegui a informação sobre o poço.

“Infelizmente, a matéria sobre ele ainda não está completa.” O jornalista disse coçando a cabeça embaraçado. “Eu pensei em investigar melhor, mas o que eu tenho reunido até agora é somente isso.”

Ele colocou seus dedos indicadores ao lado de ambas as orelhas. Eu não entendi direito o que isso quis dizer. No escritório de recepção da editora, ele me explicou enquanto oferecia o chá.

 “O que sei de fato é que há alguma coisa naquele poço perto do rio Mizuha. Com certeza. E é algo ruim.”

“Algo ruim?” Eu perguntei.

“Sim, algo ruim. …Eu não escrevi isso no artigo, mas…” Ele começou a falar com uma voz baixa de repente, se inclinando sobre a mesa. Parecia estar encenando. “Um advogado amigo da empresa ─  não vamos mencionar o nome ─ cuidou de um caso de assassinato. Quatro pessoas da mesma família morreram num incêndio e somente o marido que por acaso estava fora de casa na hora, sobreviveu. O marido contratou esse advogado, pois estava sob suspeita. Bem, mas parece que não pôde ser indiciado por falta de evidência, no final das contas.”

Eu anotava tudo sem deixar nada escapar enquanto ouvia.

Incêndio. Quatro pessoas. Marido não indiciado.

“E então, depois disso, numa conversa de bar, o cliente falou 'eu mudei depois que fui naquele poço. Ele me fez renascer, é um poço que realiza desejos.’” Depois de ouvir isso, o advogado teve certeza. “Foi ele. Ele matou a família provocando o incêndio.”

“Como pode?” Eu deixei escapar em voz alta. “Então por que ele não foi condenado?”

“A investigação só conseguiu concluir que foi realmente um acidente.” O jornalista deu de ombros. “Foi um incêndio causado por um fogo esquecido ligado na cozinha. Eu também dei uma espiada nos documentos por meio de conexões e era irrefutável. Não importa como olhasse, não havia nenhum vestígio de ter sido criminal.”

Vamos pensar. Um acidente mortal sem ser de natureza criminosa. Ninguém foi provado culpado ─ Um crime perfeito.

“O advogado ficou bem atormentado.” O jornalista fez uma cara de preocupado. “Porque é como se ele tivesse que manter o segredo de um demônio que matou quatro pessoas. Claro que isso faz parte do seu trabalho e ele sabe disso, mas como ele tinha consciência do crime, ele chegou ao ponto de fazer o outro se embebedar para conseguir alguma informação.”

“Entendo. E o que especificadamente aconteceu com esse homem no poço…?”

“Eu gostaria muito de te ajudar, mas… não ouvi até esse ponto. Digo, não eu, o meu amigo. Mesmo ele sendo o advogado, nunca que ouviria a resposta sobre o que provocou o cara a matar a família.”

“Onde esse homem está agora?”

“Eu também procurei por ele, mas se escondeu. Assim que foi liberado pela polícia, ele se mudou sem deixar nenhum rastro.”

Será que é difícil seguir seus passos? Precisamos começar pelo poço de qualquer jeito.

“Ele tinha dado uma única referência ao que parece.” O jornalista fez uma cara misteriosa. “Aquilo é e não é um poço. É um Hokora (pequeno santuário).”

“Hokora?” Não é uma palavra usada no dia a dia.

“Mas não um para reverenciar, está mais para… algo diferente. Se você rezar pedindo para ele te exorcizar e purificar, ele atenderá e te transformará numa pessoa má.”

“Uma pessoa má…”

“Esse marido que foi liberado era um ex-bombeiro.” O jornalista disse com uma cara séria. “Uma pessoa com o dever de proteger os outros do fogo, incendiar a própria família… Investigadora.”

“Sim?”

Quando eu estou investigando fora da Divisão, eu adoto uma outra identidade. Eu agora sou uma investigadora de alto nível da polícia militar.

“Por favor, faça alguma coisa. Eu sou apenas um jornalista de terceira categoria catando as migalhas de cada manhã, mas eu não sou do tipo que consegue dormir esperando que aquela coisa faça sua próxima vítima. Disso eu tenho certeza. Por favor, antes que um monstro enorme saia de lá.”

Com os dedos juntos sobre a mesa, o jornalista se prostrou profundamente. Eu fiquei olhando o topo de sua cabeça sem saber o que fazer, até que desisti e apenas disse “pode deixar.”

“Foi o que aconteceu.”

“Entendi.”

Ele apenas respondeu sem nenhum interesse em minhas palavras.

“O que achou da minha habilidade de investigação, Ayatsuji-sensei? Consegui reunir essas informações todas em tão pouco tempo. Sou incrível, não sou?”

“Sim, estou impressionado. Você só ficou ouvindo. O jornalista falou o tempo todo sozinho. Por sinal, qual era o nome dele?”

“Era Tori alguma coisa…”

“Realmente uma capacidade de investigação incrível.”

Antes que eu pudesse argumentar, ele saiu andando apressado. Tentando segui-lo, eu parei. As árvores farfalhavam ruidosamente.

Está um pouco frio. Apesar de estarmos tão afastados da cidade ao ponto de não haver nenhuma presença, eu sinto como se alguém nos observasse. Dispersando essa sensação estranha, eu apressei o passo e alcancei o sensei.

“Hmm…” Ele disse parado em frente ao poço. “Isso é muito interessante.”

Por detrás das costas dele, eu olhei para o poço.

Era um poço velho com o concreto deteriorado. Do lado de fora havia uma corda meio apodrecida dando duas voltas nele, conferindo-lhe uma aura religiosa. Mas era só isso. Não havia nada que parecesse uma senha secreta escrita em nenhum lugar, nem uma criatura sobrenatural se arrastando dentro dele. Para começar, eu não sentia a presença de Habilidade alguma. Eu não sou nenhuma veterana, mas faço parte da Divisão Secreta de Habilidades Especiais, então tenho mais ou menos um olfato para elas. Em resumo, era apenas um poço velho.

“Um cruzamento, um rio, um poço… Está começando a fazer sentido.” Ele murmurava sozinho. “Tsujimura-kun, está vendo aquilo?”

Sensei apontou para a base do poço.

“Aquilo são… folhas de bambu?”

Eu me aproximei e olhei bem. Por estarem expostas à chuvas e ventos, estavam cobertas de lama, mas sem dúvida nenhuma eram grandes folhas de bambu. Estavam ali caídas.

“Quantas têm no total?”

“Uma, duas… quatro.”

“Quatro, é?”

Ele franziu a testa ao dizer.

“Consegue ver mais alguma coisa?”

“Vejamos…”

Só havia praticamente lama ao redor. Tinha uns cascalhos escuros caídos aqui e ali e algumas pedras arredondadas de cor roxa. Nada além disso.

Eu espiei dentro do poço também. Era bastante fundo. Por causa da mata acima dele, o sol não chegava e eu não conseguia ver até o fim. Apesar de que mesmo se visse, é só um poço seco com lama atolada dentro.

“É só… isso.“

“Só isso? Talvez seja só isso de fato. Para você.” Ele disse sem mudar a expressão. “Olhe bem essas pedras roxas. As pedras na margem do rio são mais pontudas. Essas redondas abrasonadas assim só existem rio abaixo. Elas foram trazidas por alguém.”

“Eh?”

Eu me aproximei e olhei bem para as pedras. As perto das folhas de fato eram diferentes. Eram estranhamente redondas ─ Pedras roxas do tamanho de um olho.

“Quantas têm no total?”

“Deixa eu ver… seis. São seis.”

Eu respondi depois de contá-las. Por precaução eu procurei um pouco mais afastado do poço também, mas só havia as pedras roxas ao redor dele mesmo. Ayatsuji-sensei ficou olhando para o nada por um tempo até que falou:

“Tem sal?”

“Sal?”

Sal… de cozinha?

Pensei em perguntar, mas ele só iria dizer que eu estava fazendo perguntas idiotas novamente, então me contive. Fiquei olhando o chão calada.

Mas sal… assim no meio do nada?

Não me lembro há quantos dias foi, mas choveu nessa região. As folhas de bambus estavam sujas por causa do vento e da chuva. Mesmo que houvesse sal caído por aqui, a chuva o teria desmanchado…

“Não sei.” Eu balancei minha cabeça. “E por que teria sal?”

“Se tem folha de bambu e pedra, então tem sal. Como não sabe disso?”

Nem eu sei porque eu não sei. Ele provavelmente não estava errado, porém eu só pude inclinar minha cabeça.

Depois de inspirar fortemente, ele disse num tom baixo como se recitando:

“Assim como o verde dessas folhas de bambu murcha, que o seu verde também se esvaneça. Assim como o sal seca completamente, que você também seque. E assim como essas pedras afundam, que você também afunde.”

Após terminar de recitar, ficou calado novamente.

Ao seu redor, um ar frio sem precedência, passou como um redemoinho.

“Isso é…”

“Você consegue deduzir pelo contexto. É um encantamento. Ou seja, uma maldição. No segundo volume do Kojiki, o deus Akiyama no Shitabi otoko quebrou sua promessa com seu irmão mais novo. Sua mãe enraivecida fez um amuleto com folha de bambu, pedra e sal e jogou uma maldição nele. Como resultado, Akiyama no Shitabi otoko sofreu de uma enfermidade por oito anos e só foi finalmente perdoado quando pediu perdão à sua mãe.”

“Devia ter se desculpado logo.” Acabei falando o que realmente estava pensando. “Mas… o Kojiki foi escrito há mais de mil anos, não foi? Qual a relação com esse poço?”

“Como sempre você não consegue fazer uma pergunta que preste. O que importa não é a relação, é a intenção. E isso será depois que confirmamos o sal.”

“Mas como que vamos confirmar se não estamos vendo nenhum?”

“Não pergunte o óbvio.” Ele olhou para mim friamente. “Você tem língua pra quê? Lamba.”

…Ehh?

…As folhas?

Eu fiz uma cara de relutância do fundo do meu coração. Vendo a minha expressão, ele soltou um riso apenas com o canto da boca. Por um instante, apenas por um instante, o termo 'pedido de transferência' passou pela minha cabeça.

Não havia dúvidas de que as folhas estavam completamente sujas de lama. Não dava para simplesmente limpar a sujeira para provar se tinha sal ali. Eu peguei uma das folhas e a encarei como se fosse a inimiga de meus pais. Nessa hora, uma ideia veio a minha cabeça como um raio de luz.

“Já sei.” Eu disse. “É só levar para o laboratório analisar.”

“Percebeu.” Ele estalou a língua como se lamentando.

Nós então começamos a procurar alguma pista ao redor do poço.

Porém não havia pegadas ou objeto caído, nenhum vestígio de alguém ter estado ali. Não dava para provar que alguém esteve nesse lugar só olhando as folhas e as pedras. …Será que esse poço realmente é um Hokora que transforma pessoas em assassinos sanguinários? Não dá para confiar nem um pouco só no Kojiki como pista.“

Enquanto eu procurava, observei o sensei de soslaio. Ele não estava procurando ao redor com uma lupa nem especulando nada com seu cachimbo. Estava era passando o dedo na borda do poço. Em vez de um detetive, parecia mais um engenheiro olhando a sua própria construção. Então, pegando seu relógio de bolso, levantou ele na altura do sol. Depois, segurando pela corrente, o pendurou dentro do poço como se procurasse por alguma presença ali. Ficou sem se mover.

“Está captando alguma energia?” Eu perguntei. “Desde quando se tornou um detetive paranormal?”

“Se tudo fosse resolvido captando energias, meu trabalho seria fácil.” Ele me olhou severamente. “Não existe algo conveniente assim. Quem mata uma pessoa viva é outra pessoa viva. Em quase todos os casos, claro.”

“…?“

Eu olhei para sua expressão ao dizer essas palavras estranhas. Como sempre, estava congelada feito uma pedra de gelo.

Ele ficou olhando o poço, calado, por algum tempo até que do nada virou de costas e saiu andando.

“Sen-Sensei?” Eu disse para as suas costas.

“Acabei de investigar. Vamos voltar.”

“Como assim voltar…” Eu fui atrás dele confusa. “Mas não encontramos uma pista sequer… Por acaso você percebeu algo?”

“Não percebi nada. Desisto.” Ele disse olhando para frente.

“Desiste?” Eu fiquei surpresa. Nunca tinha ouvido ele falar essa palavra.

“Sim.”

Eu andava atrás dele apressadamente. Seus passos eram largos, então mesmo quando andava no ritmo normal, era rápido. A menos que eu desse uma corridinha, logo ele se afastava.

Desistir, tentativa em vão, sem pistas. Essas são palavras que pareciam não estar em seu dicionário.

Mas como se tivesse perdido o interesse no poço, ele saiu andando sem olhar para trás. Só me restava segui-lo.

Nós entramos no carro e voltamos para a cidade. Durante todo o tempo, Ayatsuji-sensei ficou olhando fixamente para o nada como se estivesse vendo alguma coisa invisível.

Eu ficava volta e meia olhando pare ele enquanto dirigia. O que será que ele está pensando? Será que ficou chateado de não encontrar nenhuma pista?

Pode ser que isso ocorra às vezes, eu pensei. Diante de um enorme Mal deixado de repente diante de seus olhos, é impossível segui-lo. Sem nenhuma pista, nem o próprio Criador consegue chegar até a verdade. Talvez houvesse casos assim. Talvez hoje tivesse sido um desses para o sensei.

“Não se preocupe.” Eu disse animadamente. “Nós vamos levar a folha para o laboratório e além do mais, é estranho que o poço fosse o motivo de todo o Mal. É só um poço velho. Também não encontrei em nenhum documento da Divisão sobre uma Habilidade que torne as pessoas más. Certamente há alguma outra pista--”

“Alguma outra pista?” Ele falou de repente. “Tsujimura-kun, você realmente acha que tem? Aquele poço era a nossa primeira e última pista. Justamente por ser um poço.”

“Como assim por ser um poço…” Eu pendi minha cabeça enquanto dirigia. “Havia mais dez poços ali. Por que está tão fixado em poços?”

Pensando bem, desde o começo ele estava cismado. Desde o começo ele reagiu nervoso à palavra poços. Eu fiquei intrigada quando o jornalista falou que certamente havia algo nele, mas no final das contas foi só isso. Foi só uma coincidência o assassino do caso do acampamento e o incendiário que matou a família terem passado perto do mesmo poço. Porém, não dá para afirmar que ele é a raíz de todo o Mal só por causa disso.

“É fácil surgirem coisas ruins de um poço.“ Ele disse distorcendo um pouco os lábios. “É por esse motivo.“

“Coisas ruins…? Mas--”

Se não me engano, o jornalista estava com a mesma expressão.

“Você conhece a história de Sarayashiki?”

Ele perguntou inesperadamente.

“Sarayashiki… aquela história de terror?“ Eu busquei em minha memória. “Se não me engano, um fantasma ficava contando pratos noite após noite até que disse ‘está faltando um.’”

“Isso. Eu também não sou especializado nesse assunto, então só estou repetindo o que ouvi de um certo homem, mas… essa história é um tema do Kabuki e do Joururi. Em Himeji, era a peça Sarayashiki de Banshuu. Em Edo, a Sarayashiki de Edo. Tosa, Izumi, Amagasaki. Até hoje é contada por todo o Japão.

“É… É mesmo? Eu não sabia.“ Para uma lenda ser transmitida tantas vezes ao mesmo tempo por todo o Japão, será que antigamente, faltavam tantos pratos assim? 

“O que tinha em comum em todas as peças era que o fantasma saia de um poço. Ele não aparecia nas residências e nem em nenhum outro canto. E há muitas outras lendas em que espíritos saem de poços. Até porque é comum um poço ser visto como um lugar sagrado e por causa disso ser divinizado. Dependendo da região, ele é uma estrutura sagrada que abriga o deus da água, Mizuha no Meno. Atualmente, é bem difundida a ideia deles serem uma conexão com o outro mundo. Na era Heian, o Ono no Takamura, um alto oficial do governo, usava um poço que era a entrada para o submundo para ir todas as noites até o inferno. Ele era conhecido como ajudante do Grande Rei Enma.”

De dia um oficial, de noite ajudante do rei demônio. Hoje em dia seria um trabalhador duro.

“Aquele poço estava próximo ao rio na borda da província e havia uma encruzilhada por perto. Ou seja, é uma fronteira. Desde antigamente, histórias de fantasmas são associadas à esses locais de limite, não apenas poços, ou seja, a pontos de conexão entre esse e o outro mundo. Em outras palavras… um lugar fácil para surgirem coisas ruins.”

“Então quer dizer que é isso? ─ Aquele poço de fato sugere coisas ruins aos outros?”

“Pelo menos há componentes nele que fazem acreditar nisso.”

Inclinei minha cabeça para o lado.

“Então realmente foi um espírito que provocou o incidente? Ele concedeu o Mal para quem desejou e possuindo o assassino, cometeu o assassinato…”

Ao dizer isso, senti um frio na espinha. Não queria ficar responsável por esse caso se possível.

“Até parece.”

Refutando a hipótese com seu tom de sempre, ele me deixou um pouco aliviada.

“Não existem espíritos e mundo após a morte. Pelo menos não tem a ver com esse caso. A questão é o mandante ter armado como sendo desse jeito.

“Mandante…?”

“Sim.” Ele disse olhando para fora da janela. “Poços são a preferência dele.”

Preferência. Armação. Mandante.

Percebi algo vagamente. Não tinha como não perguntar agora.

“Ayatsuji-sensei, sobre a organização desse caso e seu mentor, você já… sabe quem foi?”

Ele não me respondeu de imediato. Freei no sinal vermelho diante dos meus olhos. Poucos carros passavam no cruzamento logo à frente. Quando o sinal abriu, ele então falou:

“A essência do medo de espíritos é não saber sobre eles. Algo que dá para prever seu mecanismo e conduta não é uma aparição. Essa é a diferença entre espíritos e Habilidades. As Habilidades funcionam como um sistema e não dão margem para estranheza. A pessoa que arquitetou esse caso, sabia muito bem disso e se aproveitou desse fato.” Ele disse batendo seu cachimbo. “Eu medi a circunferência externa do poço com meus dedos. Tem aproximadamente 232 centímetros. Dividindo pelo pi, temos o diâmetro. Mais ou menos 74 centímetros. Colocando sua mão aberta na borda do poço e ajustando seu olho para que o comprimento de seu dedo e o diâmetro sejam o mesmo, dá para calcular a profundidade usando o princípio da triangulação. O meu polegar tem mais ou menos 6 centímetros e a distância do meu olho até minha mão é de 36, por ai. Calculando facilmente a profundidade dá uns 407 centímetros. Desconsiderando alguns erros.”

Eu fiquei abismada. Agora que falou, ele realmente ficou contornando o poço com os dedos e deixou a mão aberta virada para o fundo do poço. Então ele não estava procurando por uma energia estranha e sim medindo a distância até o fundo. Mas para quê…

“Mais uma coisa. As seis pedras redondas e as quatro folhas. Tem um sentido para esses números. A sexta hora que dividia um dia em doze, a Hora da Serpente antigamente também era chamada de a quarta madrugada porque badalavam o sino quatro vezes. Hoje em dia seria equivalente às dez horas.”

Sexta hora… Quatro badaladas. Os números batem.

“Na estação em que estamos, o ângulo do sol na quarta madrugada é de aproximadamente 68 graus. Você lembra do seno e do cosseno? Se o diâmetro é de 74 centímetros, a profundidade, 407. Quando o sol bater nele à 68 graus, ele vai iluminar até uns 224 centímetros. Amanhã venha investigar por aqui nessa hora. Deve acontecer alguma coisa.”

Eu não consegui compreender tudo imediatamente. Ele que parecia não estar fazendo nada na frente do poço, na verdade estava pensando em tudo isso.

“Mas por qual razão construíram o poço desse jeito?”

“Para ser fonte de assombração, é claro. O truque da ilusão, a trapaça é que o espírito são folhas secas. O que aquele jornalista falou sobre ele?”

“O poço é um Hokora que faz das pessoas que o reverenciam más…” Eu tentei lembrar certo.

“Essa é a verdadeira identidade.” Ele fechou os olhos. “Ou seja, um código. O poço não é um Hokora que faz as pessoas serem más, ele é um teste de seleção para ver quem tem inteligência e paciência para executar o Mal. Provavelmente aos 224 centímetros dele há uma pista para a próxima localização e quem for solucionando os obstáculos seguintes conseguirá a informação de como cometer um crime perfeito. Se entraram no poço e olharam a pista que está a um pouco mais de dois metros de altura, ou os dois tinham as ferramentas apropriadas ou estavam dispostos a se cobrir de lama. Para ter a perseverança e conhecimento de chegar até esse ponto, sem dúvidas são pessoas que estão em situações complicadas. E pessoas com essa disposição conseguirão exercer plenamente as sugestões de um crime perfeito ─ Ou seja, se tornarão más.“

Fiquei de queixo caído. O poço não era um Hokora nem um portão para o outro mundo, e sim um teste? Os assassinos foram as pessoas que conseguiram realizar os obstáculos?

De fato aqueles que passaram no teste não podem revelar seu conteúdo. Senão não seria um crime perfeito e todo mundo descobriria. Por isso que uma terceira pessoa ouve apenas o rumor de que alguém foi lá e se tornou má, sentindo uma estranheza sem saber a verdadeira identidade daquele local.

“É preciso solucionar o sistema desse poço projetado perfeitamente.“ Ele falou. “E precisamos destruir o verdadeiro objetivo escondido em seu fundo. Caso contrário, assim como no caso da criança morta por botulismo, teremos uma epidemia de crimes impossíveis de serem solucionados. Se não capturarmos o quanto antes a pessoa que construiu esse sistema e impedi-la ─ o número de homicídios multiplicará em centena de vezes comparado ao dos outros países.”

Sua profecia ecoou sinistramente pelo carro, reverberando pelo meu corpo. Desde quando ele havia percebido esse sistema? Quem o construiu e com que objetivo? Infinitas perguntas que eu gostaria de fazer inflavam dentro do meu peito.

“…Ah.” Foi o que saiu da minha boca. Era de longe a pior pergunta de todas. “Você disse que não sabia de nada lá no poço e voltou só porque não queria se sujar de lama?!”

“Amanhã, nem que traga um colega junto para se sujar de lama no seu lugar, venha.” Ele deu um sorrisinho com o canto da boca. “Torço para que ocorra tudo bem, assistente.”

 

✦ ✦ ✦

 

Yukito Ayatsuji andava. Sem falar nada, sem companhia, andava pelo estreito beco. O céu estava azul e os prédios mais azuis ainda. As finas nuvens e as folhas secas eram levadas para o oeste na mesma velocidade.

O olhar do Ayatsuji que andava sozinho era frio. Mesmo com os diagonais raios de luz cortados pelos prédios o atingindo, o frio que transbordava de seus olhos não reduzia.

Ele virou uma esquina e entrou numa rua ao lado de uma construção abandonada. À essa altura, os atiradores estavam comendo mosca. O alvo de monitoramento de Classe Especial havia sumido novamente.

Alguns dias atrás, ele soube que finalmente haviam conseguido conter o seu truque da janela dupla. A cabeça da pessoa no comandando do pelotão estava a ponto de sair voando.

Mas mesmo que isso acontecesse, havia um motivo pelo qual ele tinha que sair.  ─ Ele estava com um pressentimento.

Do seu lado direito havia uma alta grade de metal esticada. Provavelmente, para proteger o maquinário da construção no terreno de ser roubado. Em cima dessa grade, o arame farpado impedia até mesmo o alto Ayatsuji de passá-la.

Não havia ninguém na obra, nem no beco pelo qual andava. Não havia uma presença se quer.

“Há quanto tempo, Ayatsuji-kun. …Parabéns por descobrir o poço.”

Uma voz saiu das profundezas do inferno.

Ayatsuji não se virou. Apenas parou e piscou lentamente duas vezes. Puxou o ar e o soltou. Cerrou o punho e o abriu novamente. Fechou os olhos. Era necessário esse tempo para que pudesse falar. E então abriu sua boca:

“Realmente era obra sua. Você tem ideia do desconforto que senti ao citar o Kojiki?”

Ele se virou. E na sua frente, viu uma certa figura.

Roupas tradicionais em trapos. Um olhar lamacento contendo a engenhosidade de mil anos. Covinhas em suas bochechas.

Sem sombra sob seus pés, parecia um fantasma.

Do outro lado da cerca, ele estava sentado sobre uma velha pedra coberta de musgo, rindo despreocupadamente.

“Fico feliz pelos meus ensinamentos terem sido úteis mais do que tudo.”

Dentro dos olhos de Ayatsuji, o velho ria satisfeito.

“Você é um homem que me deixa extremamente desconfortado, Kyougoku.” Ele estreitou os olhos. “Que tal eu chamar um pelotão da Divisão aqui para soltar fogos em sua homenagem?”

Ayatsuji estava agarrado no arame da cerca, o encarando. O barulho do metal sendo esmagado ecoava pelo beco.

“Você sabe muito bem, Ayatsuji-kun, que será inútil.” Kyougoku gargalhou. “Eu vim considerando que pudesse fazer isso. Porque eu sou um homem covarde.”

Ayatsuji apertou os olhos.

“Naquela hora ─ Em cima da cascata, você disse que comparado a ‘cerimônia’ que começaria, nossas disputas até agora foram apenas como uma inauguração e se jogou.”

“Buhahaha. Até eu fiquei tenso com aquilo. Já que foi a primeira vez que eu experimentei a morte.” Ele ria sem perder o entusiasmo.

Yukito Ayatsuji e Natsuhiko Kyougoku. O confronto dessas duas pessoas misteriosas em cima de uma cascata há dois meses deveria ter posto um fim em tudo. Não há quem seja capturado pela Habilidade do Ayatsuji de morte acidental e consiga sobreviver ─ ao menos, não deveria.

“…”

Sem falar nada, Ayatsuji ficou observando com atenção a figura do outro lado da cerca. Se um pedestre qualquer passasse e o visse, ele teria seus órgãos convulsionados e vomitaria violentamente. O que havia nos olhos do detetive era uma verdadeira intenção de matar. Uma intenção feito uma foice meticulosamente afiada.

“Pelo jeito, nem te matando você parará.” Ayatsuji disse sem esconder sua hostilidade. O frio que escapava de sua boca congelava e rachava o ar ao seu redor. “Muito bem, eu vou entrar na sua brincadeira, necromante. Na sua tal ‘cerimônia'. O meu papel vai me distrair do meu tédio, tenho certeza.”

“É claro.” Dizendo isso, Kyougoku riu novamente. E como se tivesse lembrado sem querer, acrescentou. “As vidas de inúmeras pessoas dependerão de seu trabalho duro. Esforce-se.”

─  Temos que capturar o quanto antes a pessoa que construiu esse mecanismo e impedi-la, senão o número de homicídios multiplicará em centena de vezes comparado ao dos outros países.

Ayatsuji recordou de suas próprias palavras. Ele revelará a cerimônia do Kyougoku e impedirá sua conspiração. Desse modo, se acertará com o destino.

De maneira inesperada, Kyougoku levantou a sobrancelha e perguntou:

“Você sabe o que é um Mizuchi?”

“Mizuchi?” Ayatsuji estreitou os olhos.

“O mais antigo de todos seria o da Terra Média de Kibi, um dragão místico que habitava o fundo do rio Kawashima. Também conhecido como o dragão do décimo sexto poema incluso no Man'youshuu, do Sakabe no Ookimi. E em outra hora, o dragão de Gishiwajiden. Um metamorfo com várias formas e vários nomes, mas, em resumo, uma junção entre cobra e dragão que vive na água. Esse será seu próximo oponente.”

“Uma cobra?” A voz do Ayatsuji ficou ainda mais baixa. “Está dizendo que cobras matarão pessoas?”

“Exato. Legal, né?” Kyougoku encolheu os ombros. “O próximo sacrifício vai ser comido por um Mizuchi que sairá se arrastando do poço. Bem, isso é um aviso. O que irá fazer, Detetive Assassino? Nem você conseguirá salvar a vítima de uma cobra monstro.”

Um aviso. Será comido por um Mizuki que sairá se arrastando do poço.

“Realmente era o poço.” Ayatsuji disse fechando os olhos. “Então tem mais um terceiro assassino que adquiriu o conhecimento lá?”

“Será?”

“Usuário de medidas externas.” Ele disse como se vomitando. “Eu também vou te dar um aviso. Da próxima vez, te matarei com muito mais cuidado.”

“Não poderia receber elogio maior.” Kyougoku riu se divertindo. “Então, vamos receber uns convidados para o nosso novo jogo. É um singelo evento que ofereço. Olhe atrás de você.”

Ayatsuji se virou rapidamente. No final do beco havia duas figuras ─ Um homem e uma mulher. Cada um segurava um revólver. As armas tremiam.

“Vo-Você é-é o Ayatsuji-san?” O homem perguntou.

Ele não respondeu.

Um homem de terno e óculos e uma mulher de cabelos na altura dos ombros. Os dois ali em pé pareciam ter entre trinta e pouco e quarenta anos; nenhuma característica especial. Ambos usavam anéis que combinavam no dedo anelar da mão esquerda. Eram um casal.

“Yosuke… Eu… Eu não consigo.” A esposa disse tremendo. Estava enxugando as lágrimas com a mão que segurava o revólver.

“Está tudo bem, Ritsuko. Não precisa ter medo. É só fazer como nos disseram.” O marido respondeu chorando e rindo ao mesmo tempo. Sua respiração estava pesada.

Um casal segurando revólveres e chorando. Ao observar os dois, Ayatsuji logo chegou a uma conclusão. Eles não vieram dar um tiro nele. Eles ─

“Soltem as armas.” Ele rosnou grave.

“Um homem que eu não sei o nome disse que pagaria a cirurgia de uma de nossas filhas.” O marido disse com os dentes tremendo. “E disse que se nós o obedecêssemos, pagaria a da outra.”

“Yosuke, eu-eu-eu estou com medo demais. Eu não…” A esposa fechou os olhos chorando.

“Não fique com medo, Ritsuko. É pelo bem delas. Não foi o que decidimos? Vamos…”

O casal tremendo, diante dos olhos do Ayatsuji ─ apontou as armas para a cabeça um do outro.

“Parem.” Ayatsuji disse mostrando os caninos e dando um passo para frente. Uma raiva que ele nunca sentiu surgiu como um redemoinho em seus olhos. “Abaixem as armas. Esse homem só está brincando com as suas vidas.”

“Nós sabemos.” O marido disse sorrindo enquanto secava as lágrimas tremendo. “Mas para nós é sério. …Vamos, Ritsuko.”

“Deus… Sim, vamos…”

Ambos apertaram os olhos.

“Parem!”

Ayatsuji gritou indo para frente. Ele estendeu sua mão na direção das armas. Mas não deu tempo.

Os dois atiraram na cabeça um do outro ao mesmo tempo.

O sangue vermelho escuro e a massa cinzenta jorraram no beco. As paredes foram pintadas pelo vívido vermelho.

O casal sem metade das cabeças foi empurrado para trás com o impacto do disparo. Caídos sentados no chão, se tornaram apenas um pedaço de carne. A única que sobrou em pé foi a longa sombra do Ayatsuji.

“Sangue é uma coisa chamativa. E bela ─ ainda mais o escarlate derramado por amor em uma nevasca.”

“Kyougoku… Seu maldito…!”

“Eu sou um pesquisador. Investiguei bastante sobre a sua Habilidade. Não tem como ela reconhecer o homem que pagou a cirurgia como o assassino. Não é?

Ayatsuji socou a grade. Kyougoku já não estava mais ali.

“É essa cara, Ayatsuji-kun. …Eu queria ver era essa sua cara. Até. Me divertirei com a minha feitiçaria.“

A voz do Kyougoku que não estava em nenhum lugar ecoou até desaparecer.

Deixado sozinho, Ayatsuji apertou a grade ao ponto de sua mão sangrar e de cabeça baixa, permaneceu.

O sangue vermelho foi se espalhando lentamente pelo beco.

 

✦ ✦ ✦

 

A notícia chegou num piscar de olhos na Divisão. Eu fui chamada ao Ministério Interior para uma explicação. Claro que não havia o que eu pudesse explicar. Aquele monstro ─ Kyougoku estava vivo. O homem que deveria ter morrido após cair de uma cascata.

Por quê? Como? Várias agências procuraram exaustivamente pelo corpo que não boiou. Não tinha como sobreviver caindo daquela altura.

Além disso, sua vida havia sido capturada pela Habilidade do Ayatsuji-sensei. Pela habilidade de causar uma morte acidental. Ninguém até hoje havia conseguido escapar dela.

Enquanto eu estava no branco Ministério Interior, Sakaguchi-senpai ficou o tempo todo calado com uma cara brava. Quando terminei de dar satisfações e ele ia voltar para a base, ele apenas falou “por enquanto, vá reunir informações.” Usei todas as minhas forças para respondê-lo. Foram palavras sinceras.

Eu tinha uma ideia do que aconteceu.

Dezoito horas depois, eu estava em uma estação de tratamento de esgoto no subúrbio. Segurando documentos em uma mão, apoiada na parede. O ambiente estava quieto. O barulho de uma gigante máquina de processamento ressonava de algum lugar.

As estações de esgoto de hoje em dia são bem limpas. A água não fede e não há um traço de lama nas paredes. Limpa, inorgânica e vazia. Os funcionários operam as máquinas por computadores em um escritório dois quilômetros afastado daqui. Por isso não tem ninguém.

É um lugar perfeito para um encontro secreto sem que o inimigo saiba. Não há uma pessoa se quer no corredor em que estou. Há apenas um tubo meio enterrado na parede. Não há nenhum lugar onde daria para colocar uma escuta ou em que alguém pudesse se esconder para espiar. Está totalmente deserto.

Ao pensar que pareço estar num filme de espião, achei engraçado. Se isso realmente fosse um filme de espionagem, eu não estaria aflita como se meu estômago estivesse queimando. Porque num filme, o mal sempre é derrotado. A questão é só como vencerão. Mas comigo é diferente.

Eu não consigo me ver vencendo o inimigo ─ aquele homem misterioso.

Escutei passos vindo de longe. Um caminhar tranquilo. Estranhamente me sinto aliviada só em ouvi-los.

“Que belo lugar foi escolher, hein.” Uma voz baixa e fria disse. “É coisa de gente de segunda categoria se preocupar com o lugar, agente secreta.“

A porta nos fundos abriu e uma figura humana apareceu.

“Ayatsuji-sensei.” Eu disse.

“Você devia demonstrar mais apreciação pelos seus colegas de trabalho. Não imaginou o desespero dos atiradores quando descobriram que eu peguei um táxi sozinho lá do escritório? Eu me pergunto se valeu a pena.”

“Eu encontrei o código que havia no fundo do poço.” Eu disse segurando os documentos.

“Oh.“ Por detrás dos óculos escuros, ele levantou levemente uma das sobrancelhas.

Enquanto eu mostrava o material para ele, disse:

“Foi como você falou. Havia três rachaduras na altura da metade do poço. Finas e profundas rachaduras que não dão para ver o fundo a menos que recebam a luz do sol por volta do meio-dia. No meio delas havia pedaços de plásticos enfiados. Pedaços tão pequenos que só deu para pegar com uma pinça. Nos três havia uma coisa escrita. Tem uma foto ampliada ai.”

Apontei para um dos documentos. Ele pegou e olhou.

“978-0-”

“5-19-1”

“198-57”

Em cada pedaço estavam escritos esses números. Ayatsuji-sensei olhou calado para as fotos, franzindo o olhar.

“Por precaução,  me desfiz dos três pedaços de plástico. Não há possibilidade de um novo ‘crime perfeito’ ser executado com eles. O poço está sendo monitorado também…”

“Não adianta.” Ele disse na hora. “Não acho que aquele seja o único poço. Outras aparições estão sendo preparadas.”

“Aparições?”

“Sim.” Ele disse após me lançar um olhar aguçado. “Pelo menos tem um motivo para ele querer que eu pense assim. Eu só ainda não sei o que é.”

Eu acenei com a cabeça. Ninguém consegue compreender o que aquele homem pensa. A única coisa que sabemos é que se ele continuar solto, teremos uma vítima após a outra.

“Esses pedaços de plástico são códigos, não são?”

“Sim.”

“Se o resolvermos, estaremos um passo mais próximo dele?”

“Sim.”

“A equipe de criptografia da Divisão já está tentando resolvê-lo. Eles usaram um programa de decodificação especial, mas ainda está rodando. Dentro de alguns dias dará o resultado.”

“Dentro de alguns dias?” Ele levantou a cabeça. “Eu acabei de decifrar, já.”

“Eh?” Por um instante, eu não entendi o que ele disse. “Decifrou… agora, você quis dizer?”

“Por que tá com essa cara de peixinho dourado? Não era um código tão difícil assim.” Ele apontou para a foto. “Não precisa de imaginação nem criatividade. Pense um pouco você mesma.”

Olhei para as fotos com os códigos escritos após o pedido. “978-0-”, “5-19-1”, “198-57”. Três sequências escondidas separadamente no poço. A ordem não necessariamente era essa. Cada um era um código independente ou estavam ligados formando um único número?

Quando me mostraram o material, eu tentei pensar, mas nada me veio a cabeça.

“5-19-1” poderia ser uma data e hora. Uma hora do dia 19 de março? Mas os outros não pareciam ser isso. E se mudássemos para o alfabeto? A quinta letra é “e”, a décima nona é “s” e a primeira é “a”. …Mesmo se fosse e os demais? “198-57” seria o quê? Não tem esse número todo de letras. Então…

Ayatsuji-sensei disse calmamente:

“As pessoas gostam de jogos para decifrar. Mas um erro que elas cometem bastante é esperar que sempre haja um método certo de decifrá-los. Me empresta.”

Pegando os documentos, ele apontou para as sequências.

“Essa é uma única sequência. É estranho que termine com um hífen no primeiro então dá para facilmente deduzir o resto daqui. A ordem é ‘978-0-’, ‘198-57’, ‘5-19-1’. Depois é só questão de conhecimento.”

Ele apontou para uma das fotos. O primeiro número, 978. Será que consegue perceber? Um professor de literatura também conseguiria decifrá-lo. Esse número aparece em muitas publicações, é o prefixo mais comum no mundo.“

“Publicações? Como assim publicações?”

“Existe algum outro significado para publicação?” Ele me olhou com olhos frios. “Esse número é do  ISBN. Cada publicação no mundo tem um número próprio. Não existem dois repetidos. Antes eram dez dígitos, mas em 2007, como preparação para a falta de números, passaram a ser treze. Esses três números a mais é o 978. Praticamente todas as publicações hoje em dia usam eles. Também estão impressos no código de barras que vem na parte de trás.”

“Então essa sequência…”

“Está indicando um livro que existe. '978-0-198-575-19-1'. O 978 é um número fixado e o 0 se refere a língua. Inglês. O '198-575-19' se refere a editora e o número da publicação. O 1 no final é atribuído automaticamente para fins de checagem. Como é sempre um único dígito por último, então dá para definir que a '5-19-1' é a terceira sequência. …Ou seja, essa sequência toda está indicando um livro em inglês. Se procurar na internet, vai encontrá-lo facilmente.”

Eu peguei o celular correndo e pedi para que a Divisão investigasse. E assim como o sensei me disse, eles acharam em segundos.

Agradeci e desliguei.

“Descobrimos. A editora é a Universidade Oxford.” Eu disse para ele. “É a primeira edição de um livro chamado ‘The Selfish Gene’, por Richard Dawkins. Foi publicado em 1976.“

“Aquele livro, é?” Ele franziu as sobrancelhas. “É um livro científico famoso. O título em japonês é ‘O Gene Egoísta.' …Mas é inesperado. Eu pensei que seria um livro folclorístico e de lendas se tratando do poço.“

“E esse é sobre o quê?”

“Em resumo é um estudo sobre genes e meme.”

“Meme?”

“Pelos fundamentos da biologia, um gene se replica por reprodução e é passado para à posteridade. Já um meme se replica por meio da comunicação, sobrevivendo à posteridade. O livro discute essa definição.”

Por comunicação? ─ Eu entendo que o gene é algo transmitido dos pais para os filhos, mas eu nunca ouvi falar sobre memes.

“Mais específico, se refere a religião, cultura, língua e ética. Por exemplo, o Papai Noel não existe, mas ele é transmitido e propagado pelas conversas entre as pessoas e a mídia, podendo ser visto em vários pontos do planeta como qualquer outro ser. Ou seja, ele é uma forma de vida que se multiplica não por genes, e sim por memes. A razão de podermos ver a religião e cultura de mais de mil anos atrás em nossa vida diária como algo comum é que a informação tem a mesma capacidade de auto-replicação e proliferação dos genes. Com isso o 'The Selfish Gene' foi pioneiro nessa teoria sobre o meme.”

Eu acenei a cabeça.

“Entendi vagamente, por isso me explique melhor depois, por favor.”

Ele me olhou de maneira fria.

“Tsujimura-kun, por que você acha que eu consegui decifrar o código? Porque eu tenho o conhecimento sobre números de livros, que normalmente não são lembrados só de ouvir, na minha cabeça. Essa é a singela diferença entre eu e você. É um livro no nível de educação geral e tem traduzido. Leia-o você mesma.”

“Ugh.”

Depois dele ficar me encarando por um tempo, “Que 'ugh' foi esse?”, ele perguntou.

“Saiu sem querer. Porque eu estava um pouco frustrada.”

“Entendi. Pensei que o sapo que você comeu ontem de noite tinha sido esmagado no seu estômago.”

Nessa hora, a mesma porta pela qual ele veio, abriu.

“Aqui é o local da reunião?”

Um homem de terno apareceu.

“Investigador Asukai.” Eu disse me virando para ele. “Muito obrigada pelo seu trabalho duro.”

O homem de terno e chapéu ─ o investigador Asukai levantou a mão e veio andando em nossa direção. Um corpo robusto. Seus movimentos eram calmos e não possibilitavam aberturas. Usava luvas de couro escuras. 

“Desculpe-me o atraso, Tsujimura-chan. Não é o suficiente para me desculpar, mas trouxe esses vegetais em conserva de Kyoto para você. Eu fui na minha folga da semana passada.”

“Hah.”

Com movimentos extremamente suaves, Asukai-san tirou do bolso interior do seu terno o pacote de vegetais e me entregou. Aceitei automaticamente. Ele colocou o pacote a vácuo e sem embrulho ligeiramente na minha mão.

“Há quanto tempo, Ayatsuji-sensei.”

“Você, é?”

Ele cumprimentou o sensei e mais uma vez retirou um pacote de vegetais em conserva do bolso de maneira natural.

“Tem para o senhor também.”

Sem se agitar, ele colocou o fino cachimbo na boca. Não parecia que aceitaria.

“Eu já me acostumei com seus hobbies estranhos, mas eu não gosto de coisas com cheiro.”

“Oh, é mesmo?”

“Sim. …Bem, o pepino em conserva que você me deu há um ano e cinco meses não era ruim.”

O investigador Asukai fez outro gesto de agradecimento e mais uma vez sem fazer nenhum barulho, tirou outro pacote do bolso elegantemente.

“Por favor.”

“Você tinha aí com você?”

Ayatsuji-sensei aceitou o outro pacote oferecido com relutância. Como aquele bolso funciona?

“Tsujimura-chan, eu te dei sem perguntar, mas há algum vegetal que você goste mais?”

Quando ele foi se aproximando de mim com a mão dentro do terno, eu logo respondi “Não tenho, não tenho,” balançando a minha mão em pânico.

“Humm, o informante que mencionou era esse tarado por vegetais em conserva?”

“Sim.” Eu assenti. “Ele é um investigador de alto nível da polícia militar e acompanha o caso do Kyougoku há muitos anos. Não seria exagero dizer que todas as informações relacionadas a ele passam pelo investigador Asukai.”

Um investigador de alto nível da polícia militar. Um profissional que luta contra o crime na linha de frente. Diferentemente da Divisão que atua de forma secreta por trás dos panos, ele é um profissional que constantemente comanda as investigações e persegue os atrozes crimes sem se preocupar com demarcações e regiões. Ele não combina com a superficialidade da sua rude aparência.

“Desculpe-me chamá-lo sabendo estar muito ocupado, mas tenho algumas perguntas que gostaria de fazer.”

“Se você me chamou aqui, então é sobre aquele caso, certo?”

Ele grunhiu cruzando seus grossos braços.

“Eu fiquei sabendo, Ayatsuji-sensei. Sobre ele ter aparecido novamente… É de fato bem estranho. Tenho certeza de que você o matou naquela cascata dois meses atrás.”

 “Sim, matei. Mas parece que nem isso é o suficiente para pará-lo.” Ele disse calmamente enquanto fumava.

“É sobre isso sim. Investigador Asukai, poderia nos contar em detalhes como foi a investigação após a queda?“

“O que aconteceu com ele? Tudo bem.”

Ele franziu.

“Vou direto ao ponto, não encontramos o corpo. Porém tenho certeza de que ele morreu.”

Como se querendo saber minha reação, ficou olhando para mim de relance.

“Não… encontraram o corpo?”

“Sim.” Ele pegou um cigarro e olhou para o Ayatsuji-sensei. “Posso?”

O sensei levantou o queixo apenas o suficiente para que pudesse ser entendido. Ao receber a confirmação, o investigador Asukai acendeu o cigarro. E então começou a falar.

“Aquele caso ─ no dia em que doze pessoas morreram em um museu no meio do nada, eu recebi um telefonema da Divisão logo após o entardecer. Eles queriam a nossa cooperação para cercar e apreender o mandante que já haviam encurralado. Com base nas informações, nós cercamos a cascata prontamente. Foi logo após o cerco que ficamos sabendo da queda dele  ─ do Kyougoku.”

Eu concordei. Também lembrava desse momento. Tudo começou com a tragédia naquele museu afastado ─ A terrível tragédia em que as 12 pessoas presas dentro do museu mataram umas as outras. Aquelas pessoas foram enganadas com a informação de que entre elas havia um assassino sanguinário. Essa informação as cegou como as mãos de um demônio, provocando suspeitas e terminando numa matança por uma briga trivial. Os detalhes medonhos dessas pessoas matando umas as outras com facas de cozinha e ferros de fogo estão registrados nas câmeras de segurança.

No fim, o último que sobrou foi espancado por alguém e morreu. Foi o Ayatsuji-sensei quem percebeu que o Kyougoku havia instigado essa matança por de trás dos panos. Ele o encostou contra a parede e o confrontou diretamente em cima da cascata. Sentindo que havia perdido, Kyougoku se atirou do precipício ─ foi o que eu ouvi.

“Quando eu ouvi que ele havia se jogado, a primeira coisa que me veio a cabeça era a possibilidade de ser uma encenação.” O investigador Asukai falou e então olhou para o fogo do cigarro. “Mesmo que fosse de cima do prédio mais alto do mundo, não podemos baixar a guarda. Mesmo que ele tivesse pulado no meio de uma queimada, temos que ser cautelosos. Porque estamos falando do Kyougoku. Eu ordenei meus subordinados para que bloqueassem a área completamente. Os arredores estavam totalmente cercados sem deixar passar nenhuma trilha ou passagem secreta. E então fomos afunilando em direção à cascata.”

Como eu fui correndo para lá atrasada, eu sabia o que estava acontecendo. Não tinha como ele fugir daquele cerco. A equipe de procura da Divisão também estava lá. Mesmo que ele tivesse uma Habilidade que o permitisse voar ou mergulhar debaixo da terra, não tinha como enganar a Divisão que já está acostumada com tais truques. Além do mais ─ sua Habilidade já está comprovada. Ela não permite intervir fisicamente com o mundo exterior. Por isso que é impossível ele ter sumido de repente na cascata. E nenhum Usuário que pudesse ser seu cúmplice foi identificado no local também.

Ao me referir a tais pontos, o investigador Asukai apenas assentiu concordando.

“Por causa do meu trabalho eu sei sobre Usuários criminosos. A Habilidade dele não ajudaria praticamente em nada naquela situação. Os demônios que ele consegue controlar não conseguem influenciar o mundo fisicamente.” Ele olhou rapidamente para o Ayatsuji-sensei. “Não é mesmo, sensei?”

Ayatsuji-sensei confirmou apenas com o olhar.

“Aquela cascata era um lugar extremamente perigoso. Mesmo que executássemos um contra-ataque secreto, eu nunca diria ‘Vou cair aqui para testar’.” Ele disse batendo o cigarro no cinzeiro que carregava. “Tirando o fato de ser alto o suficiente, há várias pedras sobressaindo durante a cascata. E além do lago ser bem profundo, não dá para um idoso nadar naquela correnteza. Essa parte eu testei. E quase me afoguei.”

“E se… houvesse alguma caverna atrás da cascata com um caminho secreto pelo qual ele pudesse ter escapado?”

O investigador Asukai riu da minha pergunta.

“Nós também investigamos isso. Alguma passagem escondida na água. Mas nada foi encontrado. De qualquer forma, uma caçada em larga escala foi feita pela montanha para procurar o corpo. Testamos a colisão jogando um manequim da cascata também. Ficou em pedaços.” Acendendo um novo cigarro, ele se virou para o Ayatsuji-sensei. “Sensei, você não saberia? Como ele sobreviveu e escapou do cerco.”

“Sei lá.” Ele respondeu bruscamente.

Eu também cruzei meus braços, pensando. Ele fugiu de um lago impossível de escapar. O truque do misterioso Kyougoku.

“Hã, eu posso falar uma coisa?” Disse baixinho. “Para falar a verdade, eu não estou tão surpresa que ele sumiu daquela cascata.”

O investigador me olhou. “Ah é? Por acaso sabe como ele escapou?”

“Não… Não é isso.” Quem dera eu soubesse. “Eu acredito que ele certamente pensaria num método para escapar do cerco. Se formos comparar com todos os crimes perfeitos que ele cometeu sem deixar provas, não é nada surpreendente desaparecer de um lago.”

Também havia feito doze pessoas se matarem sem deixar vestígios. Transformou o presidente de uma grande companhia em um lunático que matou todos os seus funcionários. Fez com que vários assassinos famosos escapassem da prisão ao mesmo tempo.

“Necromante”, “Usuário de Medidas Externas”, “Titereiro” ─ Um homem de vários nomes a ser evitado. O inimigo da sociedade.

“Só tem um ponto que me surpreendeu.” Olhei de relance para o sensei ao dizer isso.” A única coisa estranha sobre ele foi ter sobrevivido mesmo depois de receber a Habilidade do Ayatsuji-sensei.”

O investigador Asukai fez uma expressão complicada de entender. Ayatsuji-sensei olhou para mim.

Uma Habilidade com o poder de fazer um assassino morrer acidentalmente. Um controle absoluto do destino. Um Usuário de Perigosidade Máxima. Se eu for tomar as palavras do Ayatsuji-sensei emprestadas, as Habilidades são um sistema. Uma lógica perfeita que rege as leis do mundo. Ninguém consegue escapar dessas regras. Se essa pessoa existir, ela colidirá com uma Habilidade  contraditória, produzindo uma Singularidade ─

“Uma Singularidade.” Eu disse de repente. “Uma Singularidade da Habilidade? Por isso conseguiu romper a Habilidade do Ayatsuji-sensei? Mas será…”

“O que seria essa Singularidade?” O investigador Asukai inclinou a cabeça.

“Eh?” Meu coração saltou. “Eu… usei essa palavra?”

Eu pendi minha cabeça para o lado, rindo. Uma Singularidade da Habilidade. Esse era um dos fenômenos das Habilidades que a Divisão estava pesquisando em segredo. A explicação do meu superior me veio a mente.

“Como resultado da interferência de múltiplas Habilidades umas nas outras, foi confirmado que em casos extremamente raros, elas saem do controle em uma direção completamente inesperada.” O senpai havia dito. “Por exemplo, o que acontecerá se dois Usuários com Habilidades do tipo ataque preventivo, lutarem? Se um Usuário que certamente enganará o outro e um que certamente descobrirá a verdade, conversarem? A resposta é que só saberemos vendo. Na maioria das vezes, apenas um ganhará. Mas em situações raras, pode-se desenvolver para um fenômeno em que nenhum dos dois vença. A Divisão chama isso de ‘Singularidade’.”

Nunca vi ao vivo. Também ouvi que quase ninguém na Divisão presenciou esse fenômeno. Mesmo assim ─ seria estranho esse fenômeno não estar envolvido em conseguir evitar a Habilidade de morte certa do Ayatsuji-sensei.

Claro que nem consigo imaginar uma Habilidade que cause essa contradição na do sensei. Há um Usuário incrível com a Habilidade de cancelar as Habilidades dos outros na Agência Privada de Detetives em Yokohama, mas ele não conseguiria impedir a morte do Kyougoku, sendo um terceiro. Então não causa conflito.

Dei uma espiada no Ayatsuji-sensei em busca de uma pista. Sem sugerir nada, ele apenas estava calado olhando para longe. Sua mente parecia estar em outro lugar, ignorando completamente nossos argumentos.

“Realmente é estranho ele não ter morrido pela Habilidade do Ayatsuji-sensei.” O investigador Asukai falou. “Eu ainda lembro do massacre dos dezessete habitantes na ilha Reigo. Eu mesmo fui investigar o local. O sensei fez com que todos os dezessete assassinos sofressem um acidente de uma só vez. Até hoje aquela cena horrorosa está encravada em meus olhos. E cada um foi por uma causa diferente ─”

O massacre de dezessete pessoas em Reigo foi um caso de cinco anos atrás. Uma série de assassinatos ocorreram numa pequena ilha em que o Ayatsuji-sensei estava de passagem por acaso e ele os solucionou. Como resultado, os dezessete assassinos cúmplices tiveram mortes horríveis. Foi esse caso em que um grande número de pessoas morreu devido à uma única Habilidade que fez o governo o marcar e o reconhecer como um Usuário de Classe Especial.

Eu também estou ligada profundamente a esse caso.

“Passado é passado.” Ele disse batendo o cachimbo. “De qualquer jeito, ele certamente agirá num futuro próximo. O que você fará nessa hora, Asukai-kun?”

“Como?”

“Saia do caso.” Ele falou naturalmente. “Deixe o resto comigo e com a Divisão. Já não é mais uma situação para uma pessoa comum como você.”

“…Pessoa comum?” O investigador Asukai levantou uma das sobrancelhas. “Está se referindo a mim?”

“Só falo verdades.” Ele olhou com olhos afiados para o Asukai-san. “Você é um excelente investigador. Segue a lei, nunca distorce a justiça e continua indo em frente não importa o quê. E as próximas vítimas dele serão pessoas assim. Preso às regras, é fácil ler seus movimentos e você nem perceberá que está sendo manipulado. Se ele jogar um demônio do alto, você tem confiança de que continuará o mesmo?”

“Tenho.” O investigador Asukai devolveu um olhar decidido para o sensei. “Se não tivesse, não estaria nessa profissão.”

“Mesmo sendo a Habilidade de alguém que levou quase cem pessoas à morte?”

“Ayatsuji-sensei.” O investigador deu um passo à frente. “Você sabe muito bem porque eu o persigo. Ele matou minha parceira. A despedaçou brutalmente. Essa é a verdade.”

“…”

Se bem me lembro, a parceira do investigador ─ que se chamava Yui-san e era uma investigadora de primeira classe também ─ morreu durante uma investigação contra o Kyougoku. Foi cogitada a possibilidade do Kyougoku ser o responsável, mas como sempre não houve nenhuma prova.

“Mesmo assim eu lhe respeito, Ayatsuji-sensei.” Ele foi se aproximando com o maxilar retraído. “Seja um Usuário perigoso ou o que for, o seu poder é incrível. ‘Morte absoluta ao criminoso’. Você disse que eu obedeço às leis, mas está errado. Não capturarei o Kyougoku. Caso o encontre, irei matá-lo sem falta.” Ele parou, inspirou e soltou o ar novamente. “Antes de você.”

Ayatsuji-sensei escutou calado essa frase. Depois de dar uma tragada e exalar a fumaça, “Que assim seja,” ele disse.

Foi nessa hora.

Um som de metal tinindo ecoou pelo corredor. Olhei para o chão procurando a origem daquele barulho. E logo encontrei. Era um cilindro de metal prateado do tamanho de uma lata de café. Um pedaço do cilindro era esférico, parecendo uma bala de revólver gigante. Eu já havia visto aquela forma em algum lugar ─ No momento seguinte ao perceber o que era, uma fumaça cinza emergiu vigorosamente.

“É uma granada de gás!” O investigador Asukai gritou feito o aviso de uma ave de rapina.

Como se ao sinal de sua voz, luz e barulho nos atacaram vindos da escuridão no fundo do corredor.

Disparos. Estavam atirando em nós.

Quando percebi, perdi a noção do tempo. O frio veio subindo.

“Por aqui, rápido!”

Os gritos do investigador foram abafados pelas balas passando pelos meus ouvidos na velocidade do som.

Os dois correram na minha frente como que se jogando contra o ataque. Passaram tão rápido que eu apenas consegui ver seus vultos. Fumaça, balas, chão e paredes. As balas destruíam as paredes e o teto. Como estavam atirando de longe, os tiros não tinham muita precisão. Porém ao sermos atacados num corredor em que não há para onde fugir, um medo instintivo faz com que não ajamos como devemos.

A frenesia de pessoas atirando com rifles reverberou pelo ambiente.

“O que está fazendo, idiota?!”

Alguém pegou minha minha mão e me puxou. Uma voz baixa e precisa. Antes que pudesse raciocinar quem era, meu corpo reagiu às suas palavras. Corri sendo levada em direção à porta dos fundos.

Quando passamos pela porta de ferro, o corredor já estava praticamente todo esbranquiçado. O barulho dos tiros acertando a porta fortemente fechada criava um zumbido nos meus ouvidos.

Nós entramos numa pequena sala. Provavelmente era um depósito de equipamentos. No alto, havia uma janela onde uma pessoa conseguiria passar. Uma fraca luz entrava pela mesma, permitindo ver a poeira flutuando.

Não havia nenhuma outra saída a não ser aquela porta. Estávamos num beco sem saída. Eu estava a ponto de tentar ver se daria para escapar por essa única janela, mas o Ayatsuji-sensei me parou.

“Desista.” Ele falou um pouco mais fino que o normal. “Lá fora também está cercado.”

Era exatamente como ele disse. Dava para ouvir alguns passos pela janela. E não eram de uma ou duas pessoas. Eram passos firmes e pesados se aproximando de nós sobre o cascalho. Sendo assim, as chances eram altas de todas as saídas do prédio já estarem dominadas.

Tentando manter o controle da minha respiração ofegante por eu ter corrido, disse:

“O que… diabos…”

“Não é nenhuma organização ilegal ou a Máfia.” Asukai-san disse suprimindo a voz. “O som dos rifles é diferente. Mas se é o caso, então quem será que--”

Ele interrompeu suas palavras subitamente. Pressionando o estômago, deixou escapar um gemido de entre os dentes cerrados como se uma pedra tivesse sido esmagada.

“Asukai-san, você…”

“Não é tão grave quanto parece. A bala atingiu o osso e desviou.” Em contraste a essas palavras, suor começou a escorrer pela sua testa. Um sangue escuro escorria do ferimento pressionado próximo a costela, manchando o terno.

“De qualquer maneira temos que sair daqui logo… Se jogarem uma granada nessa sala apertada, não aguentaremos.”

“Hm, escolheram uma maneira bem sem graça de me encurralar. Me atacar com armas… é de carácter duvidoso. Deve ser chutado levemente.”

Mesmo nessa situação, o olhar do Ayatsuji-sensei estava fixado em algum ponto distante. Era como se seu inimigo mortal, o Kyougoku, estivesse ali.

Ele fechou os olhos, ponderou por alguns segundos e quando os abriu novamente, olhou para mim.

“Eu tenho uma ideia.”

 

✦ ✦ ✦

 

Eu estava apoiada ao lado da porta com o meu revólver preparado. O suor fazia minhas mãos escorregarem. Várias gotas desse suor estavam entrando no meu olho, e eu temia que elas fossem obstruir a minha visão. Eu não conseguia parar de enxugar minha testa com a manga.

Os disparos pararam por um tempo. Mas uma segunda onda logo começaria. Uma menos misericordiosa ainda. Precisávamos escapar antes disso acontecer.

Só eu sou capaz. Está tudo bem. Eu fui a primeira da minha turma em habilidade prática na escola de treinamento. E não foi uma ou duas vezes que eu fiz o instrutor desmaiar mesmo ele vindo me bater com um cassetete. Mas ─ não havia balas voando naquele treinamento. Eu também já sabia de antemão as armas e aptidões do inimigo e mais do que tudo, o instrutor não queria me matar. Mesmo eu derrotando ou sendo derrotada, logo depois eu estava podendo sorrir e falar besteiras. Mas se eu fosse derrotada hoje, acabava tudo.

Será que eu consigo?

O inimigo deve ter usado uma interferência no sinal lá fora para o meu celular não estar com área. Ou seja, se eu for até um local com sinal, posso contatar a Divisão. Não precisamos derrotá-los.

“Devem ter muito menos deles do que estamos imaginando.” Ele disse enquanto desenhava um mapa simplificado no chão empoeirado na nossa reunião de agora há pouco. “Porque eles primeiro usaram a fumaça para nos encurralar aqui. Há duas saídas nessa sala. A porta e a janela pequena ali.” Ele fez as saídas no mapa. “Sem potência e pessoas o suficiente, como caçar a presa? É simples, você a assusta e a conduz para um determinado ponto e joga fogo pelo buraco.”

Ele adicionou símbolos no mapa. A grande entrada, a porta pela qual entramos, estava bloqueada por fumaça e tiros. A pequena janela nos oprimia com a possibilidade de jogarem uma granada ou uma bomba de gás.

Entendi, desse jeito de fato os caçadores precisam do mínimo poder de fogo e sofrem o mínimo de dano. Isso quer dizer que o inimigo não tem número o suficiente para nos matar.

“Então… se formos ver pelo outro lado, eles têm pouca gente atrás da fumaça?” O investigador Asukai perguntou sentado pressionando a barriga.

“Sim. É uma parede mental que está bloqueando o corredor. Não tem como enxergar pela longa passagem devido à fumaça. Mas por causa disso só tem duas pessoas posicionadas lá. Eu confirmei quando estávamos fugindo.” Enquanto eu e o investigador Asukai estávamos usando todas as nossas forças para apenas correr, ele contou até o número de tiros…

“Quantos será que são ao todo?”

“Sei lá. Não adianta pensar nisso agora. Até porque não faz diferença quantos sejam, quem os está controlando por trás é bem claro.”

Um plano do Kyougoku. Essa era a primeira onda.

“Então os assaltantes estão sendo manipulados pela Habilidade do Kyougoku…?”

“Não. A Habilidade dele ─ ‘Exorcismo’, consegue fazer chover do céu demônios sobre o oponente, o possuindo. É uma Habilidade que muda o estado mental do seu alvo. Mas só alguns conseguem vê-los, então na maioria dos casos é somente uma sensação ruim e confusão indireta que são dadas. Ela não tem poder para comandar uma operação organizada dessas ─ Para ele, sua Habilidade apenas o auxilia. O que realmente o torna Mal é inteiramente seu cérebro maligno.”

Quando ele falou, lembrei dos documentos da Divisão. A Habilidade do Kyougoku está numa posição abaixo da do sensei. Ela não pode atacar fisicamente alguém e nem controlá-la.

Demônios ─ aparições que possuem as pessoas, criando alucinações. É apenas isso sua Habilidade.

Mas se é assim, ainda sobra uma pergunta. Como ele armou esse ataque?

Ao relembrar as palavras do sensei, eu estava agora agarrando a minha arma que eu tirei do coldre.

“Quando ele vir uma oportunidade, o Asukai-kun vai dar um tiro de aviso pela janela. Nesse sinal, você sai correndo.” Ele disse apoiado na parede. “Se não der certo, você vai só morrer, mas é melhor que consiga fazer direito, Tsujimura-kun.”

“…Sim.“

“Não precisa conseguir a informação de quem é o mandante. Se você se sentir em perigo, mate sem hesitar.”

“Sim…“

Matar… Eu sei. É necessário. Não tenho tempo para titubear quando estão apontando a arma para mim. Não há outra opção. Mas eu até agora não matei ninguém em combate.

“Tsujimura-kun. Qual era a frase de impacto daquele filme?”

Fiquei confusa com a pergunta repentina. Mas logo lembrei ─ Ter nascido na mesma época do que eu foi o seu erro.

“Ayatsuji-sensei.” Eu o encarei. “Você é bem desagradável.”

Mas graças a isso, recuperei minhas energias. Aquela protagonista nunca ficaria com medo nessa situação. Então eu também não vou.

“Estou indo.”

Trocando olhares com o investigador Asukai, eu coloquei a mão na maçaneta. Destravei a arma. E então, junto com o disparo pela janela, eu corri.

Depois da porta estava tudo completamente branco. Não conseguia ver um metro a minha frente. Mas essa era a melhor situação.

Eu estava correndo rápido, mas sem fazer barulho. Havia tirado os sapatos.

Era exatamente como o Ayatsuji-sensei falou. Eles também não conseguiam nos ver do outro lado. Se eu me aproximasse deles sem fazer barulho, o ataque surpresa seria nosso agora. Abaixada, corri preparada para atirar a qualquer momento. Precisava terminar essa disputa antes da fumaça desaparecer.

Na parte em que a fumaça estava mais fraca, eu vi a parte da frente de um par de botas pretas. Não deu tempo para nenhum de nós dois nos prepararmos. Estávamos o mais próximo possível um do outro.

Ele se assustou e deu para eu ver a ponta do rifle apontada para mim. Deslizei com tudo por entre as pernas dele e o derrubei por trás.

Ele tentou apontar a arma para mim enquanto estava caído, mas eu a chutei com meus pés descalços e ela saiu voando. Pressionei seu punho com a sola do meu pé e apontei meu revólver em sua direção. Foi então que pude realmente vê-lo.

Roupa à prova de balas e uma máscara de gás. No seu olho direito havia uma pequena câmera. O dispositivo de mira do rifle era um red dot. Um mau pressentimento cresceu dentro de mim.

Eu gritei com a arma encostada em sua cabeça.

“Diga à qual organização pertence e seu objetivo!”

“Nós somos… as Forças Especiais Antiterrorismo da polícia civil.” Uma voz abafada falou por detrás da máscara. “Nós recebemos uma informação de que o assassino que matou o detetive e o substituiu estava barricado fazendo civis de reféns… então nós viemos invadir--”

Como pode? Nós não estávamos lutando contra o Mal e sim contra as Forças Especiais da polícia.

Senti ter ouvido o Kyougoku rindo alto.

“Maldição!” Eu gritei apertando meu revólver. “Ninguém foi substituído aqui! Somos do governo! Ele deu informações falsas para que nós nos…”

Não consegui terminar de falar. O outro integrante das Forças Especiais me acertou pelo lado. A coronha do rifle passou raspando pela ponta do meu nariz ao desviar meu corpo. Apoiei a mão no chão e usando meus músculos das costas e fui para cima.

O punho dele veio voando. Eram membros das Forças Armadas perfeitamente treinados e armados. Se eu recebesse um soco diretamente, quebraria meus ossos.

Curvei meu corpo amplamente para direita, desviando do soco e agarrei o cotovelo estendido. Puxei ele na minha direção e mirei no ponto fraco de sua roupa, o pescoço.

Recebendo uma cotovelada em seu pescoço desprotegido, o soldado gemeu. Enquanto eu puxava seu braço mais ainda, eu dei com o revólver em sua têmpora. De repente, perdi o equilíbrio. O outro soldado agarrou meu tornozelo. Não sei se foi para parar a luta, mas não podia ter sido numa hora pior. A boca do rifle ficou na minha cara quando eu cai de costas no chão. O soldado que teve sua têmpora acertada, preparou o rifle para atirar. E eu preparei meu revólver. 

Eu precisava atirar nele parar evitar que ele atirasse. Mas eu estava em uma má posição. Não tinha margem para mirar.

O tempo parecia se estender como frame a frame de um filme. Quando eu cai, minha visão rodou. O inimigo estava com o dedo na gatilho. Meu revólver, apontado para seu rosto. Minhas costas encostadas no chão ─ Nós dois estávamos na linha do tiro.

Debaixo dos meus pés, emergiu um monstro preto. Uma besta com chifres, preta como a sombra, ergueu uma foice escura e penetrou o peito do soldado. Sangue jorrou e ele caiu.

A escura besta chifruda gritou com uma voz estridente e voltou para a minha sombra, dissolvendo-se nela.

Como pode… minha Habilidade surgir justo num momento desses?



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