Volume Único

Segundo Ato: Em frente à Base Confidencial da Divisão Secreta de Habilidades Especiais / Manhã / Céu Claro

Minha franja está boa, eu penso. Arrumo ela um pouco para cima, olhando minha imagem refletida na janela do carro. Ao encontrar meus próprios olhos, eu encaro a mim mesma severamente.

Está tudo bem. Eu sou perfeita. Não há um Usuário criminoso que desobedeceria essa amedrontadora agente. Eu sou perfeita.

Eu estava no estacionamento nos fundos da biblioteca. Estava extremamente calmo. Além dos idosos frequentadores que passavam de vez em quando, não havia mais ninguém. É óbvio. Aqui é uma instituição secreta do governo. Uma base de coleta de informações sob controle direto do Ministério do Interior e o único lugar em que posso dizer que trabalho.

Por fora, é só uma biblioteca nas montanhas, mas se olhar com atenção, perceberá que a segurança é rigorosamente severa como a de uma instituição nuclear e todos os seguranças estão armados com submetralhadoras escondidas em suas cinturas.

Eu sou uma funcionária do governo e agente da Divisão Secreta de Habilidades Especiais, uma organização não oficial do Ministério do Interior.

Destravei a trava do carro com a chave e sentei no banco do motorista. Era um Aston Martin prateado que eu tive o trabalho de importar da Inglaterra. Um carro digno de uma agente.

Constituído de leves ligas de magnésio e dois cavalos, é uma máquina nascida apenas para correr. O carro de uma agente de uma organização secreta demanda potência e resistência ─ Eu o comprei com esse pensamento, mas até agora eu não fui agraciada com uma perseguição.

Girei a chave e liguei o motor. Enquanto dirigia pela silenciosa estrada, pensei sobre a minha atual situação.

O meu dever é monitorar um certo detetive. Ele só tem o título de detetive porque seu trabalho é solucionar casos. Em muitas das vezes, ele ajuda pessoas que estão com problemas. Ou seja, de maneira geral, entre dizer se ele é uma boa ou má pessoa, ele está mais perto de ser bom.

Só que a opinião do governo é outra. Para eles, esse detetive é como uma ogiva nuclear deixada numa esquina. O governo precisa saber 100% do tempo onde ele está e o que está fazendo. Se eles o perderem de vista e ele sair do controle, poderia explodir a cidade toda. Não consigo imaginar quantas cabeças do alto escalão sairiam voando.

Ele é a pessoa mais importante da lista de monitorados. Usuário de Habilidade de Perigosidade Máxima, o Detetive Assassino.

Eu como agente da Divisão Secreta de Habilidades Especiais, fui designada ao seu monitoramento e controle.

Fracassar não será perdoado.

Lembro até agora do olhar frio do meu superior ao me passar as ordens.

No meio do caminho comprei um latte sem açúcar numa cafeteria. Deixei ele no apoio de copo e fui bebendo enquanto dirigia. Confirmei se havia carros atrás de mim pelo retrovisor ao parar num sinal vermelho. Parece que não há ninguém me seguindo hoje também.

Nunca há cuidado demais para quem trabalha no governo. Quem dirá para uma novata. Contudo, ainda não fui perseguida nenhuma vez.

Mas… sou uma agente de uma organização governamental. Até hoje não me acostumei com tamanho absurdo, mesmo já tendo passado dois anos desde que entrei. Parece uma história de filme ou livro. Eu era apenas uma estudante da faculdade alguns anos atrás e agora, mesmo para os meus amigos mais próximos, só posso dizer que trabalho no escritório de uma empresa de importação.

Claro que eu tenho confiança. Pode não parecer, mas eu passei em primeiro lugar na minha turma, tanto em tiro quanto em combate corporal. Quando eu quero não sou páreo para ninguém. Por isso recebi uma missão tão importante assim. Os superiores nunca deixariam uma missão dessas nas mãos de alguém incapaz de cumpri-la. …Assim eu penso. Só que…

Enquanto eu pensava, cheguei ao prédio em que se encontra o meu objeto de monitoramento. Escritório do Detetive Ayatsuji.

A fachada era uma antiga alvenaria de frente para a rua principal. No primeiro andar, havia uma estreita entrada.

À primeira vista era um prédio qualquer numa esquina qualquer, mas incluindo o escritório no andar superior, todo o prédio estava sob posse do governo por motivos de segurança.

Eu estacionei meu Austin Martin num estacionamento privado um pouco mais à frente do prédio. Enquanto fingia retocar minha maquiagem no retrovisor, conferi se não havia nenhuma figura suspeita por perto. Tirando minha escuta do bolso e colocando no ouvido, apertei o botão da chamada.

“Ligando para tropa de reforço, código de entrada 4048.”

O terminal ao confirmar a minha voz me conectou automaticamente com o meu colega.

“Aqui é o Pelotão de Atiradores de Elite.”

Uma voz masculina brusca respondeu.

“Aqui é a Agente 4048, investigadora Tsujimura. Confirmando entrada de monitoração interna.”

“Entendido. Mudaremos  a posição para D2, continuando a monitorar o perímetro. O alvo se encontra lá dentro.”

“Obrigada.”

Após eu falar isso, o homem do outro lado da linha riu baixinho.

“Não está atrasada, Tsujimura? Ficou ouvindo sermão do seu superior?”

“Nã-Não!”

“A cor do seu rosto me diz que acertei.”

Eu olhei para o telhado do prédio do outro lado da rua. Pude ver por um instante um lampejo do reflexo de lentes no parapeito.

O pelotão de atiradores de elite observava o escritório 24 horas por dia. Se por acaso o Ayatsuji-sensei usasse sua Habilidade contra um civil sem autorização do governo, eles tinham ordem para atirar e matá-lo imediatamente.

“Acho que você já sabe, mas,” o atirador do outro lado da linha falou, “esse prédio é a jaula de um tigre. O nosso trabalho é matar o tigre se ele sair do controle. Porém não quero atirar se possível. Não concorda?”

“…Está tudo certo. Eu sou uma agente.“

“Certo. Te desejo sorte. Câmbio.”

A transmissão foi cortada. Eu respirei fundo, parei por um instante e soltei o ar ─ Vamos nessa.

Havia virado minha rotina falar isso duas vezes todas as noites antes de dormir. Não importa o quão atroz fosse esse Usuário, enquanto eu estiver aqui, não deixarei ele agir como bem queira.

Eu andei até a frente do escritório e parei diante da entrada. Fiquei rodando a chave no meu dedo até enfiá-la no bolso e dizer inclinando meu ombro:

“Ter nascido na mesma época do que eu foi o seu erro .”

É uma fala de um filme de espião que eu gosto. Um filme superlegal em que a protagonista é uma decidida espiã com jaqueta de motocicleta e óculos escuros. Eu preciso ser como ela o quanto antes.

Abri a porta.

 

✦ ✦ ✦

 

O interior da sala estava escuro e um suave cheiro de tabaco a preenchia. Teto em forma de arco e cadeiras âmbar de vime. Na parede, estantes de livro que iam até o teto cercava o ambiente como se fossem torres. O ventilador misturava calmamente o ar tépido. Um abajur antigo em estilo ocidental iluminava a sala com sua luz laranja e apesar de manhã, uma atmosfera apática se espalhava por todo o interior.

No chão estavam dois gatos, um preto e um de pelagem mixa, esparramados. Embaixo dos pés de seu mestre, bocejavam entendiados. O preto olhou para mim e miou como se indiferente. Mais do que um escritório, parecia o salão de uma casa ocidental.

O dono do lugar estava no centro da sala, se balançando em uma poltrona enquanto segurava um livro com uma mão e fumava com a outra.

“…Ora, Tsujimura-kun. Bom dia.“

Ele me olhou rapidamente e voltou para o livro.

Uma pele sem pigmentação, um quepe roxo claro. Os olhos sem nenhuma emoção pareciam diminuir a temperatura daquilo que olhavam.

Usuário de Habilidade de Perigosidade Máxima.

Não sei se é por causa de seu título ou por outra coisa… mas essa sua aparência possui uma presença terrivelmente atrativa. É como se sua aura emanasse de seu corpo.

“Ayatsuji-sensei.” Sem perceber que eu estava perdendo a paciência internamente, falei com uma voz bem mais firme do que o normal.  “Como assim bom dia? Tem outra coisa para me dizer primeiro, não?

“…Hmm“ Ele disse enquanto virava a página. “Ah é?”

Ele nem levantava o rosto do livro. Não. Assim… Assim não vai dar. O meu outro eu dentro de minha cabeça vestiu a jaqueta de couro, colocou os óculos escuros e sussurrou para mim de maneira idealizada.

Qual o seu trabalho? Você é uma agente. E o que ele é? O seu objeto de monitoramento. Então não era para ele conseguir dizer um pio para você. Tudo bem em ele te subestimar? Declaro veementemente que não!

Eu me aproximei a passos largos do Ayatsuji-sensei e tirei o livro de suas mãos.

“Pare de ler ao menos quando os outros estão falando.” Disse da maneira mais fria possível. “Eu sou a sua monitora, Ayatsuji-sensei. Dependendo de como aja, eu posso te matar a qualquer momento. Possuo essa autoridade. Entende o que isso significa?”

Ele olhou distraído para o livro em minhas mãos e disse:

“Entendo. Essa é uma ameaça bastante eficaz.” Ele bateu o cachimbo, fazendo as cinzas caírem. “Então faremos o seguinte. Eu te respeitarei daqui em diante. Em troca, você fará um café para mim agora.”

“Ah, é só isso?” Fiquei desapontada. “Algo assim não tem problema.”

“Dois cubos de açúcar mascavo. Sem leite.”

“Entendido.”

Fui para a cozinha ferver a água e inseri o pó de café no coador. Despejei a água fervendo cuidadosamente no centro do pó e esperei a espuma abaixar para despejar o resto. De olho no tempo, retirei o café rapidamente do coador antes que ficasse um sabor ruim. Quando estava conferindo a consistência e o aroma, percebi algo estranho. Eu gritei.

“Eu não sou sua empregada!”

“Demorou pra perceber.”

Ele disse com uma voz fria enquanto lia o livro.

“Ei, fiquei pensando aqui, mas não consegui lembrar. Ao o que você se referiu quando disse que eu tinha algo para te dizer?”

“Sobre o caso de ontem!” Eu gritei segurando a xícara de café. “Você ignorou nossos avisos e resolveu o caso do acampamento por conta própria! Não pode!”

“Por quê?”

Ele calmamente respondeu à minha censura.

O caso de ontem era sobre um garoto assassinado ao ficar quatro dias e três noites acomodado em um acampamento. Como era um caso de extrema urgência, a Divisão pediu para o Ayatsuji-sensei solucioná-lo. O rumor é de que uma das crianças é parente de alguém no governo e por isso tomaram providências especiais (as circunstâncias dos superiores não chegam para os subordinados em qualquer profissão).

Então é claro que mantive uma estrita vigilância nele enquanto estávamos lá. Até porque ele é cem vezes mais perigoso do que quem matou a criança.

Mas no breve, muito breve momento que eu virei os meus olhos, ele ─

“Ouça bem, Ayatsuji-sensei. Eu vir e ir assim do seu escritório é uma gentileza da Divisão. Não preciso nem dizer que o normal seria você ter sigo jogado em uma prisão altamente vigiada e cercada por uma tropa de defesa equipada com metralhadoras. Deveria ser um pouco mais grato comigo…”

“Eu sou. Principalmente por terem mandado alguém assim fácil de lidar como você para me monitorar.”

“Como assim fácil de lidar?!”

Sem pensar, levantei meu punho para socá-lo, mas estava segurando o café em minha mão direita.

“Já que teve o trabalho de prepará-lo, que tal me dar?”

“Eh? Ah… sim.”

Ouvindo essa lógica bem plausível, eu coloquei a xícara na mesa ao seu lado. Ele fechou o livro e com movimentos bem tranquilos bebeu o café.

“Hmm. Até que tá bom.”

“O… Obrigada.”

Ele me elogiou. Ser elogiada assim de repente… Então percebi. Não. Não era isso.

“Você não vai me enganar!” Eu berrei. “Já chega… Para começar, o que quis dizer com eu ser fácil de lidar?! Eu sou agente de uma organização secreta. Sou uma mulher misteriosa para quem vê de fora. Como assim dizer que uma pessoa notável da elite como eu sou fácil de lidar…”

“Foi repreendida pelo seu chefe antes de vir para cá, não foi?”

“Eh?”

“Para esquecer, pediu um latte numa cafeteria e pegou a rota estreita dos sebos no primeiro distrito para chegar aqui.

“Eh, eh?”

“Ligou para os atiradores na frente do escritório. Eles disseram que iam mudar para posição D2 e continuar o monitoramento. …E por último, você disse uma certa fala. Aquela frase de efeito do filme. ‘Ter nascido na mesma época do que eu foi o seu erro', não era?”

“Eh… Eh?! Como você sabe disso?! Eu… Sensei, por que você sabe disso?!”

“Acalme-se.”

Como eu poderia. Essa é a minha maior armadura secreta me protegendo nesse trabalho. O que espera uma agente que teve seus movimentos premeditados é uma armadilha, um ataque surpresa, todo tipo de perigo e infortúnios. Ainda mais pelo meu próprio objeto de monitoramento. Se ele sabe as minhas ações, isso influenciará na taxa de sucesso da minha missão.

Mas era verdade que antes de vir para cá, fui repreendida pelo instrutor Sakaguchi sobre o caso de ontem em uma certa biblioteca. Eu ter comprado um latte, e ter tomado a rota dos sebos foi exatamente como ele falou também.

A confiança que eu tinha antes de entrar aqui disparou para o céu como fogos de artifício e sumiu.

“Se acalme, mulher misteriosa. Você não fez nada de errado. Nós só fizemos nosso trabalho. É como você falou. Não seria estranho eu estar numa prisão. Isso mostra o quanto de pessoas matei e quanto posso matar daqui pra frente. Então como é possível eu estar aqui sentado em meu escritório tomando um café? É porque sou uma peça útil para o governo. Mais especificamente, graças às minhas habilidades de observação como detetive. Como agora.”

“Habilidades de observação…”

Dando um suspiro como se aborrecido, ele colocou o cachimbo de lado e começou a falar.

“Imaginei que foi repreendida pelo seu chefe por que demorou quinze minutos a mais do que o comum para chegar aqui. Você não é do tipo que se atrasa sem motivo e eu ouvi que seu chefe é bem nervoso. Também ouvi de relance que você costuma frequentar uma certa cafeteria. Supus que havia pedido um latte por haver rastros de ter limpado a boca no seu batom. A estreita rua dos sebos é via única e não passam muitos carros. Você pode vir mais rápido por ali e dá para checar se não há nenhum carro te seguindo. Você sempre se comunica com os atiradores quando chega aqui. E como eles estão me monitorando vinte e quatro horas por dia, eu consigo ter uma estimativa de quando vão se mover para o próximo ponto.”

Habilidades de observação. Isso é… ser um detetive.

“Mas, mas, mas, mas!” Eu disse apontando para a entrada. “A frase que eu falei ali na frente! ‘Ter nascido na mesma época do que eu foi o seu erro,' como você… como você sabia?!”

“Isso aí?” Ele disse sem mudar a expressão. “Se não quer que te ouçam, fale mais baixo.”

Eu cobri meu rosto, me agachando. Nunca me senti tão envergonhada.

 

✦ ✦ ✦

 

Demorei um pouco, mas preciso falar sobre o que são os Usuários de Habilidade. Existem uma pouca quantidade de pessoas possuidoras de habilidades especiais em nosso mundo. Dependendo da habilidade, ela pode ser perigosa e ser usada para prejudicar a sociedade. Por esse motivo, A Divisão Secreta de Habilidades Especiais, uma organização confidencial do governo, os monitora continuamente.

Os crimes realizados por Usuários não são perdoados. Organizações formadas por grupos de Usuários criminosos vivem gerando dor de cabeça para a Divisão.

Porém, claro que nem todo Usuário é criminoso. Há organizações que recebem aprovação da Divisão, funcionando legalmente. Eu ouvi o rumor da existência de uma organização de detetives que reúne uma pequena quantidade dos melhores Usuários. Se não me engano, acho que fica em Yokohama.

Aqueles que são excepcionalmente perigosos, são controlados e supervisionados pelo meu departamento e em alguns casos, obliterados. E o primeiro da lista é o nosso Detetive Assassino, Ayatsuji-sensei. Ele tem a Habilidade de fazer alguém morrer acidentalmente.

Uma capacidade que atendendo às certas condições, ignora todo o carma e provoca 100% de chance de morte.

Há outros exemplos de Usuários extremamente fortes e perigosos. Alguns explodem, retalham e esmagam seus oponentes. Claro que esses tipos de habilidades supernaturais são perigosas e precisam ser vigiadas. Contudo, isso não basta para te coloca na Classe Especial.

A Habilidade do sensei ignora qualquer obstáculo físico e distorce todas as probabilidades para causar uma morte “acidental” a seu alvo. Não importa se ele esteja do outro lado do planeta ou seja o Usuário mais forte capaz de matar até mesmo um deus. Pode-se dizer que é uma espécie de maldição.

Asfixia, derrame ou queda. Suicídio, doença, ataque do coração. Não dá para prever qual será a causa. Não dá para impedi-la ou cancelá-la também. E só há uma única condição para a ativação da Habilidade. O alvo ser o culpado.

Podemos dizer que é uma Habilidade digna de um detetive. Detetives revelam a verdade e solucionam casos. Ele identifica o culpado. Sem esse processo, ela não ativará. Por isso que o plano de remoção do perigoso Usuário Ayatsuji, apresentado algumas vezes pelo alto escalão, por enquanto foi negado.

Porém uma Habilidade indefensível com 100% de eficácia é a exceção das exceções dentro da lista de Usuários da Divisão. E com o Ayatsuji-sensei tendo o comportamento que tem, a Divisão não tem confiança de que ele está completamente sob controle. Por isso que o plano de remoção do perigoso Usuário Ayatsuji continua a ser apresentado duas ou três vezes a cada semana.

Se ao menos ele fosse mais obediente e fácil de entender, as coisas seriam mais fáceis para mim ─

“O que foi, Tsujimura-kun? O que está olhando? Será que resolveu se tornar minha empregada? Então vá se trocar. Seu uniforme está ali.”

“Não é isso!”

No fim das contas ele é assim. Não dá para saber o que realmente pensa. E por sinal, por que ele tem um uniforme de empregada? Comprou?“

“Então por que está me olhando? Eu sei que sua função é me vigiar, mas se é só ficar me encarando por vinte e quatro horas, uma câmera de vigilância seria mil vezes melhor. Diferente de você, não precisaria ser paga e nem ficaria falando bobagens.”

“Eu sei, mas uma câmera não poderia lhe importunar para terminar logo o relatório.”

“Isso é só uma função extra sua.”

“Chega logo disso e termina o relatório.”

“Ai, ai.”

Nesse momento, o Ayatsuji-sensei está escrevendo a documentação em sua escrivaninha. É um relatório detalhando os acontecimentos de ontem. Toda a sequência de eventos, as evidências descobertas, como identificou o culpado e como confirmou essas provas. Para analisar todos os pormenores do mecanismo de sua Habilidade e o critério de ativação, a Divisão precisa da mais trivial informação. Por isso é fundamental um relatório posterior sobre suas atividades de detetive.

Claro que arrumá-lo em um único documento apresentável é tarefa minha. Além de negociar com os envolvidos após o caso, trabalhar atrás da cena com a polícia militar e civil e recolher um acordo de silêncio com todos eles.

Assim como o sensei falou, o meu trabalho não é só de uma câmera de vigilância. Preciso supervisionar todo os procedimentos, buscá-lo e escoltá-lo, e dependendo do caso até finjo ser sua assistente para que faça seu trabalho de detetive direito. Como não tenho como passar essas tarefas para mais ninguém, só me resta eu mesma fazer.

Sendo assim, estou sentada na cadeira de balanço do sensei de onde consigo ver ele e passando as informações para meu laptop. A documentação, o monitoramento, a escolta, eu realizo tudo perfeitamente como uma agente de primeira classe. A protagonista daquele filme certamente diria isso.

Por sinal, havia uma proposta para instalarem câmeras de vigilância em todo o prédio como ele disse. Na verdade, parece que chegaram a instalar. Mas o sensei fez todas elas apresentarem defeito como se tivesse sido um acidente ou então achou os pontos cegos e se aproveitou disso. Por causa disso elas foram retiradas. É algo que consigo acreditar acontecendo.

O gato de pelagem mixa estava esfregando a cabeça no meu tornozelo.

“Acabei.”

Ele pôs sua caneta tinteiro sobre a mesa, levantou e veio me entregar os papéis.

“Acabou? Já? Não omitiu nada?”

“É o seu trabalho conferir se eu omiti ou não.“

Eu peguei o relatório e comecei a checagem. Parei meu dedo numa certa página.

“Espere um pouco.” Eu disse. “Esse último parágrafo aqui… O que quis dizer?”

Eu tinha um mal pressentimento sobre ele. Senti como se tivesse sido picada com um veneno dentro de minha boca.

“Exatamente o que está escrito. O que foi? Pensei que a melhor qualidade da agente Tsujimura era saber ler.”

“Irei lhe socar… Não, isso aqui.”

Apontei para uma linha do relatório.

“'Ele disse que eu não iria ser pego!', quem disse isso foi o criminoso, não foi?”

Ayatsuji-sensei deu uma tragada, foi exalando a fumaça pelos lábios aos pouco e disse:

“Você estava lá também.”

“Eu nessa hora tinha sido jogada na parede… Agora que você mencionou, me lembro de ter ouvido um grito, mas essa frase…”

Não estou gostando disso. Era como se estivesse tocando algo áspero na escuridão. Mas se era a pele de um elefante ou as presas de um terrível monstro, ainda não sabia.

“De fato, é bem sugestiva. O que tem ela?”

Ele já tinha voltado para sua leitura.

“Como assim o que tem… Não quer dizer que, ao menos, mais uma pessoa sabia que ele cometeria o crime?”

Ele não respondeu. Virou uma página calmamente.

“Depois daquilo, a polícia investigou a casa do culpado. Mas estranhamente havia muitos poucos vestígios dele ter planejado o crime. Ele deveria ter investigado sobre a bactéria que usou para matar antes. Mas não havia nada em seu histórico online e nem registros dele ter ido em alguma biblioteca. Pelo contrário ─ ”

“A partir de uma certa data, os registros telefônicos e até os rastros dos desvios que tomou na volta pra casa não sumiram de uma hora para outra?” Ayatsuji-sensei falou de repente.

Senti minha respiração ficar rasa. Era exatamente como ele disse.

“…Há doze dias. Você percebeu?“

“A bactéria Closritridium possui o veneno mais mortal da natureza, mas é indispensável ter um conhecimento técnico para tornar esse demônio invisível em seu aliado. Tem que saber cultivá-la, guardá-la e saber dosar a quantidade certa que aplicará para que não as mate. Para completar, controlar a dose certa que se tornará letal dentro do ovo cru é como o trabalho de um artesão. Não parece ser o método que um professor de inglês pensaria sozinho.”

Ele me olhou de soslaio. Um olhar tão severo que me fez pensar se eu não estava presa dentro de um lago da era glacial.

“Qual a conclusão da Divisão?”

“Primeiro, conte-me mais sobre a sua opinião, sensei.”

Ele tomou o resto do café em um único gole e falou:

“Havia um cúmplice, sem dúvidas ─ Não. Um instigante que o ensinou tudo e o levou para o caminho do Mal.”

“Um instigante ─”

“Mais do que apagar os vestígios, ele ensinou gentilmente o caminho para o crime perfeito, eliminando todos os elementos que pudessem ser suspeitos ou que pudessem revelar o plano acidentalmente. Ou seja, um ‘mentor do Mal'. Eu não sei quem ele é, mas… dá pra ter uma ideia do dia em que ele entrou em contato com o criminoso.”

Quando ele olhou para mim, eu respondi automaticamente.

“Há doze dias…”

“Precisam investigar as ações dele nesse dia. Claro, se a Divisão quiser cumprir justiça.”

Vamos pensar.

Um assassino que conseguiu realizar o crime perfeito utilizando uma bactéria. Segundo a investigação, ele queria tanto matar seus audaciosos alunos que liberava sua frustração batendo em suas mãos quando as levantavam para fazer uma pergunta. Um ressentimento trivial que se encontra em qualquer lugar. Dificilmente alguém produziria um veneno por um motivo mundano desses. Alguém precisava lhe ensinar esse método.

Enquanto eu analisava as informações no meu laptop, disse:

“Doze dias atrás… Mas não há muita diferença em seus registros. Ele voltou do trabalho como sempre e foi jantar num bistrô da vizinhança. Parece que ele se perdeu um pouco no caminho de casa como mostra seu GPS. Ele se afastou da área urbana e foi parar numa estrada rural onde só havia barracões e poços. E a partir desse dia ele parou de usar o carro e o telefone completamente.”

“Como esperado da Divisão. Agem rápido.”

“Isso não é nada.”

“Todos lá são rápidos, menos você.”

Pensar que eu ficaria ofendida com essa maneira calma dele falar.

“Ayatsuji-sensei.”

“O quê?”

“Se você percebeu que havia um instigante… por que não contou?”

“Exato. Foi descuido meu. Gostaria de pedir desculpas do fundo do meu coração.” Ele disse encolhendo os ombros. “Por sinal a frase que vocês ficam repetindo sem parar, será que é alucinação minha? ‘Não faça nada além do que foi instruído’, ‘não persiga nenhum caso que não lhe foi solicitado’. Eu fiz somente o que me pediram como um bom cachorro na coleira, abanei meu rabo e agora estou aguardando as próximas ordens. O que me foi requisitado ontem foi solucionar um caso de assassinato. Eu identifiquei o culpado e o julguei com minha Habilidade exatamente como pedido. O que mais querem? Além disso--”

“Além disso…?”

Como se estivesse buscando as palavras, ele ficou olhando para o nada em silêncio. Não parecia que falaria mais alguma coisa. Foi como se as palavras tivessem sumido da ponta de sua língua e se perdido no espaço.

“Espera. Poços, você disse?”

“Eh?”

Eu não entendi logo de cara o significado da pergunta.

“Poço? Não um reservatório ou um fosso, mas um poço? Foi o que você disse agora há pouco. Que ele pegou uma estrada onde havia poços no caminho de casa. Não foi?”

Fiquei perplexa dele começar a falar tão rápido de repente.

“Sim… Falei… Algum problema?”

Ele levantou e sem nem olhar para mim, saiu andando.

“Hã, sensei?”

“Calada.”

Sua frieza me perfurou como uma estaca de gelo afiada. As palavras que quis devolver ficaram presas no fundo de minha garganta. Andando a passos largos, ele foi em direção à porta dos fundos e sumiu. Ouvi seus passos indo para o andar de baixo.

“Peraí, sensei?”

Eu me lembrei que nos fundos do escritório havia um andar que dava para o porão. Independente do motivo, ele não podia se afastar de mim assim tão facilmente. Escondendo a minha ansiedade, eu me levantei apressada atrás dele.

Deixado para trás no quarto, o gato preto miou, entediado.

Não era a primeira vez que eu entraria nesse porão. Eu conheço toda a planta desse prédio. Memorizei todos os pontos cegos para os atiradores, a posição de todas as paredes grossas para o caso de um ataque e o caminho mais curto para a saída dos fundos. Conferi, ao menos uma vez, a situação de todas as salas. É o mínimo para uma profissional. Só que não importa quantas vezes eu venha aqui, a sensação de desconforto nunca muda.

Eu desci um andar e entrei no porão.

Era um porão escuro e de teto baixo. Várias bonecas grandes o decoravam. Modelos antigos, réplicas, articuladas. Também havia pequenas bonecas feitas de pano e algodão e outras de proporção humana tão elaboradas a ponto de parecer que se moveriam a qualquer momento. Todas estavam de olhos fechados, sentadas expostas no sofá e em mostruários. Algumas poucas eram orientais.

A iluminação era mínima, talvez para prevenir que a pele delas manchasse. Não havia uma sujeira sequer no chão. E dava para sentir uma corrente de ar frio vindo de algum lugar.

Não faz muito tempo desde que comecei esse trabalho, mas posso dizer francamente que esse quarto é digno da mais bizarra cena de crime.

Ele estava sentado numa cadeira de madeira nos fundos com ambas as mãos entrelaçadas e o queixo apoiado em cima do dedo indicador. Ao tentar me aproximar, ele me parou levantando o dedo. Era um sinal para eu ficar calada. Ele não queria que eu atrapalhasse seus pensamentos.

Quis reclamar, mas pensei melhor e não o fiz. É bom ele ficar me devendo uma às vezes. Virei as costas, calada e fiquei olhando as bonecas.

Algumas eram belas meninas, mas havia meninos também. Outras eram animais. E outras com uma  estranha estrutura mista de humano e besta.

Esse é o passatempo dele. Em sua coleção há modelos raros, com poucos exemplares no mundo e parece que algumas são extremamente valiosas por terem sido feitas por artesões antigos. De fato, só de olhar à primeira vista percebe-se que não tem como elas terem sido produzidas em massa. Mas bem, considerando que eu vim aqui a trabalho, não tem como não achar estranho ele ter um Jardim Secreto no porão do seu escritório pessoal.

De acordo com ele “bonecas são muito mais interessantes do que humanos, nunca perdem a graça.”

Ai, ai.

“Lembrei.” Ayatsuji-sensei falou de repente com uma voz ríspida. Seus olhos estavam fixados em um único ponto no espaço. “Três dias atrás ao entardecer, na rua de trás a duas quadras daqui. Tinha uma revista de fofocas jogada na lixeira em frente ao estacionamento.”

“Lixeira…? Revista de fofoca?” Eu inclinei minha cabeça. “O que têm elas?”

“O poço. Não dá pra perceber?” Ele disse com a voz fria. “Eu vi sem querer, quando estava passando, um artigo dessa revista. Não prestei muita atenção, então tinha me esquecido completamente. Mas…”

“Es-Espera um pouco.” Eu o interrompi confusa. “É incrível que se lembre do artigo de uma revista que viu de relance, mas antes disso… Três dias atrás de tarde? Por que estava andando na rua a essa hora?! Nessa hora a equipe de monitoramento deveria estar vigiando o prédio todo!“

“Me deu vontade de dar uma volta sozinho, então desviei a atenção deles e fui.” Ele disse com a maior cara de pau. “Algum problema?”

Mais um pouco e eu ia cair dura. Por que ele pensa que não tem problema? É claro que têm inúmeros.

Eu já vi a lista de criminosos perigosos. Havia um terrível criminoso que conseguia cortar em pedaços qualquer coisa dentro de alguns metros apenas desejando. Mas ele era só o terceiro de baixo pra cima dentro da lista dos Usuários perigosos de Terceira Classe. A Classe Especial em que o sensei está é de uma periculosidade literalmente acima das nuvens. Esse Usuário perigoso desviou os olhares de uma rigorosa equipe de monitoramento e saiu por ai livre, leve e solto?

Como que diabos...

“A equipe da Divisão é excelente, mas quando a luz do sol se pondo reflete na janela, a claridade faz a vigilância ficar mais leniente. Eu coloquei outro vidro na parte interior da janela para disfarçar o reflexo e conseguir sair facilmente daqui.”

Fiquei tonta.

“Mas quem se importa.” Ele rapidamente terminou um assunto que importava. “O que interessa é o conteúdo do artigo. Havia a descrição de um poço nele.”

“De um poço…? Ele era tão especial assim?”

De fato não é comum ter poços por essa região. Só são possíveis de ser vistos nas antigas casas privadas indo em direção às montanhas. Mas não acho que queira dizer muita coisa o assassino ter passado perto de um poço. É surpreendente se lembrar de um artigo que viu por um momento há três dias, mas por que ficou tão cismado com ele e os poços agora?

“A revista tratava de rumores vulgares e lendas urbanas. Não valia a pena lê-la. Mas… a frase que eu vi de relance nesse artigo era assim--” Ele parou, me encarou como se checando meus pensamentos e disse. “Se você rezar diante desse poço, se tornará uma pessoa ruim.” Ele me olhou ainda mais aguçadamente. “Aquele que desejar algo na frente do poço terá talento para o Mal e poderá sair impune de qualquer crime.”

“…Mal…?“

Até parece. Eu ia rir como se fosse uma piada. Para começar, Mal é uma palavra incomum, um termo que parece ter surgido dos contos de fada. Segundo, para alguém rezar sabendo que se tornará mau, tem que ser muito estranho.

Porém, eu não ri. Nem se quer consegui respirar. A atmosfera ficou tensa sem que eu percebesse e minha garganta ficou seca.

“Tsujimura-kun. Você queria saber a verdade sobre a situação.” Ele disse sentado. Não havia nenhum calor no seu olhar. “Vá buscar um requerimento com a Divisão para procurarmos o poço. Talvez…”

um youkai apareça. Dizendo isso, ele deu uma risadinha.

Resumindo, ele estava 100% certo. O poço, onde caso você rezasse em sua frente te tornaria uma pessoa ruim, realmente existia. Aqueles que rezaram de fato se tornaram maus. E havia mais uma coisa sobre a qual ele estava certo. O que saiu de dentro desse poço, era nada menos do que ─ um youkai.

No dia seguinte, o pedido oficial para solucionar o mistério do poço chegou ao escritório do Ayatsuji-sensei.



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