Volume 1
Capítulo 1.1: Mundo ilusório
Ela correu o mais rápido que pode. Uma única linha gélida escorreu pela silhueta do seu rosto e então caiu. Os batimentos frenéticos em seu peito pulsavam como se fossem explodir a qualquer momento, contudo, precisa continuar.
Aliás, qualquer deslize mínimo poderia custar a sua vida.
Algo a perseguia, embora não tivesse a menor ideia de quem ou o que fosse. E além disso, não fazia questão de saber. Agora, para Rie, só importava conseguir escapar com aquilo em mãos, sã e salva. Era o que precisava. E era o que faria. Isso era algo muito importante. Uma esperança.
— Você conseguiu recuperar o objeto? — perguntou uma voz feminina ansiosa, através do comunicador na orelha esquerda de Rie.
— Sim — respondeu com as palavras escapando entre respirações pesadas.
Agora não é hora de conversar, caso contrário, o seu, ou os seus, perseguidores podem a alcançar. Essa adaga simples, que ela segurava firmemente com ambas as mãos sobre o peito, por mais insignificante e inofensiva que pudesse aparentar ser, era o motivo de tudo. Faria o possível para não terem isso em mãos novamente. Entretanto, para começo de conversa, essa já era uma opção que jamais permitiria acontecer.
Esse era um presente para alguém muito importante que não saia de sua cabeça. E isso lhe dava ânimo em meio a esse tumulto.
— Perfeito! Então, a partir de agora serei o GPS humano dessa linda. — A preocupação na voz da comunicadora se dissipou e assim deu lugar a um tom brincalhão.
— Ei! Não é hora pra falar essas besteiras, sua louca!
— Sempre é hora de dizer que você é uma diva! Mas, antes de tudo, vire à direita no próximo corredor.
O chão metálico ressoava o som de passos incessantes, gradualmente tornando-se maiores. Mesmo assim, ela não pode deixar que o medo e ansiedade de ser alcançada a dominem. Portanto, respirou fundo, ficando mais leve graças às falas de sua amiga e continuou a correr com confiança.
O caminho em que percorria era um corredor em espiral onde descia e se tornava cada vez mais largo conforme se aproximava da superfície. A parede e o teto, entrelaçados por tubos dourados que serviam de suporte, eram feitos de vidro, desse modo permitindo visualizar no exterior um mundo finito à noite.
A própria cidade no lado de fora, com seus edifícios e construções feitos de mármore branco, perfeitamente polidos, eram decorados com esse mesmo dourado. Possuía uma vegetação escassa, porém tudo era feito de uma arquitetura de ponta, com o visual mais chique possível.
Tornando tudo, simplesmente nojento.
Mesmo assim, ela ainda precisava manter-se firme. O que ela carregava consigo era algo que, em hipótese alguma, eles deveriam obter. Esta adaga guardada em uma bainha preta era a coisa mais importante e valiosa para ela agora.
— Apenas siga reto! A saída vai estar na sua frente!
Então, foi carregando toda essa motivação que Rie atravessou a porta adentrando o desagradável ambiente luxuoso. E deu um passo atrás do outro, fugindo entre as ruas e calçadas deste lugar que esbanjava perfeição. No entanto, era uma questão de tempo para que essa paz terminasse.
E como uma premunição, assim aconteceu.
Inúmeras linhas cruzaram ao seu redor, colidindo contra o chão e fragmentando-se em partículas douradas, indicando o perigo à sua frente. Ela estava cercada.
Soldados incontáveis, trajando armaduras metálicas pretas de alta qualidade, bloqueiam seu caminho em todas as direções. Os passos dos perseguidores, que até então só escutava, finalmente ganharam forma.
— Isso é ruim…
Diversos rifles de assalto, prestes a ter seus gatilhos apertados a qualquer instante, foram apontados em sua direção. Rie seria baleada se não fizesse nada. Contudo, os que a rodeavam bloquearam todas as possíveis rotas de escape, não deixando brechas para sua fuga.
Portanto, Rie se viu diante da necessidade de uma ação ousada e arriscada.
Dando um passo para trás, ela fechou os olhos e respirou profundamente.
E foi assim que algo extraordinário ocorreu.
Pequenas partículas de um brilho azul fosforescente começaram a emergir suavemente de seu corpo, a ganhar tamanho e jorrar incessantemente. Essa quais lhe deram força para que corresse em direção aos inimigos e saltasse, em meio a um céu onde linhas douradas eram desenhadas.
Com sua silhueta projetando um rastro luminoso, moveu-se suavemente pelo ar, atravessou um muro gigantesco e aterrissou no outro lado de forma graciosa. Agora em um cenário drasticamente diferente do anterior.
— Nossa… que alívio… — disse a comunicadora suspirando.
— Daqui a pouco eu volto pra casa, tá?
— Certo.
E então um silêncio de paz a envolveu. Se tratava do sinal de que estava segura. Mas, ainda não significava que sua missão tinha acabado. Lhe restava uma certa coisa que aguardou por muito tempo. Rie iria se encontrar com aquela pessoa especial. Mal conseguia conter o ânimo de só imaginar que, enfim, conheceria alguém do mesmo tipo.
— Tomara que ele seja bonito…
* * *
Atraído por uma canção na qual não deveria existir ali, ele acelerou o ritmo dos seus passos. Era estranho, pois se tratava de algo incrivelmente nostálgico.
Falando a verdade, o mesmo pode se dizer para este lugar, aliás, seis anos já se passaram desde a última vez. No entanto, mesmo sem entender o porquê, o sentimento causado por este som lhe passava algo mais intenso que o restante. Algo gelado e confortável como a brisa numa manhã de primavera.
E ao mesmo tempo trazia uma dor sem fim.
Portanto, ele continuou seguindo adiante em meio a este ambiente deplorável. Uma cidade em pedaços que já havia sido tomada completamente pela vegetação, onde não se encontrava uma pessoa sequer entre as ruas. Entretanto, a razão de não haver ninguém era óbvia, aliás, o sol sequer tinha começado a nascer — todos ainda estavam dormindo.
Aí estava o principal motivo dessa melodia, nesta hora e lugar, se tratar de algo tão enigmático. Contudo, a resposta para esta questão foi-lhe entregue de uma vez só. Tudo havia sido cortado por um silêncio repentino. E então algo o prendeu por completo.
Foi como se um feitiço mágico fosse jogado nele.
— Você finalmente chegou! — Uma voz animada ecoou pelo ambiente. E em reação, a única coisa que ele pode fazer foi inclinar levemente sua cabeça para o lado em confusão.
Uma garota estava escorada sobre a cerca na borda deste local ao lado de uma torre com sino. Escutava música com um par de fones de ouvidos e, até então, ela cantava junto. E por mais surpreendente que possa ser, ela estava sob a beirada de um precipício.
Era muito bonita. Usava um blazer escolar claro junto de um vestido preto com decote por cima de uma camisa. Possuía um físico magro, pele bem clarinha e lábios tingidos de rosa. Seu cabelo, totalmente branco, brilhava com a luz da lua, e seus olhos, de um azul muito forte, estavam vidrados nele com uma inocente expressão de curiosidade.
— Quem é você?
Deixando essa total surpresa de lado, a princípio, ele realmente estava vindo para esta área nada convencional para se encontrar com alguém. No entanto, a pessoa que imaginava, ou indiretamente esperava, definitivamente não era ela.
E o silêncio profundo pairou pelo lugar, ao ponto dele brevemente cogitar sair de fininho e fingir que nada ocorreu ali, pois ela sequer indicava alguma intenção de respondê-lo. A garota somente enrolou os fios no celular e deu um passo em sua direção. Mas não fez somente isso, ela investiu com tudo até ele, mas obviamente foi da forma menos convencional possível.
Ao perceber pequenas partículas começarem a jorrar do corpo dela, semelhantes a cacos de vidro de um brilho fosforescente na mesma cor de uma safira, ele a viu voar. A garota tomou um impulso que a fez atravessar a distância entre os dois de forma suave, deixando um rastro de energia no ar, assim aterrissando na frente dele num instante.
O susto que ele tomou, em conjunto com a onda de pressão que esse poder fez ao se espalhar e dissipar, quase tirou o seu equilíbrio. Aliás, isso foi muito repentino. Jamais esperaria que ela fosse usar a aura, ou simplesmente magia, para se mover numa curta distância dessas.
— Hmm… É bem como eu pensei mesmo, os seus olhos possuem um segundo tom muito interessante — disse ela, inclinando seu corpo para frente, com as duas íris envolvidas por uma energia luminosa que aos poucos se apagava, fixadas nele.
E ele a encara de volta, em choque, por uma curta fração de segundos enquanto escutava o som de cristais que aqueles brilhos faziam ao desaparecer. Estavam próximos o suficiente um do outro, o bastante para que os rostos dos dois quase se tocassem.
A face dela demonstrava uma expressão inocente, porém, muito curiosa. E em meio a isso, um misto de emoções borbulhavam na cabeça dele. Enquanto um lado dele a achava fofa e tinha a genuína curiosidade de apreciar o que estava bem diante de si por mais um tempo, o outro se sentia tão desconfortável ao ponto de cogitar se atirar de costas contra o chão para manter a distância.
— Ah… Muito obrigado, eu acho… — Ele desvia o olhar pro lado — Mas meio que… isso aqui tá um pouco esquisito, não?
A garota, por um segundo paralisa e então, numa cena em que suas bochechas se tornavam cada vez mais vermelhas de modo que ameaçava a explodir a qualquer instante, recua em um pulo soltando um grunhido estranho e diz:
— Desculpa... Me… Me desculpa. É que… bem, sabe? Curiosidade. Como não paravam de falar sobre você, eu queria te ver logo, então… — agindo toda atrapalhada, ela vai falando até o som da sua voz diminuir o bastante para sumir. No fim, ela abaixa a cabeça e cobre a face com os dedos, desviando o olhar para o lado.
A maneira como ela gesticulava, balançando as mãos de um lado para o outro desesperadamente, o fez ficar descontrolado internamente em conjunto. Entretanto, independentemente de ter que prender a vontade de rir que surgiu dentro de si, ele rapidamente organizou todos os seus pensamentos e assim disse:
— De todo o modo, você ainda não respondeu a minha pergunta…
Agora não adiantava mais ficar deprimido por ter esperado que a pessoa que fosse vir lhe encontrar fosse outra.
— Quem é você? O que faz aqui?
Em reação, a garota inclinou a cabeça para o lado e olhou para ele confusa.
— Hm… acho que tem uma, a mais aí, hein?
— É só impressão.
Por segundo ela fez uma cara de quem dizia: “é sério que você meteu uma dessas?”, porém sumiu numa questão de milésimos. Ela deu um sorriso e então falou:
— Eu sou Rie Koike. Fiquei encarregada de vir receber você.
— Me chamo Jun Asano. É um prazer.
— Bem, isso eu já sei.
Ao ouvir essas palavras, a face de Jun congelou por completo, e Rie que no mesmo instante cobre a boca com a mão tentando esconder o riso. Ela, sem sombra de dúvidas, estava zoando com cara dele e demonstrava estar adorando isso.
— É um prazer te conhecer, também — disse Rie avançando em direção a Jun com os olhos fixados no dele.
Para onde que foi toda aquela vergonha de antes? Ele não parava de se perguntar, pois isso parecia ser um enigma sem solução. Ela apenas mudou de atitude do nada.
— E aqui está o seu presente de boas-vindas!
Estendendo as mãos para ele, a garota lhe entrega um pequeno objeto. Era uma adaga preta guardada numa bainha igualmente escura, na qual Jun pega sem hesitar. Desse modo, Rie dá um passo para trás e fala:
— Me deu muito trabalho pra trazer isso até aqui, viu? Sendo assim, eu quero que você pense em mim todas as vezes que for usar — falava enquanto gesticulava com o dedo em círculos — O meu esforço não pode ter sido em vão. — E terminou apontando para ele.
— Que coisa fofa… Mas em quem eu tenho que pensar, mesmo?
Rie, emburrada, cruzou os braços e o encarou como se falasse: “seu chato!”, mas Jun apenas tentou se conter para não rir, o que a fez fazer um beiço. A garota obviamente não falava aquilo a sério, e o mesmo valia para ele, pois essa era a primeira vez em que eles se falavam de todo o modo.
Ele concentrou-se em sacar seu novo pertence. Apesar de não possuir guarda mão, o recorte da lâmina desempenhava essa função. Possuía dois gumes e era praticamente escura por completo, exceto pelo contorno prateado ao longo do fio. No entanto, Jun não teve a chance de continuar analisando seu presente que acabara de ganhar.
Um estrondo ensurdecedor interrompeu sua contemplação e algo voou ricocheteando contra o chão.
Subitamente, passos ecoaram de todas as direções. Ao virar-se reflexivamente, Jun deparou-se com uma cena que lhe causou um calafrio dos pés à cabeça. Soldados trajando armaduras negras, portando espadas imbuídas por um brilho dourado que expelia partículas e apontando armas de fogo para os dois. Conforme avançavam, mais e mais tomavam o local até chegar ao ponto dele ficar completamente preenchido.
— Nossa! Como vocês são insuportáveis! — Rie exclamou cerrando os punhos.
Uma linha dourada rasgou o ar. Instintivamente, Jun moveu o braço parando a adaga na frente da bala. Sua mão pareceu ter assumido instantaneamente aquela posição, mas ao mesmo tempo, também foi possível perceber o seu movimento de forma clara. Naquela fração de segundos, um rastro de energia muito intenso foi deixado indicando a trajetória.
Uma enorme pressão se forma e ocasiona numa corrente de ar que ao se chocar se dissipa de forma avassaladora, assim fazendo seus cabelos serem empurrados para trás e balançarem freneticamente. E a rajada disparada continuou a avançar, mas agora como meros fragmentos de ouro, indicando que o projétil foi fatiado em dois.
— O quê!? — exclamou Rie sem conseguir processar o que acabara de ocorrer.
Jun avançou brevemente, e a simples adaga que empunhava foi tomada por linhas luminosas de um instante para o outro. Foi num piscar de olhos, mas quando puderam dar conta, a lâmina daquilo havia começado a crescer. O que parecia ser um objeto insignificante transformou-se numa espada.
As mãos dos soldados passam a tremer, as espadas e rifles sob uma postura impecável, então desabam e eles recuam um passo para trás. Jun morde os lábios e se prepara mentalmente para ter que agir, caso necessário, olhando-os fixamente. Mesmo sem entender o que estava acontecendo, ele ainda não ficaria parado — ainda mais para os autodenominados Ones, como eles.
— Vem comigo. — Rie disse enquanto pegava Jun pela mão e o puxava em direção ao precipício, num ato repentino.
Cacos do mesmo brilho azul anterior envolvem a garota que corre de mãos dadas. E então, quanto pode se dar por conta, os seus pés haviam deixado de tocar o solo. Um forte impulso os lançou para o alto, fazendo com que voassem entre as inúmeras estrelas cadentes de ouro que caiam no sentido contrário.
E em meio a esta vastidão uma torre que tocava os céus pode ser vista.
Após uma grande parede de mármore responsável por dividir um mundo de duas realidades, lá estava, ao centro de tudo, a imensa estrutura com um anel na ponta. Algo tão magnífico, mas era cercado por uma ilusão sem fim. Um domo feito de inúmeras linhas poligonais nas quais apenas deixava a luz e a sombra do outro lado passar.
— É bonito, você não acha? — perguntou ela com um olhar encantado.
No entanto, entre o vento e as cores sem fim, o que ela obteve foi apenas um silêncio profundo. Para Jun, não havia como conceber tais palavras. O som do sino daquele local que foi acertado, apenas recuou e assim ficou, repetidas e repetidas vezes dentro do seu ser. Esta vista, de algum modo, lhe era simplesmente nojenta.
* * *