Volume 1
Capítulo 1: O reino de Bellandor
No subterrâneo de um grande castelo, ouvem-se passos lentos de um grupo se aproximando. Eles não estão conversando, discutindo ou rindo, mas sim gritando... com alguém.
Plaft!... PLAFT!
A cada passo dado, um barulho ensurdecedor de chicotadas era desferido, ecoando por todo corredor escada abaixo e paredes ao redor. A mão pesada de quem o desferiu talvez nem sequer se importasse com vidas alheias.
— Vamos! Mais rápido! — berrou o homem segurando o chicote com força, pronto para desferir mais um golpe.
Junto ao som da carne viva sendo golpeada pelo chicote ouve-se um chacoalhar. O som parecia ser de ferro encostando uns aos outros. Correntes. Mas afinal quem estaria acorrentado? Quantos degraus ainda faltavam descer?
Nas silhuetas sombrias, sequer eram reconhecíveis os rostos. Destacava-se a altura de cada um, enquanto os homens que portavam espadas, machados e chicote tinham alturas semelhantes e usavam o que pareciam ser armaduras, o acorrentado era bem mais alto e com um corpo robusto.
Suas mãos estavam entrelaçadas e sua cabeça baixa. Seus passos eram mais pesados e menos sutis em comparação aos dos guardas, embora o som das juntas e grevas também fosse facilmente reconhecível por alguns presentes.
Ao andarem no corredor, uma única fonte de luz no topo das paredes, entre as barras de ferro da masmorra, clareou o caminho, revelando a face monstruosa do prisioneiro.
Uma criatura forte, esta tinha pelo cinza que lembrava um vasto nevoeiro numa manhã de inverno, juntamente de garras afiadas e grandes presas. Seu tamanho poderia assustar qualquer cidadão comum que o avistasse. O focinho era enorme, capaz de trucidar e dilacerar carne e ossos facilmente.
As garras de seus pés arranhavam o chão de pedra a cada passo. Enquanto caminhava pelo corredor sombrio, silhuetas semelhantes o observavam calmamente de dentro de suas celas, já outras apenas rosnavam e uivavam sem motivo aparente.
— Vai, abre isso logo, já tá quase na hora do almoço.
— Tá bem, calma aí. — disse o outro guarda, enquanto tirava o chaveiro que estava pendurado em sua cintura. — Enfim esse é o último por um tempo, as celas já estão cheias.
— O rei deveria aumentar nosso pagamento, esse lugar fede a cachorro! — resmungou um outro soldado que escoltava a retaguarda da criatura.
Os outros riram quase que instantâneamente, parecia que aquele resmungo em forma de piada havia sido ao menos útil para animá-los do que estavam fazendo no momento.
Ao trancarem a cela do recém-chegado, eles saem para o seu tão esperado almoço em direção a uma taverna, — Um frango com cerveja iria cair bem agora — falou um dos soldados, morrendo de fome.
Logo, o que restou foram latidos, uivos e o eco ensurdecedor que as paredes favoreciam. Aquilo atormentou a cabeça de muitos, enquanto outros já sabiam o que estava por vir desde que pisaram naquele reino.
“Minha cabeça… Meus olhos ainda estão embaçados”
A criatura sentia sua cabeça pesada, as pancadas junto às chicotadas o deixaram em um estado transtornado e desorientado.
O cheiro da masmorra era desagradável, e os restos de comida que ficavam ou estavam podres só pioravam a situação. Enquanto recobrava a visão e observava ao redor, era possível enxergar muito sangue derramado ou seco pelo tempo.
“Que tipo de tortura fazem por aqui?”, ele refletiu.
Era possível enxergar, mesmo que aos poucos, outros tão semelhantes quanto ele. Alguns eram vorazes e aparentavam ser ferozes, já outros pareciam estar com a cabeça no lugar, apesar da situação, aparentavam um temperamento mais calmo.
“Os irracionais? Então é por aqui que vocês estavam…”
— Heil. — uma voz grave e baixa ressoou da cela a sua frente, o chamando a atenção.
(Heil, é um termo usado para saudações)
— Ahm… Heil. — respondeu ele, curioso.
— Que situação. Você deve estar bem transtornado — A figura não se mexia, permanecia sentado próximo a parede de sua própria cela. — Acredite, aqui faz mais frio do que a neve lá fora.
— Eu… Nem prestei atenção onde estava indo… Onde estou?
— Nas masmorras de Bellandor
— Sério? Droga… Esse lugar existe mesmo… — sua expressão triste não foi muito além de um suspirar, já que ainda se recuperava dos baques antes de chegar.
— Sim! — ele exclamou sucintamente. — Ele existe. O que achava que acontecia com os capturados?
— Morte certa, ou coisa assim…
— Então estava decidido a morrer quando veio pra cá? De fato, uma grande loucura. Eh! rê rê! — ele riu baixo e lentamente, demonstrando um certo contentamento com a convicção do lobo.
— Eu, louco? Não! Eu só… Aceitei. Lutei pra tentar fugir, mas foi em vão.
— Os loucos são os mais corajosos. É por isso que os chamam assim. Aliás, qual seu nome, meu jovem? — quanto mais a conversa fluía, mais intrigado ele ficava.
— Svendur. Mas sempre me chamam de Sven. — ele continuou. — Eu te conheço, não? Acho que já te vi antes… A quanto tempo você está aqui?
— Sou… Um pouco reservado. Desculpe se minha aparência ou manto não colaboram pra isso — com sua mão direita, usando a ponta de suas garras ele alisou o chão procurando algo sem sequer olhar. Apenas utilizando seu tato, começou a contar mentalmente quantas riscas ele havia feito. — Bom… Já estou aqui nesta cela faz duas semanas.
— Ah, lembrei! Você é Ragnar, não é? Como você sabe quantos dias se passaram? Já que você… Ehm…
— Minha condição? Não se preocupe, isso nunca me atrapalhou. Isto na verdade é minha borboleta.
— O que? Borboleta? Do que está falando?
— Nada, esqueça. Você ainda é muito novo pra entender — Ragnar suspirou e puxou mais ar em seguida, olhando para seu pé. — Pra começar. Sabe por que meu pé direito está sempre nesse mesmo lugar?
— Bom… Não…
— Toda vez, na mesma hora, sinto um pouco de calor que vem se aproximando devagar em cima dele e após um tempo vai embora.
Svendur, então curioso, começou a olhar para os lados procurando alguma fonte de calor, seja uma fogueira apagada, uma lampião jogado ou alguma tocha que poderia ser acesa pelos guardas em alguma hora do dia, mas não encontrou nada.
“Como assim calor? De onde?”
Intrigado, ele observou ainda mais as paredes até se deparar com aquela mesma janela, a única fonte de luz do local inteiro. Ela estava do seu lado da parede, enquanto Ragnar estava na cela à sua frente.
“Será que…”
Observando a direção onde a luz seguia, deparou-se com a cela vizinha de onde estava Ragnar. Lá havia um dos irracionais, lambendo suas próprias patas. No chão estava a luz solar, que devagar iria se posicionando mais e mais a direita.
“Entendi… Ele já sente o mínimo de temperatura que for, até mesmo da luz passando por cima de seus pés... Que velho esperto.”
Svendur o encarava intrigado. Ragnar aparentemente conseguia viver tranquilamente sem a necessidade de enxergar, “Seus sentidos parecem ser incrivelmente apurados. Talvez por conta de treinos?”, ele pensou.
— Isso é… Incrível — respondeu o jovem, espantado.
Ambos se calaram após isso. Mais tarde, os guardas retornaram satisfeitos, com suas armas em mãos, desciam as escadas a caminho da masmorra. — Comi feito um porco, não aguento mais um pedaço sequer — era o que podia ser ouvido entre as suas conversas.
Bellandor é um reino conhecido por sua grande fartura, situado ao norte do continente Koaroan, nas regiões montanhosas de Nord Vugge. A região é frequentemente envolta em frio, com invernos quase perpétuos. Primavera, verão e outono são épocas especiais e raras.
Os humanos há muitas eras se adaptaram a viver em climas extremamente frios. O que começou como um pequeno grupo evoluiu para uma tribo, depois uma vila e, finalmente, um reino. Bellandor emergiu em meio a guerras, catástrofes e disputas territoriais incessantes...
Os lobos escutam barulhos e estalos ao fundo. A fechadura da porta, junto aos sons de chave girando de um lado para o outro pareciam estar enferrujados.
— Vamos, vocês dois. Chegou a vez de vocês…
A voz do soldado, junto aos murmúrios e sussurros, podiam ser ouvidas com facilidade. O silêncio da masmorra eram tamanhos, que ouvir gotas d’água pingando do teto ao chão formando uma pequena poça era como ouvir alguém falar.
Ragnar e Svendur logo viraram seus rostos em reação ao que estava acontecendo, observando em silêncio.
— Não! Por favor… Nos deixe ir, não fizemos nada! — a voz afeminada desesperada berrou e gritou, lutando por si a todo custo.
— Por favor. Deixem ela ir, me levem no lugar dela, eu imploro! — falou o outro lobo que estava sendo puxado pelas correntes juntamente com a outra.
— Quietos, os dois!
Plaft, plaft, plaft, plaft!
Uma sequência de quatro chicotadas seguidas foram desferidas e intercaladas em cada criatura…
— Se querem tanto assim implorar pela sua vida, tentem falar com o rei. Ele é uma pessoa bem amigável. Ha ha ha!
— Silêncio! — gritou um soldado alto e com aparência forte.
— Qué que foi, Herik? Tá incomodado com o que, hein? — O outro soldado era mais baixo, tinha uma enorme barba e seu corpo era bem menos atlético.
— Nada, Yjard… Só vamos… Fazer o que Bôdil nos pediu. — a cabeça de Herik estava baixa, com um olhar sério.
— Hmmm… Tá certo então — Yjard continuou. — Ei! Por que não levamos aquele velhote ali também? — ele apontava diretamente para a cela onde Ragnar estava.
— Você não lembra? Ele se entregou. O senhor Bôdil disse que ele era “muito sem graça” pra entreter as pessoas na praça principal.
— Ahh… Verdade — Yjard alisava sua barba, descontente.
— Se quiserem, podem me levar no lugar desses jovens — Ragnar falou, com um singelo sorriso estampado em seu rosto.
— Quieto, cão velho! Você não serve nem pra animar o rei. Acho que ele não se importaria se eu te matasse agora — Yjard puxava seu machado de suas costas o encarando.
— Hum? Seria mais vantajoso me ver sofrer aqui, não acha? Me matar me livraria do sofrimento — Ragnar falava ainda mantendo seu sorriso estampado.
— Esse coroa de merda… Mas até que você tem razão — ele guardou o machado de volta na bainha de suas costas. — Vamos indo, levem esses dois até a praça!
O grupo de soldados, acompanhados de Herik e Yjard sobem as escadarias em silêncio. A masmorra é logo tomada por aquele silêncio inquietante novamente…
— O senhor… Se entregou? Por quê? — Svendur se perguntava que raio de motivo seria de ele estar aqui por consentimento próprio.
— Ora. Eles estragaram minha meditação no topo da colina. Não pude fazer nada, meu jovem. Eh! rê rê!
“Esse cara… Ele deve ter algum miolo a menos”, Svendur pensou, descontente com a resposta. Afinal de contas, o que Ragnar queria estando naquele lugar, será que tinha algum motivo?
— Jovem lupus. Me responda uma coisa. Você por acaso acredita na ideia que pessoas podem mudar?
— Esse povo? Não… São todos uns trastes… Conseguem ser piores até que nós.
— Mesmo? Bom… E se eu dissesse que algo grande está por vir, o que me diria?
— Do que está falando?
— Às vezes… Sacrifícios existem para que outros possam voar mais alto. E acredito que é o que está acontecendo agora. Quanto mais alta é a cobiça, mais alto é o preço.
— Pode me explicar?
— Peço que por enquanto… Confie em Khamad