Volume 1
Capítulo 5: Antes da Degradação
O sol era radiante. Demais. Estava quente e as nuvens se mantinham afastadas pelo imenso azul.
Carros e motos passavam pelas ruas asfaltadas, alguns com cuidado para evitarem os buracos pelas vias desgastadas. As pessoas saiam das suas residências; as frutarias, oficinas e açougues — entre outras lojas — atendiam os clientes com confiança ou uma impressão rabugenta, mas, ainda sim, animada.
As rodas de uma bicicleta rodavam.
Na curva adiante, Karlos virou-se e seguiu pela rua de terra. Fazia sua bicicleta ir rápido, confiante na habilidade de controlá-la — mal da juventude. Seu cabelo era curto nessa época. Seu rosto estava sério como de costume, escondendo a dor financeira das batidas das rodas em pedras.
A poeira levantava e cobria as casas à volta. Como sempre, os velhos jogando baralho reclamaram com sua passagem apressada enquanto um, que não era besta, aproveitou para mexer nas cartas e melhorar sua mão.
Ao chegar no destino, o rapaz parou a bicicleta e desceu. Deu algumas batidas no portão dessa casa e então foi atendido:
— Calma, já tô indo! — Era a voz de um homem.
O portão foi empurrado e ele se revelou. Uma pessoa beirando os quarenta anos, mas já tinha o cabelo todo branco, cabelo esse que era longo e, junto a barba mal feita, demonstrava a forma relaxada dele sobre se cuidar.
— Bom dia, Sr. Diego. — Karlos olhava fixamente os fios tortos pelo queixo do homem.
— Tch! Eu só fiquei com preguiça de cortar, pare de encarar.
— Apenas estou gravando em minha mente o tipo de pessoa que não quero ser.
— Tá engraçadinho pra quem nem mexe a expressão. Só tem 16 anos, um dia vai entender como ficar aparando a barba é irritante. Entra logo, antes que um ladrão leve essa bicicleta.
O rapaz carregou ela consigo para dentro. Era um lugar espaçoso, portava uma casa comum mesclada a um dojo, que ficava em frente a área preenchida por areia e, nas bordas, grama.
— Quer água?
— Por favor.
Ao entrar no dojo, Karlos colocou sua mochila no piso de madeira e olhou os equipamentos nos estandartes: espadas de madeira e bambu; roupas grossas para proteção. E o que mais roubava seu foco: a katana negra no alto da parede, guardada em uma bainha ornamentada com listras douradas nas extremidades.
— Não machuque o garoto! — O comentário soou do fundo do lugar quando Diego voltou ao dojo com a água.
— Sim, amor — respondeu com um tom relaxado.
Ao notar que sua espada na parede estava sendo fortemente desejada, o homem não conseguiu deixar de esboçar um sorriso malicioso.
— Bonita, né? Pena que nunca vai ser sua! Ha ha ha!
Karlos se virou nervoso, estava focado demais para se preparar contra o humor agressivo.
— Aqui — entregou Diego. — Ah! A Eva deu uma saída.
Tomando um susto, o rapaz cuspiu a água em um jato. Protestou:
— Mas eu nem perguntei nada sobre ela!
— Finalmente mostrou algo nessa maldita expressão! Ha ha ha!
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Do lado de fora, ambos se posicionam na areia com espadas de madeira em mão. Devido à temperatura, se trocaram para calças e camisas simples, expondo físicos bem treinados no alcance hostil do sol. Um ficava à frente do outro, próximos de um duelo.
— Que calor da peste… — disse Karlos, puxando a gola.
— É bom pra pele. Vitamina D.
— Vitamina D… com bônus de queimaduras.
— Ha ha! Não seja chato, minha mulher vai lavar o dojo agora, então vai ser aqui. Se quiser confrontá-la, fique a vontade, eu não vou.
— Que atitude fraca. — Karlos abria a posição das pernas no e segurava a arma na altura da cintura, apontando a arma para trás.
— Sim, sim. Realmente fraca. Pelo menos nunca tive que dormir no sofá! — Com um sorriso empolgado para a batalha, ele assumiu uma postura com a espada apontada ao alto, segurada na altura do ombro ao lado da cabeça.
Os dois enrijeceram suas expressões e investiram contra o outro.
Karlos era rápido e prosseguia com uma postura inclinada adiante, do outro lado, seu oponente seguia mais tranquilo, aguardando-o.
Ao chegar na distância ideal, o rapaz girou o corpo e atacou numa vertical crescente que colidiu direto na arma adversária; o estalo soou pelo local. Diego assobiou, internamente elogiando a força que refletiu sua espada para trás e o deixou exposto.
Após arrastar bastante um pé à frente, Karlos cerrou os dentes e golpeou novamente pelo lado, visando o tronco sem proteção do oponente — se aproximava rápido, ia acertar, se não fosse pelo descer súbito da defesa: o ataque atingiu o cabo da espada adversária e parou, visão que surpreendeu o jovem.
Rapidamente o rapaz focou-se em entender a situação: viu que acima de onde acertou estava a mão direita do Diego enquanto a mão esquerda dele estava ao lado, desapegada a arma.
“Segurei reto pra cima então achou que eu não tinha um jeito de me defender às pressas, garoto?”, pensou Diego. “Te falta criatividade!”
Depois de dar um passo atrás, o homem, com a mão restante na espada, a girou para o lado do último ataque e devolveu com um balanço vertical. Tendo realizado tudo num instante, o rosto do Diego se distorcia em uma forma escura, sorridente — perigosa.
Suando frio pelo que presenciava, Karlos abaixou a cabeça e desviou. A terra à volta deles estourou; poeira os rodeava.
Diego voltou a segurar o cabo com as duas mãos e recuou, o rapaz o perseguiu. Tentou um ataque nas pernas, mas o homem desceu a sua guarda rápido e rebateu, em seguida girou o pulso e direcionou uma estocada, que Diego desviou para o lado.
Quanto mais a espada deslizava na madeira, mais o rapaz perdia o equilíbrio. Por ter colocado força demais na estocada, seu corpo seguia contra a sua vontade mesmo que quisesse recuar. Naturalmente, foi tirada vantagem disso.
A procura de uma reação, Karlos largou a arma e tentou socar Diego, que respondeu abaixando a lâmina duma vez contra a nuca do jovem, fazendo soar alto um som estranho. Karlos levava o ataque sem mudar a expressão, porém a forma que a madeira bagunçava seu cabelo e empurrava a cabeça para baixo indicava o resultado doloroso.
Derrotado, o rapaz rolava pelo chão se debatendo com as mãos na cabeça.
— E essa foi minha — disse Diego, triunfante. — “Bonk!” Que som maravilhoso! Ha ha ha! É sua punição por largar a espada tão facilmente.
— Força do hábito…
— Sei, sei. Se não está em um lugar fechado, confie inteiramente em sua espada, idiota.
— Sim. Foi mal.
— E eu achando que finalmente você tinha controlado essa sua mania… — Coçou o queixo enquanto apoiava a arma no ombro, por fim, estendeu a mão para ajudar o discípulo. — Vamos, para de moleza e levante. Claro que não bati tão forte, ia te causar sequelas.
— Já estou bem. — Karlos se levantou sozinho. — Por que hoje o senhor usou sua melhor postura?
— Estava cansado de te enfrentar com aquelas “mais ou menos”, a partir de hoje o negócio vai ser sério.
— Só pode ser brincadeira… — O desânimo tomou o rapaz. Comparado ao futuro, suas expressões vazavam com muito mais facilidade nessa época.
— Seja homem e aceite o novo desafio. — Ele mostrou um sorriso largo. “Nos últimos tempos você andou muito equilibrado comigo, não dá mais pra pegar leve. Como se eu fosse dizer para você, he he.”
— Certo… Estou bem, vamos continuar.
Pelo tempo seguinte do treino, foram feitos vários duelos. Como esperado de confrontos de espadas — mesmo que fossem de madeira — as lutas eram resolvidos em poucas trocas devido à agilidade tremenda imposta nos seus movimentos.
Fadigado em um dos duelos seguintes, Karlos cedeu novamente aos seus instintos e tentou chutar; desviado, o alvo, a ofensiva passou direto pelo nada e, claro, pela atitude o rapaz foi punido com outra pancada na nuca.
O dia seguia.
Quanto mais os embates aconteciam, mais era claro seus modos de lutar: o jovem usava um estilo agressivo que assumia riscos em troca de pressionar o adversário enquanto Diego se mantivera na conduta da sua base sólida, um castelo pronto para todas as hostilidades.
Nessa tarde não houve nenhum gosto da vitória para Karlos.
— (...) Hoje você me pressionou bastante, a areia tava toda marcada para o lado em que eu ficava — falou Diego. Ambos estavam do lado de fora do portão, pois já era a hora do rapaz partir. — Nesse ritmo vai machucar esse velho, me sentiria mal se não conseguisse mais acompanhar você.
— Pare com isso. Tenho certeza que vai demorar para te alcançar. Mas… quando eu puder atingir esse primeiro ataque, vou fazer questão de colocar força.
— Ei ei! Vai matar o velho aqui se fizer isso!
— É brincadeira.
— Realmente?!
— Vou deixar para sua imaginação.
— Apenas diga que sim! — Diego riu, depois foi ao assunto final: — Esse trabalho no calçadão… Faça valer a pena.
— Sim. Serei responsável. Então até mais, Sr. Diego.
— Vai te embora.
As rodas começaram a se mover, ele partia na bicicleta.
— Se tiver sorte, talvez a Eva passe por lá — gritou o homem.
Karlos perdeu o equilíbrio e caiu. Por motivos desconhecidos, afinal ele se ergueu rápido e continuou a viagem como se nada tivesse acontecido. Vendo-o sumir na esquina, o homem manteve o sorriso triunfante, dessa vez modesto pelo respeito da despedida.
No centro da cidade, o rapaz via os prédio e o tráfego pesado das ruas. Após outros minutos de viagem, logo alcançou o calçadão, um local tomado pelo piso de cerâmica de cores variadas. Pelo alto, havia as belas cortinas protegendo as pessoas do sol — e quantas pessoas — as lojas estavam a mil com a quantidade de clientes, preocupação que ele em breve teria que lidar.
Andava devagar com a bicicleta ao lado. Sem saber, Karlos topava com os que seriam seus companheiros no outro mundo.
O uniforme esportivo com um poderoso 18 gravado roubou sua atenção, pertencia a alguém que andava com uma postura reta, repleta de firmeza. Deslocado a uma realidade diferente de seriedade, ele descava-se como uma existência intensa.
Na frente de certa loja estavam dois policiais conversando com um senhor de idade. Eram Dante e Otávio, homens que com a mera presença faziam o lugar parecer seguro. Pela rigidez em seus rostos, o assunto que tratavam ali estava longe de ser simples.
Ao lado, Karlos foi pego por um fedor, não um fedor de cheiro, mas de perigo. Um homem encapuzado passou e antes de se distanciar, comentou para o rapaz com seu tom forte: — Bela bicicleta. — Apesar de não demonstrar nada na face, Karlos se virou e o olhou, notando a parte de uma tatuagem animalesca na pele exposta de um dos braços.
Notando o perigo, ele se apressou.
Perto de entrar na loja em que trabalhava, passou um rapaz loiro com headphone na cabeça. Ele carregava sacolas repletas de jogos e, honrando o que tinha, andava feliz, cantarolando.
Depois de falar com seu chefe, Karlos se trocou e se sentou no banquinho à frente da loja. A vista de toda essa gente passando era reconfortante, acalmava-o de todas as preocupações.
Por um instante, ele se lembrou do que o Diego disse sobre Eva possivelmente aparecer em seu local de trabalho. Considerar isso o fez apertar as mãos em tensão. Indeciso se deveria estimar a possibilidade ou desejar que não se realizasse.
Karlos continuou olhando a movimentação.
Sem que soubesse, o céu ficava claro, cada vez mais. Mal sabia ele — ou toda essa gente — de que aquele brilho era a passagem para o inferno. O inferno em que viveriam.