Volume 2
Capítulo 23: Ditado pra boa sorte
[Sábado, 10 de setembro de 2412, 10:22 da manhã]
O vento fazia com que a copa das árvores fosse chacoalhada, algumas folhas novas caíam sobre o chão já coberto por folhas. O quintal de trás dava visão para uma leve descida até três árvores menores e também para o muro de pedra escura com um portão pequeno. Depois do muro, a floresta começava e a trilha que o pequeno portão dava acesso ficou coberta pelas folhagens das árvores. Eu estava em pé abaixo do pé de mexerica logo na frente da porta dos fundos da casa, minha mãe estava sentada me observando.
A biblioteca é um lugar confortável, mas para aprender o que ela quer me ensinar é necessário um pouco de espaço e também essa manhã está com a temperatura fria que tanto gosto. Segurei a réquia com ambas as mãos e a coloquei próximo ao meu peito, ao invés de puxar a energia para o exterior do meu corpo, fiz como minha mãe me ensinou. Comecei a puxar a Fie recém saída da Réquia para o meu fluxo interno, armazenando-a em meu peito como se fosse um recipiente.
Fechei meu olho para conseguir visualizar o fluxo interno em meu corpo, foquei na energia concentrada no meu peito para entendê-la. Em minha mente, um cenário se formou quando estava totalmente focado, uma esfera translúcida que guardava um núcleo dentro dela, os arredores eram escuros e compostos pela silhueta de árvores. No chão do cenário havia uma névoa incolor na altura dos joelhos que se espalhava pelo lugar, a única fonte de luz era o núcleo dentro da esfera que soltava um brilho amarelado como uma lâmpada antiga.
Essa é a convergência do fluxo com meu corpo… o coração funciona como uma réquia! Li e também já me explicaram o suficiente para eu conseguir ver a semelhança. A Réquia é um objeto que tem uma passagem para pegar energia do astral através de um ritual gravado no objeto, e pelo que estou vendo agora junto aos livros, o coração sempre é tratado como a porta de entrada da energia para o corpo. Agora faz mais sentido o porquê havia tanto a palavra coração nos livros de manipulação de energia.
Observei mais atentamente o núcleo, esse lugar é por onde a energia do fluxo entra, então é onde a Fie que eu tirei e absorvi da Réquia está. Demorou pouco até que eu a encontrasse, a energia Fie era a névoa que cobria o chão, se movimentava ao redor do núcleo de convergência e parecia aguardar um comando. Ela também estava no ar de uma maneira mais fina. Abrindo meu olho, a visualização da energia parecia bem mais fácil do que antes.
Coloquei minha Réquia no bolso e comecei a movimentar Fie pelo meu corpo, primeiro eu a extraia do meu peito e depois espalhava ela pelo corpo com o fluxo interno em um padrão de movimento. Existem muitas formas de se usar a energia, meu tio disse que os jeitos mais complexos são chamados de Geometria Disciplinar, minha mãe me impediu de ler artigos mais complexos sobre essas disciplinas, mas ao menos eu sei o conceito de cada uma delas. A mais impressionante para mim é a que permite a criação através da energia, mas também tenho outras favoritas.
— Parece que você já está pronto, vamos lá? — A voz da minha mãe me tirou dos pensamentos.
— Eu só preciso inflar e estender a energia? Até onde eu puder mantê-la? — Saber o conceito é muito diferente de saber fazer…
Ela colocou uma perna sobre a outra e um sorriso se formou.
— Controlar sine e manter a energia fie sob seu domínio mental deveriam ser as primeiras lições que você deveria aprender, sendo os princípios do fluxo, mas como meu Corvinho já aprendeu escondido da mamãe essa parte, você deve aprender uma disciplina que te ajude a reforçar mais sobre essa parte que você aprendeu tão cedo… A melhor forma de aprender, é fazendo. — Ela gesticulou para que eu começasse.
Fechando meu olho, foquei no vento reconfortante e no som terapêutico das folhas das árvores. Quando minha cabeça estava livre de quaisquer pensamentos, comecei a estender meu fluxo interno para fora e formar minha aura ao redor do meu corpo enquanto mantinha sua forma e controle sob meu domínio mental através da energia Sine. Errei como inflar meu peito, puxando e deixando a energia inflar e ao mesmo tempo, mantê-la conectada a mim. Fui capaz de entendê-la até um metro ao meu redor, a aura era muito grande e controlá-la a uma longa distância do meu corpo, mesmo estando conectado, era um pouco difícil.
Território…
Eu podia sentir o contorno do tronco do pé de mexerica ao meu lado, eu tinha uma imagem metal perfeita de tudo dentro da minha aura estendida. A disciplina do território tinha apenas como conceito estender o fluxo interno para fora e a aura até o limiar do domínio mental, tudo dentro do território de energia é instantaneamente percebido. Eu pensei que quando falavam que dava para sentir tudo era um exagero, mas quando foquei um pouco mais, eu podia até mesmo ver a movimentação de um besouro subindo no pé de mexerica ao meu lado.
Isso é incrível…
Abri meu olho lentamente com medo de perder a concentração, a energia que me rodeava não tinha cor além do aspecto esbranquiçado cheio de partículas. Podia ver as partículas de Fie carregando minha Sine e formando uma esfera de energia ao meu redor, colocando meu domínio em risco. Me virei em direção à minha mãe, que estava com uma feição satisfeita no rosto. Após algum tempo com o Território ativo, a sensação estava se tornando confortável para mim, o suficiente para me mexer.
— Com o tempo e prática, seu território poderá ficar maior e mais estável… Se lembre, existem disciplinas complexas que não devem ser usadas de qualquer jeito. Em uma situação normal, o Território não exerce tanto estresse em nossos corpos, mas isso não se aplica para todas as Disciplinas ou até mesmo para tipos avançados de territórios… não abuse, tá? — Ela se levantou e colocou o dedo na esfera de energia ao meu redor.
Minha atenção se voltou ao dedo dela, era como se o Território atraísse meu cérebro para o fato de que algo poderoso estivesse entrando na esfera. Senti sua energia se movendo por seu dedo antes de sair como purpurina vermelha da ponta do seu dedo. Por instinto, me concentrei na minha energia para tentar impedir a entrada da energia dela no meu território. Ela retirou o dedo da esfera e ergui meu olho para encontrar uma feição iluminada.
Deixei que minha atenção em manter o Território se desfizesse, mas ao invés de deixar a energia desaparecer na atmosfera, eu a reabsorvia em meu peito. A sensação estava ficando mais familiar, como se essa energia Fie em meu peito fosse minha, mas, ao mesmo tempo, também era estranho. Minha atenção foi atraída pelos flocos de luz vermelhos que estavam navegando em minha direção, a presença de Volusia estava neles igual à que estava no quarto.
Levantei a cabeça para encontrar os olhos da minha mãe novamente, ela estava observando a energia vermelha entrar em meu corpo com um olhar complicado de entender. Tentei fazer uma ligação dessas presenças com a herança, ou com algo que ela tenha me dito na biblioteca antes de vir para cá, mas tudo parecia vago, com exceção de apenas de uma coisa. Ao invés de antes, eu nem considerei ter medo de falar com ela, era apenas mais uma dúvida.
— É por isso que eu sou diferente dos outros? Essas presenças em mim, a senhora também as tem em você, né? — Observei enquanto o último floco de luz vermelha estava tendo dificuldade em me alcançar, então aproximei minha mão dele para ele… entrar.
Seus olhos pareciam apreensivos antes de mudar para um brilho de amor materno.
— É disso que a mamãe queria falar a noite… mas podemos conversar agora enquanto Helen arruma a mesa… Você quer conversar, Sam?
Ponderei por um instante, a curiosidade desenfreada que normalmente sinto estava ausente dessa vez. Eu quero… mas será melhor deixar que isso ocorra de forma natural ou apressar isso por causa da minha curiosidade? Parece tão egoísta, além do mais, eu vou ter tempo para isso à noite. Vou me encontrar com Maya depois do almoço, ir ao meu lugar preferido e depois aprender mais com minha mãe… parece mais do que bom para mim.
— A senhora fez torta de frango e palmito? E você e a senhora Helen conseguem distrair a Milena quando eu sair? — Deixei meu sorriso se formar.
Ela arqueou uma sobrancelha.
— Algo mais? — Sons de passos rápidos passando pela porta a distraíram.
Uma mocinha que tinha o tamanho para alcançar minha barriga entrou pela porta, seus olhos navegaram pela minha mãe antes de focar em mim. Um sorriso se formou em seu rosto moreno, emoldurado pelo seu cabelo encaracolado, a camisa escura se encontrava com o jeans claro e sandálias de cor marrom. Quando ela se aproximou com os braços abertos para um abraço, vi seus olhos sendo uma versão mais clara dos da Senhora Helen, afiados com a descoloração dourada ao redor da pupila.
Milena se jogou em mim, afundando a cabeça na minha barriga, coloquei meus braços em suas costas para retribuir o abraço. Ela se virou para minha mãe ainda com os braços abertos, minha mãe a tirou do chão para sustentá-la nos braços enquanto recebia seu abraço apertado ao redor do pescoço. Percebi o cheiro da comida que começava a sair de casa, era mais do que apenas bom, era capaz de roubar completamente minha atenção.
Minha mãe cochichou algo no ouvido da Milena, ambas sorriram e minha mãe a colocou no chão para que ela entrasse em disparada na casa. Arqueei a sobrancelha para minha mãe, que ergueu os ombros em resposta. Ela gesticulou para eu me aproximar e, ao me aproximar, colocou o braço ao meu redor e pousou a mão sobre o meu ombro esquerdo.
Começamos a caminhar em direção à porta da entrada dos fundos para chegarmos à sala de estar. O sol entrava pelas janelas, sendo que são dias raros em que ele aparece nessa intensidade. A mesa no meio da sala de estar estava arrumada, uma longa manta de tricô cobria a mesa de madeira e sobrava para as laterais. Preta era a tela onde o amarelo criava estampas de flores e estrelas pela manta tricotada. Os pratos estavam sobre a mesa, junto a panelas e formas que guardam a comida e jarras que guardavam os sucos.
Todos já estavam sentados apenas nos esperando, me sentei em uma das pontas da mesa e minha mãe se sentou à direita, meu tio à esquerda. Meu avô estava ao lado da minha mãe. Emma e Armando juntos, a cadeira da outra ponta da mesa estava vazia. Ao lado do meu tio estava a senhora Helen, Milena e a companheira do meu tio, Hana. Todos direcionaram seus olhos para mim, eu odeio essa parte, ser o aniversariante significa ser o centro de toda a atenção.
— Obrigado… por virem. — Tentei manter a cabeça erguida, mas a vergonha foi mais forte.
— Eu gosto de ver você crescer, desde um menino que só saía do quarto para pegar livros, até um homenzinho bonito e um pouco menos vergonhoso… um pouco — Emma disse, contendo uma risada no final, meu tio soltou um riso na parte final da fala dela. — Feliz aniversário, Samuel.
Todos pegaram os copos que tinham em mãos e levantaram em minha direção. Mesmo já tendo feito isso em quase todos os aniversários, ainda parecia um desafio encarar todos. Pensei que me acostumaria, que a visão ficaria mais familiar, mas a vergonha que corre por meu corpo e pressiona minha nuca para baixo continuava igual.
Espero me livrar disso um dia...
Peguei o copo de suco de uva na minha frente e o ergui para acabar logo com a cerimônia. As palavras comuns de antes vieram à minha mente, mas pareciam muito ultrapassadas.
Algo novo… o que foi que Minstra havia me dito no centro espiritual?
— Que o sol nos guie pela amanhã e ao entardecer e os Filhos da Aurora que cuidam de nossos lares nos esclareçam em nossos devaneios e incapacidades… Obrigado. — Houve um momento de silêncio antes de todos agradecerem, olhei de canto meu avô que tinha um brilho de orgulho nos olhos.
O ditado que Minstra havia me dito enquanto me contava sobre a herança era algo dito apenas na Família Aurora. Cada família possuía palavras distintas, todos para homenagear o patrono ou matrona e a conexão de irmandade que elas tinham. Como eu sou da Família Áurea, então esse é o que eu devo usar. Podia sentir a presença da Minstra chegando em minha mente e o orgulho estava sendo mostrado por ela em sua presença enquanto se acomodava.
Todos começaram a fazer seus pratos e segui o exemplo enquanto esperava Minstra falar algo. Comecei pegando a torta de frango e palmito da minha mãe e depois indo para o feijão e arroz da Senhora Helen. Armando começou a conversar com meu avô, mas minha mente estava mergulhada no meu prato. Minstra finalmente parecia prestes a falar quando meu prato estava feito, os demais na mesa já estavam em suas próprias conversas, então decidi ter a minha.
— Estou feliz que tenha se lembrado do ditado, sou capaz de sentir que seu avô ficou extremamente contente de ver que você o conhece — Minstra falou.
Me concentrando, formei pensamentos articulados para conseguir conversar sem ter que parecer que estou falando sozinho.
— Os cinco Lares da Família Aurora se formaram com a irmandade dos cinco patronos e matronas ou das pessoas que os seguiam? — Pensei para ela, que hesitou antes de responder.
— Isso é algo que sua mãe te ensinara, mas para saciar suas dúvidas de agora, basta dizer que os Cinco Grandes, como foram apelidados, cuidam dos cinco lares que formam a família Aurora e possuem uma relação de irmandade muito antes da fundação da comunidade dos Lares ou da Aurora em si. Isso se dá tanto pelos objetivos em comum, quanto pelo fato de que, quando estão juntos, podem cumprir seus objetivos de forma muito mais fácil do que individualmente, fora que os cinco vieram do mesmo lugar.
As memórias da nossa conversa no centro espiritual me vieram à mente enquanto colocava outra garfada de comida na boca. Os cinco possuem seus próprios Lares unidos que formam a Aurora.Obviamente, minha maior curiosidade está no patrono Áureo, sendo que eu tenho uma conexão com ele. O Senhor do Sol, Gnoses, seu nome estava no canto da minha mente durante o dia inteiro, mas eu só irei aprender mais sobre ele… sobre minha conexão com ele, quando falar com minha mãe.
Enquanto pensava junto às palavras da Minstra, peguei o pedaço de uma conversa entre meu avô e Armando sem querer. Minstra também parecia interessada e, pelo que senti em sua presença, o trecho da conversa dizia que Armando está indo bem em sua conexão e que meu avô está feliz por ter escolhido ser abraçado. Talvez eu esteja pensando demais, ou talvez minhas dúvidas e suposições estejam certas.
A presença dele está diferente desde dois meses atrás… tem um traço que agora reconheço como herança...
Minstra ficou em silêncio, mas ainda estava em minha consciência. Depois de talvez uma hora de almoço e conversas, a celebração terminou com todos os recipientes e pratos vazios e com todos com uma feição satisfeita. Olhei o relógio para ver que faltavam trinta minutos para as duas horas da tarde, escovei meus dentes e passei uma água no rosto para tirar o aspecto amanhecido. Me aproximei da minha mãe para abraçá-la e repeti o processo com todos. Na vez de Milena, ela agarrou minha mão para me puxar.
Ela me levou até o sofá, onde um embrulho aguardava na beira. Ela soltou minha mão e correu para agarrar o embrulho que trouxera. Então, aproximou-se um pouco devagar, sua feição tinha um brilho tímido ao erguer ambos os braços em minha direção com o embrulho nas mãos. Peguei o embrulho de pano claro e desfiz o laço que mantinha o embrulho fechado. A cor vermelha apareceu primeiro logo depois de padrões hexagonais.
É lindo.
O cachecol vermelho estampado em preto com padrões hexagonais era macio ao toque, enrolei-o ao redor do pescoço para sentir um tecido refrescante. Embora hoje seja um dia diferente do normal, as temperaturas naturais desse lugar são perfeitas para o uso de um, por mais que os meus que foram comprados sempre pinicassem mesmo no primeiro uso, esse não tinha esse defeito. Tirei Milena do chão em um abraço e esfreguei minha cabeça em seu cabelo macio e encaracolado.
A liberei quando senti que havia bagunçado seu cabelo o suficiente.
— Ela ajudou muito para prepará-lo, ouso dizer que ela é a verdadeira criadora do seu cachecol — Senhora Helen comentou, passando a mão na minha cabeça.
— Obrigado, Milena. — Sorri para ela e ela me mostrou a língua em resposta. — Obrigado, Senhora Helen, eu gostei muito.
Ela passou a mão pelo meu cabelo de novo antes de ir em direção à Milena.
— Hoje você vai passar o dia com a vovó e a tia Glória, vamos — Senhora Helen chamou.
Milena parecia querer contestar, mas no final acabou seguindo a senhora Helen em direção ao quintal. Enrolei o cachecol confortavelmente no pescoço e segui em direção ao hall de entrada. Minha mãe estava esperando na porta de saída encostada na parede, me aproximei dela e esperei que ela falasse ou comentasse algo, mas sua atenção estava no mural das paredes. Observei novamente a história contada no mural, mas a única diferença no dourado das pinturas, que era mais vibrante.
— Eu te contarei essa história quando voltar… tenha cuidado e não saia da zona permitida, Sammy. — Ela se virou para mim, seus olhos demonstravam suavidade, mas podia ver a preocupação habitual neles.
— Sim, mãe.
Ela passou a mão pelo meu cabelo antes de voltar sua atenção à pintura, segui em direção à porta para abri-la e sentir de novo os ventos. O quintal da frente estava da mesma forma de sempre, exceto pela garagem, onde havia dois carros a mais e uma moto. O jarro de insetos estava no exato lugar em que eu havia deixado ontem. Comecei minha caminhada até o portão, o vento refrescante estava um pouco mais frio do que antes do almoço.
Me aproximando do portão, vi uma figura familiar escorada no muro. Soltando o cigarro que estava fumando e pisando em cima dele, aquele homem tinha pele morena e o cabelo com vários fios brancos encaracolados. Seu rosto estava endurecido contemplando o chão antes de me ver, os olhos castanhos escuros se fixaram em mim enquanto me aproximava do portão. O corpo corpulento e robusto estava coberto por um sobretudo preto e abaixo dele um suéter verde.
Me aproximando mais, algumas semelhanças de seu rosto com o de Milena começaram a aparecer, exceto pela grande cicatriz que começava em sua bochecha e ia até o pescoço. Era o avô da Milena, Leonardo, ele nunca falou mais do que o necessário comigo… posso estar enganado, mas sempre que ele me vê, seu olhar parece ficar… culpado. Levantei minha mão para ele em um aceno enquanto ia abrir o portão, ele retribuiu o gesto, porém seus olhos ainda ficaram no chão com uma expressão intrincada.
Prestes a sair pelo portão, sua voz me chama:
— Ei… feliz aniversário, é… — Ele colocou a mão no bolso da calça. — Acho que você já deve saber usar um desse.
Ele tirou um canivete do bolso e estendeu para mim. Quando eu ia pegar o canivete, o que parecia culpa em seus olhos ficou mais pesada ao ver uma parte pequena das cicatrizes na minha mão. A ferramenta era maior que a minha mão e com toda certeza tinha acabado de ser comprada. Havia algumas coisas que dava para ver e deduzir suas utilidades, mas a mais evidente era a lâmina que saía ao apertar um botão do lado da armação. Apertei o botão novamente e a lâmina entrou de novo na armação, guardei o canivete e voltei meu olho para o Leonardo.
— Obrigado, senhor Leonardo… Acho que ainda tem coisas para comer lá dentro. Se você quiser, eu posso ir com voc…
— Está tudo bem, só… queria te dar isso, nunca se sabe quando vai precisar de um alicate ou… Enfim, feliz aniversário, Samuel. — Ele disse ao me interromper..
— Obrigado de novo… até mais. — Acenei antes de continuar a seguir a estrada.
O olhar do homem ainda estava na minha cabeça, mesmo já estando um pouco distante de casa. Talvez seja realmente culpa, mas pelo quê?
Pegando o canivete, vi que a lateral possuía as siglas de uma pessoa ao invés de uma empresa: J.F.S. Ao lado das siglas estava um símbolo muito complexo e, ao mesmo tempo, era elegante de alguma forma. Comecei a montá-lo em suas funções, primeiro a lâmina, o segundo era um alicate e o terceiro o martelo, além disso, tinha um saca rolha. Não gosto de pensar nisso, mas deve ter sido caro.
Os pensamentos sobre o senhor Leonardo começaram a me incomodar, havia algo de errado naquele olhar quando ele viu minha cicatriz na mão. Fui deixando de lado as coisas que eu não tinha como deduzir ou saber apenas para focar no que sei, que era apenas que ele é avô de Milena e mora junto com a Senhora Helena… acho que esses pensamentos vão dar em lugar nenhum apenas com isso. Aceitando o fato, limpei minha consciência para focar no agora.
A parte da estrada que estava coberta pelas árvores já havia passado e já podia ver o ponto de ônibus à minha frente, o pasto à minha direita e um bosque público à minha esquerda. Apertando meu olho, podia ver alguém esperando no ponto de ônibus. Os assuntos sobre o que falar com Maya pareciam tão produtivos quanto buscar algo no escuro. No final, planejar minuciosamente uma conversa tira a espontaneidade da coisa.
Ao menos, eu acho que seja assim... Nunca conversei o bastante para comprovar isso.
Maya olhou em direção à estrada e quase podia sentir sua atenção se fixando em mim. Chegando ao ponto, ela estava em pé com um sorriso tímido no rosto, seu suéter agora era vinho com estampas pretas de vinhas nas bordas, sua calça jeans escura terminava em sapatos sem cadarços simples. Sob a luz do sol que já estava sendo escondido pelas nuvens, seu cabelo curto com mechas grisalhas junto aos olhos de safira intensa escurecida com uma mistura de índigo, essa beleza estava maior do que eu lembrava da noite passada.
— Oi… você esperou muito? — Parte da culpa foi culpa da Emma e Hana que ficaram conversando comigo.
— Não, além do mais, eu nem tinha algo a mais para fazer em casa… estou feliz que você veio — Seu sorriso tímido se iluminou um pouco.
— Eu também… vamos? — Puxei o cachecol mais para cima na esperança de cobrir um pouco o rosto.
Ela acenou com a cabeça e então me virei em direção ao pasto onde encontraria a trilha. O lugar era uma parte da propriedade do meu avô, mas foi deixado de lado como muitas partes da propriedade dele por ser exageradamente grande. Começando a caminhada, Maya se colocou ao meu lado e parecia querer falar algo. Cobrimos o pasto em minutos para chegar no começo da floresta. A ansiedade percorreu meu corpo para chegar lá por alguns motivos, a principal era conhecer mais a Maya e talvez… construir uma amizade real com ela.
Será divertido… eu espero.