Asas ao Vento Brasileira

Autor(a): Akarui K.


Volume 1

Capítulo 5: Paredes que falam

O Dia-de-Todos era o único dia em que todas as crianças deixavam suas frescuras de lado para aproveitar tudo sem guerrilhar. Dava pra entender porque Marieta preferia se trancar no quarto: era o único dia em que podia ter paz. 

Joia se perguntava como raios ela conseguia dormir com tanto barulho. Para Giovanna, assistir pessoas felizes era mais prático. Não gostava de comemorar, por mais que apreciasse a felicidade que pairava no ambiente.

Naquele momento, assistia Bruna e Lucian fritando tanajuras com uma lupa, acompanhados de outros grupinhos que tentavam atirar pedras em pássaros com um estilingue.

“Esse Lucian é um tonto mesmo.” Joia pensava. “É o oitavo ano da garota. É nessa idade que eles aprendem a atirar, não a caçar formigas. É só observar ao redor, droga.”

— Ps.

Joia revirou os olhos, irritada em ter suas divagações interrompidas. Conviver tanto com a raposa deveria ter lhe fornecido o dom de super-paciência, mas ainda não era o caso.

— O que foi, Peter? — respondeu para o ar.

— Estou vendo esse olhar apaixonado, querida… — A outra voz zombou, risonha. Giovanna gargalhou, para então olhar ao redor e se certificar de que ninguém estava vendo-a “falar sozinha”.

— Como se eu fosse me apaixonar um dia. — Ela bufou, sentindo a mão dele tapear seu antebraço. Ignorou o gesto; tentar procurá-lo com os olhos era inútil. Novamente praguejou contra o destino por dar uma habilidade incrível a alguém que não a merecia. 

— Por que decidiu ajudá-la, mesmo? — Peter murmurou de repente. Em sua visão periférica, Joia pôde ver um pedaço da quina da parede se mover. Se não fosse por seus ouvidos, teria descoberto sua localização somente agora.

— Você sabe. Eu sempre quis entender esse tipo de coisa.

— Mas sabe que poderia ter entendido há muuuuito tempo...

Incomodada, ela expirou novamente. Parecer uma sombra era o talento nato de Peter e, aparentemente, aprendeu a usar isso contra adultos também. 

Certamente a coluna que ele usava para se ocultar dava vista pra janela e ele também estava assistindo pai e filha colecionarem cadáveres invertebrados. 

A serpente não sabia se a raposa tinha ideia do que ele fazia com aquilo, mas a julgar pelos sorrisos que trocavam e o pote na mão dele, talvez ela também as comesse.

— Acha que ela conseguiria o que não conseguimos? — Seu colega sibilou, mais pra si mesmo do que pra ela, no idioma que só ambos compreendiam. 

Giovanna mostrou a língua, chicoteando-a para baixo e pra cima antes de sugá-la de volta e dizer: — Sugere que eu lance um fardo maior do que ela é capaz de carregar? É errado. Devíamos resolver nossos problemas. E não forçar uma criança a deixar seus sonhos para realizar os nossos.

— Seria ótimo se ela soubesse que o mundo não é perfeito. — Ele grunhiu, evidenciando seu sotaque réptil. — Desde cedo, pra entender que a vida não dá limão algum.

— Cruel.

— Não mais cruel do que o que passamos.

— Ninguém estava lá pra ver nossas desgraças.

Deveriam estar. — A intensidade na rouquidão denunciava que estava bravo. E também com preguiça de saciar a própria fome, querendo mandar outro alimentar-se em seu lugar. Giovanna suspirou, tentando lembrá-lo a ser racional.

— Não irei contar a ela. Que o rio siga seu curso.

— Ela pode ser a represa.

Giovanna voltou seus olhos ao ponto exato em que estariam os dele. Uma afronta, um sinal de que sabia onde estava a garganta. 

— Já pensou o que ganharíamos se um integrante do exército soubesse da nossa existência? — continuava ele. — Seríamos felizes novamente. Não quero obrigá-la a nos servir de informante futuramente, eu só...

— Você anseia exatamente isso.

Peter prendeu a respiração, quase ofendido.

— Não, Vanna. Eu quero consertar tudo. Ela pode ser exatamente o que precisamos. Ser um soldado, uma guerreira, consegue imaginar? 

— Ela irá falhar se tentar. — Tornou a olhar a águia e a raposa lá no pé das árvores, duas crianças, dois irmãos de idades diferentes. 

Duas pessoas felizes, apenas uma que precisou colar os próprios estilhaços por causa de gente como Peter. Depois, tornou a encarar as pequenas sombras na parede que se deviam pela camuflagem dele. 

— Você está com preguiça de resolver o que os nossos também têm preguiça. Se quisessem a igualdade, um mundinho perfeito, já teriam quebrado aquele trato ridículo e nos deixado livres para escolher.

Peter não teve resposta. Giovanna detectou o descruzar de seus braços, ele estava pronto para desistir. Ela tinha razão. 

— Você é tão cruel. — Foi o máximo que ele encontrou de palavras.

— A realidade é cruel, ksah. — praguejou. — O mais cruel é que dá pra vencer esse sofrimento, mas o comodismo nos faz criar malditos tratos com nós mesmos para fugir dele.

— Acha que Diane conseguiria quebrá-lo?

A bochecha dela se contraiu numa expressão dolorosa.

— Ela só tem treze anos. Desista de uma vez.

Depois de um indiferente jogar de ombros, Giovanna sentiu-o caminhar para longe, rente às paredes para manter-se invisível.

— Nunca é tarde pra recomeçar. 

Inesperadamente, o homem mostrou o rosto, chamando a atenção da mulher. Sua couraça réptil, seus olhos de lagarto. Ele nunca deixava de se camuflar, principalmente com a chance de uma criança aparecer disparada a qualquer momento, como era muito comum no Dia-de-Todos. 

Era impossível não assustar alguém com seu olho cego esmaecido e o braço pela metade. Apesar da regeneração dos répteis, o membro nunca cresceu novamente. Os Maldiçoeiros o tomaram dele pra sempre.

— A propósito... — Ele recomeçou, agora em palavras compreensíveis a qualquer um que quisesse ouvir. — Alva tem uma triste oportunidade a oferecer. Espero que agora entenda o significado de nossos chiados, chostash.

Pessimista.

Gostaria de ser tonta o suficiente pra não entender o que ele queria dizer com tudo aquilo. Nada era plenamente perfeito e mesmo que fosse, não iria durar muito. 

Peter estava todo sonhador por um motivo. Iria fazer de tudo para descobrir qual era a razão de ideias tão estúpidas...

— Giovanna.

Só não esperava que fosse acontecer tão rápido. 

Deixou de olhar pai e filha lá fora pra encarar a anãzinha brilhante com cara de mau ao seu lado. O rosto dela emanava preocupação.

Por um momento, ousou desejar que a gata fosse capaz de falar sua língua, pois só assim estariam em verdadeiro sigilo.

De tantas formigas, já deviam ter garantido o almoço de amanhã —  pelo menos o dele, já que as raposas não foram feitas para comer insetos.

Tinha um estoque de potes em seu quarto, todos eles cheios de insetos que caçava quando bem entendia, a maioria das vezes durante a busca da lenha. 

Com aquele formigueiro e a árvore cheia de cupins no canto do quintal, conseguia enchê-los até a boca e poderia beliscar o quanto quisesse. 

Tanto que os potes acabaram. Havia fartura, mas não havia espaço: e bem sabia onde podia arranjar mais um pouco dele. 

A sala de Alva só não era uma despensa porque não havia comida ali. Era lá que os trocentos materiais úteis a caça minuciosa residiam, protegidos das crianças. Aliás, como a festa estava acontecendo, a matriarca estaria ocupada demais pra perceber que alguém furtou um de seus míseros potes.

Porém, Lucian enganou-se quando, antes de chegar na sala, a viu adentrar o cômodo seguida da serpente. Ela já tinha um semblante rabugento, mas agora seus olhos estavam diferentes. Algo grave aconteceu.

Curioso, aproximou-se em silêncio — a mínima vibração faria Giovanna descobrir sua espionagem, então tinha de ser cauteloso.

A própria audição jamais se compararia a visão: não escutava bulhufas do papo. “Pff, que droga. Vou ter que me contentar com o que der”, pensou. 

— Você, pelo menos, tentou avisar sobre o idiota? — ouviu timbre réptil inconfundível da serpente. Alva concordou sem permitir que ele ouvisse o resto. Eram poucas as frases que entendia e não lhe davam resposta alguma além de especulações. 

Ambas seguiam com elementos de aparente importância impossíveis de discernir. Foi então que alguma questão de Giovanna a intrigou e Alva subiu seu tom:

— Acha que não sei disso? É apenas necessário. Infelizmente é. Não tem o que fazer. 

— Ela jamais iria aceitar! - A serpente chiou de volta, alertando-a.

— Não é sobre o que Bruna acha. O futuro dela está em jogo. Se levarem-na, terá uma vida muito melhor. E longe de tanto caos.

Ele não precisava ouvir mais nada. Sua cabeça juntou as frases num milésimo de segundo e a revelação o fez se afastar, em choque. Quase não conseguiu escapar a tempo da serpente vir averiguar a porta.

Escondido a algumas paredes de distância, o pânico crescia em seu peito e tentava contê-lo para não tornar a notícia pior do que já era.

A festa ainda acontecia dentro da mansão, gincanas aconteciam para encher ainda mais a casa de alegria. A intenção era essa para as crianças, quando para os adultos era somente esquecer as preocupações da vida e ter um dia de relaxamento. 

Coisa que parecia, a cada dia, não funcionar mais tão bem. 

Ao que as horas passavam, ficava cada vez mais difícil para Lucian aceitar aquilo. Aceitar aquela frase, “longe de tanto caos.” O que doía é que não era equivocada.

O orfanato não tinha mesmo porcaria nenhuma a oferecer a não ser abrigo. Aquelas crianças cresceriam tão rápido como uma flor e não hesitariam em tomar novos rumos pra bem longe dali também. 

Isso porque eram normais: Bruna chamava mais atenção que o próprio sol e, no fundo, Lucian já sabia que não demoraria para virem expurgá-la. Só não esperava que fosse ser tão cedo.

— É só negar — dizia Juan como se fosse a coisa mais normal do mundo. — Ora, ela é sua menina…

— Não. Eu não posso. Não é tão simples assim. — Afundou a cabeça nos braços. — Isso seria... Tirar a chance dela de viver outra vida.

— Aquela garota te ama, acha mesmo que ela iria embora? É sua filha, de outro sangue ou não. E você como pai não deve abandoná-la.

— Eu… Eu devo deixá-la ir, Juan. Sei que é o certo.

— E vai voltar a viver como antes, dependendo da própria curiosidade pra permanecer vivo?

Lucian demorou com a resposta. Queria dizer a verdade, que já estava à espera da morte há muito tempo, mas isso iria afundar ainda mais a situação.

— Não tenho escolhas — bufou, apenas.

Manter a menina por perto não dependia mais de sua vontade. No fim, não fora nem a árvore, nem o forno; o destino lançava sua carta no momento certo, tirando-lhe de novo o único resquício de felicidade que tinha.

 



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