Asas ao Vento Brasileira

Autor(a): Akarui K.


Volume 1

Capítulo 4: Missão de primeira instância

— Você é impossível, garota.

Deviam ter dito algo parecido depois do ocorrido com o forno, mas não se lembrava. Eles só não a deixavam esquecer que era mesmo uma menina impossível de conter.

Juan se tornou um amigo tanto para Lucian como para Bruna, o fósforo mirim que viveu o inimaginável. Não era exatamente um amigo, mas de vez em quando se davam bem, trocavam xingamentos, brindavam de manhã cedo, dentre coisas desse tipo. 

O rinoceronte, apesar das estranhezas da raposinha, adorava arrepiar aquela cabeleira esfregando o polegar em sua cabeça minúscula. 

Irritavam-se mutuamente enquanto ela o ajudava a transportar ferramentas quentes na troca de lenhas — acesas ou não. A menina gostava de se sentir útil e tê-la por perto era uma mão na roda. 

Ele só tinha de se preocupar com o minúsculo tamanho dela, que tornava possível uma grande quantidade de acidentes dos quais ele jamais pensaria sofrer.

Bruna deixara o garfão cair lá dentro bem mais que uma vez. Já levaram tantas broncas por ficarem discutindo ao invés de botar lenha que podiam se equiparar às fugas de banho da raposa. 

Certas vezes, quando o rinoceronte acordava preguiçoso, ele atirava o resto da bebida alcoólica dentro do forno e não havia muito serviço. Mas quando estava decidido, saía de madrugada para voltar apenas depois do meio dia com barris e mais barris de mantimentos. 

O tempo que ele levava para transportá-los era mais longo quando se tratava de uns barris de um líquido limpo e tóxico. Tinha o cheiro parecido com a bebida que ele ingeria escondido — só que um devia ser pra engolir e outro pra queimar, Bruna ponderava. 

O nome era estranho e quase sempre se esquecia dele. Sabia que começava com “Q” porque Juan a apelidava de Henriquerosene — um dos poucos apelidos que não odiava, apesar de ser Lucian quem realmente detestasse. 

Juan só parou com a zombaria no dia em que Bruna derrubou o líquido no próprio braço e uma fumaça tóxica se apresentou. A situação não era de todo peso para Bruna, já que a situação a afastou da tarefa e ela também não queria aturar o cheiro daquilo por muito mais tempo. 

De vez em quando, ajudava na cozinha para transportar assadeiras de um lado para outro. E apenas isso. Não queria saber de cozinhar, preferia correr na terra e se sujar toda de barro, sem se importar com os olhares tortos dos seus similares. 

O que ela não percebeu é que não era por isso que a evitavam. Após o dia do forno, coisas ainda mais estranhas saíam de suas mãozinhas em forma de fogo, fator esse que provocou contos ainda mais inéditos que a própria Bruna.

Torrou o pão do café da manhã quando se irritou com as rotineiras zombarias: incendiou a pobre massa e atirou-a no menino que a irritara, errando por pouco e acertando a parede em vez disso. Assim originou-se a mancha escura em forma de pão lá.

A famosa “torrada”.

— Eu avisei que isso não daria em coisa boa, mas ninguém quis me ouvir...

— Cala essa boca, Marieta!

Ela gerava o fogo e a vida de todo mundo se tornou mais fácil desde que descobriram isso, inclusive a da própria Bruna.

Seu apelido, Faísca, se tornou mil vezes mais comum, acompanhado do novato Padeira-flambada, que se repetia ainda mais quando ela incendiava as próprias mãos e ameaçava fritar os ossos de quem a incomodasse. 

E apesar de nunca ter feito realmente mal a ninguém, ainda havia certa relutância. As brigas tornaram-se mais comuns e ainda mais longas, já que Lucian desenvolveu certa superioridade e passou a adorar xingar a Fera. 

Sempre que discutiam, os pensamentos não o abandonavam. Odiava admitir que a maldita podia ter razão: mesmo que a menina fosse inofensiva, acidentes aconteciam e ninguém a perdoaria caso assim fosse. 

Além do fato de que a estrutura do Das velas era quase toda de madeira e seus desentendimentos com os meninos não seriam desculpa para algum cômodo destruído, senão algo muito maior.

— Enerion. É isso que ela é. — Alva dizia enquanto soltava um pesado livro na mesa, um de suas épocas estudantis ressuscitadas. — Em Oliphia, não era um assunto muito falado, mas isso foi quando eu era menina, talvez hoje tudo esteja diferente...

Isadora puxou o livro de biologia para si, lendo ligeira a única página amarelada dedicada a tal anomalia. 

Joia, a serpente, estava ali de enfeite: fora arrastada pela gazela na interrupção de um momento tranquilo demais para estar paciente agora. E como não dava mínima importância ao assunto, Alva continuou a dizer na tentativa de despertar seu interesse:

— Quando saí de meu país natal, era um assunto que estava em debate geral. Rolavam greves e mais greves em torno dessa palavrinha estrangeira, mas não tive interesse em saber o fim da história. Este é o único livro de minha época que remete à situação de Bruna.

— E o que cargas d'água é essa situação? — Joia perguntou por educação, escondendo-se atrás de sua cortina de indiferença.

— Pessoas capazes de fazer coisas fora do comum — respondeu Isadora antes de Alva, finalizando a leitura. — como um dom especial. Também já ouvi falar, embora sejam tão temidos no oeste, vistos como aberrações…

— Bruna é um deles. Não tem como não ser — continuou Alva. — afinal, enerions são mais resistentes que pessoas comuns.

— Há alguma chance… — Giovanna desenhava círculos na mesa. — … … dela se descontrolar por conta desse “dom”?

A aparência de Joia não era nada perto de sua personalidade. Não era possível saber quando tinha boas intenções, mesmo que Giovanna fosse moralmente calma e lidasse bem com as crianças. 

Marieta profetizava que um dia a faria falar muito mais além de seus sussurros, mas a serpente não se intimidava. Sempre sorria com tamanha despreocupação e deboche quanto era possível para sair ilesa. 

A serpente era imprevisível demais, até para Alva; se não a conhecesse o bastante, passaria a acreditar que Joia desejava a cabeça da enerion no prato.

— Talvez — responderam a gazela e a gata mutuamente, quando somente Alva continuou. — Só se não aprender a controlar antes.

Com um sorriso estranho que tentava ser discreto, a terceira mulher captou a mensagem.

— E se eu recusar? — Aquele era seu jeito de demonstrar insegurança.

— Bem, com anormalidades você já está acostumada — continuou Isadora em seu tom didático, sem notar que sua racionalidade não fazia muito bem para aquele tipo de assunto. — Não será difícil com uma menina que conhece e convive todos os dias...

O olhar que a serpente pregou na gazela dizia que iria cortar sua língua e comer no jantar se continuasse a falar. Giovanna bufou e recomeçou:

— A menina não é complicada, mas as circunstâncias são. Só pelo que Alva disse sobre as rebeliões, está óbvio que enerions deixam de ser confiáveis. Se este vulcão acordar, nenhum de nós será capaz de fazê-lo dormir.

— Exatamente. Por isso, devemos impedi-la de despertar — respondeu a velha. — E você conhece bem essa situação, Giovanna.

O jeito que Isadora a olhava mostrava que sabia mais do que aparentava. Joia sentia-se desprotegida e impotente diante de tantas informações que já deveriam ter sido esquecidas.

— Converse com Lucian. — Alva finalizou sem dar mais brechas. — Ele a entende melhor que ninguém.

E era isso que temia.

— Então vou cozinhar seu fígado pra comer no café da manhã! Ha-ha-ha!

Se a ursa maligna ouvisse que Bruna estava ameaçando um dos meninos, não hesitaria em dar-lhe uma surra desta vez. Mas a situação real não era nada do que parecia. Estava apenas indignada. A raposa. Costumeiramente com Lucian.

Ele parecia reclamar de algo, a incentivando a continuar alguma coisa que a serpente não sabia exatamente. E ela retrucava com um pedido irritado para que a deixasse em paz. 

Ainda não notaram sua presença e finalmente conseguiu entender do que se tratava quando ouviu Lucian gritar:

— Como quer ser boa de briga se não quer saber se controlar?!

Era uma ótima chance de aproximação. Não que tivesse algum tipo de proximidade com qualquer um dos dois, mas o mínimo que poderia fazer era explicar a coisa toda a Lucian antes que ele estranhasse o ato. Se aproximando, Giovanna iniciou:

— Bruna. Deixa o idiota em paz. 

A menina mostrou a língua e correu para longe, tentando voltar a escalar as árvores longe de Lucian, que ao se ver livre da menina, se direcionou à serpente:

— O que quer, bandeirinha?

“Alva vai me pagar caro por aturar esse idiota.” A mulher respirou fundo e recomeçou.

— Vim a mando de você-sabe-quem.

— Claro, nada te faz levantar do sofá além da sua obrigação.

Novamente ela suspirou, em busca de uma tão difícil paz interior.

— A menina está passando dos limites. A casa é de madeira. Você consegue imaginar o caos, Penosa.

Giovanna sibilava com sua língua esperando alguma resposta de Lucian, que não pensou em coisa melhor a não ser uma demonstração consistente de que estava tentando. Chamou Bruna para perto e tentou iniciar, da forma mais simpática que sua cara permitia:

— Podemos conversar sobre aquilo, preguicinha?

— Vai se lascar! — Bruna tentou correr, mas ele a segurou pela gola da blusa enquanto se direcionava a Giovanna, aos sussurros:

— Você acha que eu não ligo pra isso? Eu ligo e muito. Eu me preocupo também, droga. Agora se você acha que pode vir me dar ordens sobre…

— Não ligo pra você. — A serpente interrompeu, monótona. — Meu negócio é com ela.

Ele sorriu, escarnecedor, pronto para ironizar com a situação, mas mudou de semblante quando Giovanna insinuou com a menina:

— Henriqueta, não é?

Sabia que o nome funcionava, Lucian mudou para uma postura defensiva. Seu informante fantasma era de grande ajuda em certos momentos, deveria mandar uma criança para ele devorar depois.

Senhora. — Bruna respondeu em tom propositalmente irritante, acenando as mãos em deboche.

— O que acha de sair comigo pra botar fogo em algumas coisas?

A raposa a fitou por algum tempo até mostrar a língua de novo e correr de volta para o quintal. Lucian riu da situação enquanto negava com a cabeça.

— Coitadinha... — zombava. — Achou que ia ser fácil assim?

Mas seus olhos se voltaram para a porta quando esta se escancarou num baque alto. Giovanna sorriu escarnecedora, tornando a aproximar-se da menina de olhar bravo que mal aguentava o machado que trazia nas mãos.

Bruna não era simpática e menos ainda conversável. Tinha o gênio similar a um vendedor de lâmpadas mágicas falsas, sempre convicta de que venceria a serpente pelo cansaço ao passar o trajeto inteiro lhe fazendo perguntas irrelevantes e dando respostas óbvias para justificar alguma coisa.

E como se já não bastasse a própria situação desconfortável que estava inserida contra sua vontade, tinha de ser estranha o suficiente para que a menina tivesse reais motivos para questioná-la.

Para qualquer pergunta de crianças normais, justificar com “porque sim” era bastante, mas a raposa sempre era mais inteligente. Em vez de perguntar por que sua pele era escamosa, perguntou a que espécie ela pertencia. Perguntou como respirava. Perguntou até se poderia se vestir como ela. Que tipo de garota gostaria de ser como ela?

A partir disso, Bruna magicamente decidiu que gostava dela, por nenhuma razão que Giovanna pudesse desconfiar além do passeio pelo mato e algumas respostas interessantes. 

Recebeu o apelido de Joia sem que permitisse que isso acontecesse. E assim tentou criar um laço estável com a garota para que conseguisse cumprir a missão que lhe foi dada.

Sabia que Alva só estava pedindo aquilo porque achava que Giovanna tinha alguma afinidade com aquele tipo de enfermidade. E talvez porque era a única que não nutria sentimentos de estranheza pela menina, que aparentemente achava a mesma coisa da serpente. 

E, acompanhando a garota, surgia mais um motivo para ser a escolhida: tinha mesmo uma paciência muito bem paga.

No decorrer dos dias, nenhuma de suas tentativas de ensinar a menina a controlar o elemento foi de sucesso, mas conviveram por tempo o bastante para conquistar sua confiança e incentivá-la a não usar os dons. Isso parecia útil de primeiro momento, enquanto ela seguia imatura demais para se controlar. 

Também, enquanto o problema não pudesse ser resolvido com gente mais competente que ela. Era o bastante para manter a casa de pé e as demais crianças vivas, em primeira instância.

 



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