Volume 1
Capítulo 30: Balde de água fria
A próxima aula era de um tal de maracujá. Quando descobriu que era Phaldengart, teve de se trancar no banheiro para não se mijar de rir no novo uniforme.
Era estranho que o velho aparentasse surpresa, já que praticamente assistiu de camarote a raposa despencar do paredão, mas logo ele abanou a cabeça e tornou a ser o de sempre.
E para compensar a pessoa terrível que era, ao menos ensinava bem, sem deixar rastros para dúvidas — com certeza era porque odiava responder perguntas.
Não parecia dar a mínima para um suposto primeiro dia. Explicava sua matéria como se todos ali a soubessem de cor e salteado, e pela primeira vez Bruna pensou que Cassandra não era assim tão zombeteira.
Era horrorosamente complexo entender as lições, devido a intensa variabilidade de conceitos e suas interações entre si. Se não fosse pela ovelha, a raposa estaria perdida.
Pelo menos as classes de enerions eram mais simples de se lembrar, pois as fraquezas eram quase um labirinto. Nesta aula, ele especificava o que não se deveria fazer numa batalha contra um Anormal, isso enquanto citava os pontos fracos de todos os outros tipos, forçando os alunos a decorarem a coisa toda para entender.
“Por serem imprevisíveis, é importante que evite o uso de habilidades até que o adversário perca a paciência e decida ser mais agressivo.”
Essa parte parecia docemente intuitiva. “Oh, claro, é só se conservar para não mostrar suas armas a ele, esperá-lo atirar-lhe centenas de discos de prata mortais pra só depois pensar em uma estratégia, bem no meio da luta, ocupando-se em esquivar de tudo que poderia arrancar-lhe uma mão.”
Lutar contra um Anormal parecia ser assustador, principalmente porque tinha de se deduzir a fraqueza dele.
Brevemente, Bruna lembrou-se do momento em que Cassandra dissera que a água era o antídoto de sua névoa. Ela sequer conseguiria expirar a fumaça convencional nas chuvas de verão.
Phaldengart não chegou a citar muito sobre os naturais, mas não que fosse um problema, já que suas fraquezas eram certas e impossíveis de errar. Alguém que dobra ventos seria incapaz de afetar um que domina o solo, assim como alguém que controla a selva não teria o que fazer contra um incêndio.
Quando se deu conta, a sala inteira a olhava em silêncio, inclusive o chimpanzé, aguardando a resposta de uma pergunta que não ouvira. Conseguiu mandar um olhar furtivo à Cassandra, que fez um gesto que representava lutas. Não que fizesse sentido.
— Desatenta demais. Muita coisa faz sentido agora — enfatizou o velho. — Não sabe nada sobre os outros tipos.
— Er… Até sei, mas...
— Então muito provavelmente você necessite de reforço — cortou-a, fingindo não ter ouvido. Começava a achar que ele era meio surdo. — Sua falta de atenção é um grande problema, Bruna.
Não sabia se seria pior que ele somente se esquecesse do seu nome, porque soava repugnante de toda forma. Não se preocupou muito em disfarçar a raiva, ele que soubesse que o odiava e que corria perigo caso a encontrasse na rua.
Ser liberada para a próxima aula foi tão prazeroso como um banquete para um faminto. Ao saírem e se verem distantes da sala, Cassandra tornou a comentar:
— Dá até pra ver que você quer matar alguém hoje. Lá dentro estava um forno! Você tem algum tipo de problema? Sabia que podia ter levado uma advertência? Sorte sua que esse lugar inteiro é um inferno e quase não deu pra reparar.
Bruna desviou o olhar, envergonhada.
— N-não, não percebi. É algo que eu não controlo, eu superaqueço quando fico brava. E aquele cara me dá nos nervos.
— Ah, então tomara que você não fique brava comigo.
Bruna riu diante da possibilidade.
— Nah, nem no dia do teste, quando você jogou na minha cara que era impossível criar fogo do nada. São coisas e coisas.
— Acho que não existe alguém no mundo que não odeie aquele cara. Ouvi dizer que ele fica pior quando se dirige aos naturais.
— Sério? Oh, sabe que eu nem reparei? — sorriu ironicamente.
— Ah, são só boatos. Com certeza ele odeia todo mundo, sem exceções.
— É muito bom ser a exceção de todos os professores — murmurou, lembrando-se de Michelle. — Mas eu prefiro ignorar essa minha “raridade”.
— Está falando da sua bunda quentinha? É, quem sabe você seja mesmo. E talvez o maracujá esteja com inveja disso.
Era mais sensato pensar assim. A última aula seria dela, seu estômago devia estar se desintegrando.
Michelle era uma das poucas que sabia que a queda do paredão não fora um acidente, no entanto era equivocado pensar que escolhera Bruna para suas aulas só por isso.
Uma garota pós-intermediária com feições de iniciante numa aula de avançados parecia ridículo. Não sentia que sabia muito sobre os próprios dons para isso. Poderia até arriscar dizer que preferia ser tratada como um nada por Phaldengart do que como uma deusa por Michelle.
— Qual sua próxima aula? — Cassandra a tirou de suas angústias com o tom irônico daquela pergunta. Algo se escondia no seu sorrisinho perverso, e Bruna entendeu quando olhou a lista de horários, bufando de desgosto.
— Natação.
Em um dos quase seis vestiários do prédio, trajou sem opções o uniforme de treino, dobrando a manga do braço engessado até o ombro para que não se desprendesse dali.
Bruna podia ouvir através das paredes sons brutais de cachoeiras. Pela sua localização no mini-mapa, deviam estar nos fundos da academia, bem próximos a um dos parques florestais de Sialeka, o que a deixava bastante empolgada, apesar de temerosa.
Não era um pátio de treino, tampouco uma quadra fechada, mas sim uma selva repleta de pedregulhos, em que se chocava contra estes uma impetuosa queda d’água vinda de muitos metros de distância, senão um hecâmetro.
Isso além da imensa pedreira sob ela, uma escalada oculta pelas cortinas de água, com uma enorme piscina natural ao fim da queda d’água que mais lembrava um redemoinho.
Como um hall de entrada para o escarcéu de mato, pedra e água, uma grande arena de terra batida era a única parte segura, capaz de encolher umas cinco casas pequenas em sua área.
— Se acha que detestava água só por ter de tomar banho, irá terminar de odiar a partir de hoje — zombou a colega, fechando o maxilar da raposa. Até o ar era molhado: seus dons seriam inúteis ali, senão inexistentes.
— O que raios é isso tudo?
— Uma prova de obstáculos bem selvagem. Temos de aprender a nos virar nessas condições terríveis existentes pra treino. E se você acha isso impossível, espere para ver a Sala da Nevasca. — Bruna urrou de ódio, gritando contra o vento que preferia estar na enfermaria.
— Olha ali. — Cassandra apontou com o rosto pros arredores do campo seco. Cercas altas davam visão a uma invejável calmaria nas aulas aos arredores.
— À direita, a aula dos iniciantes, medianos e não-enerions. Eles têm as mesmas capacidades físicas, então não é um problema os deixarem juntos. Normalmente os iniciantes e medianos aprendem apenas a nadar.
Bruna assistia, decepcionada, os adolescentes saltarem nos tanques e nadarem até o outro lado. Só queria aprender a boiar agora.
— Aqui onde estamos, é a dos intermediários. — Abriu os braços, fazendo a escalada aparentar um submundo marítimo. — Por isso é tão difícil. A gente só sofre. Os pré-intermediários ficam no sopé do aguaceiro onde é menos agressivo, e tentam subir apenas até a marca vermelha dos pedregulhos.
Por fim, Cassandra apontou, ainda no terreno, as grades da esquerda, onde uma roda de jovens meditava enquanto uma profissional caminhava dentre eles ditando em voz alta.
— Enfim, aqueles são os pré-avançados. Nossa profissional não nos deu muitos detalhes sobre eles, mas é assustador ver no que essa meditação termina. Dá até medo de subir de classe.
— O que acontece?
— Como é seu primeiro dia e você não vai ter tempo nem de reagir pois vai estar mais ocupada recuperando o fôlego, eu te conto. Aparentemente, a profissional dos pré-avançados é uma enerion do tipo Mental. No fim de tudo, eles se contorcem e tremem de horror.
Bruna imitou um calafrio diante da descrição. Diante de si, os alunos já escalavam os córregos, provavelmente adaptados à ferocidade diária. Alguns mais experientes já escalavam os íngremes pedregulhos lá adiante, sendo apenas pontinhos que sumiam e apareciam dentre a cortina branca de água e toda a névoa úmida que a cercava.
— Nós não deveríamos estar junto deles?
Cassandra riu baixo.
— Como é seu literal primeiro dia, a professora me deu ao luxo de te explicar tudo. Mentira, eu tinha era que estar lá também, tô aqui enrolando. Mas ela é gentil, nos deixa nos adaptar primeiro. Cê acredita que, no primeiro dia, ela mudou completamente o ritmo da água só pra nos explicar tudo?
— Ritmo da água? — Uma ideia começou a brotar em sua mente, e floresceu quando Cassandra apontou lá no alto, no topo da última montanha de escalada, uma plataforma cheia de cordas enredadas que circundavam o ambiente como cipós. Lá de cima, de uma espécie de casa, uma silhueta esguia assistia plena todo o festival. Era impossível saber sua aparência.
— Olha ela ali. Estava presente no dia do treino e sabe desse seu braço. Na verdade, todos os que estavam lá sabem. Espera sua presença.
Bruna passou os olhos pela rede na beira da casa, se demorando boquiaberta na grande cachoeira. Cassandra riu alto.
— Relaxa, tem escada.
Rondaram por fora do percurso, seguindo por pontes erguidas entre as árvores e, de fato, muitas escadas para subir a trilha. Ao fim, alcançaram uma cabana de bambu, totalmente suspensa por cipós e parte de sua estrutura presa ao tronco enorme de uma árvore.
As cortinas da porta esguia esvoaçavam com o caos vindo debaixo. Bruna estacionou seus pés bem onde poderia espiar sem problemas através dos panos, ainda posicionada de frente para a espaçosa sacada. O local parecia a morada de alguém, com redes e mesas de chá.
Sua atenção logo voltou-se àquela que, ainda sem notar a presença de ambas, assistia o vigor de sua área de treino. Cassandra bateu o casco duas vezes no chão para chamar sua atenção, abandonando Bruna ali logo depois de uma breve reverência.
A silhueta magricela da rã verde lançou um olhar de canto à raposa, sorrindo seu sorriso eternamente enviesado — já que não tinha dentes.
Era a primeira vez que Bruna via um anfíbio — sequer fazia ideia do que ela fosse, mas lembrava Giovanna em sua aparência estranha, apesar da rã não usar um vestidinho de lençol.
— Olá, Bruna. — Ela iniciou. O som do “r” era inteiramente rebuscado e o “n” saía como o de uma garganta cheia de água. Peculiar como os chiados de uma serpente. Não conseguiu não compará-la e um certo incômodo surgiu com esse pensamento.
— O-olá — respondeu ligeira, ainda tímida. — Me disseram que eu deveria encontrar a senhorita...
— Idália. — Ela completou antes que Bruna pudesse se lembrar, no mesmo tom sério e confortável. A raposa não conseguia afastar as lembranças constantes do orfanato. A cada passo vagaroso que a rã dava, mais a lembrança da serpente latejava. — Idália Hragus, profissional de resistência.
Era alta, pouco menos que dois metros, e tão magra que mais parecia um cavalete vivo. Suas pernas finas e longas eram desproporcionais ao busto pequeno e os braços comuns.
Seus olhos amarronzados de pupilas horizontais a fitavam estreitos, em forma de análise — assim como Giovanna sempre encarou a todos.
Bruna abaixou a cabeça quando ela parou diante de si, atordoada em apenas olhar seu rosto. Sua nuca voltava a doer novamente e sem motivos.
Repentinamente, ela riu, mais lembrando um grilo sufocando do que uma risada.
— Não sinta medo, raposa. Não estou aqui pra arrancar esse gesso. Venha, irei lhe dar um pouco de chá.
Desconcertada, acompanhou-a até o lar atrás da cortina. O pouco que viu era praticamente tudo que o lugar tinha a oferecer. Graças ao som da água, mais lembrava uma casa de praia com todos aqueles móveis feitos de bambu e troncos finos.
— Sente-se. — A raposa obedeceu e ajoelhou-se sobre a almofada diante da mesinha baixa. — Seu braço ainda não está apto a suportar as condições de meu treino, presumo.
— Imagino o que teria acontecido se a enfermeira não houvesse me curado… — comentou baixinho.
— Por ser alguém que cria o fogo, você não deve estar com tanto frio. — A rã retornou à mesa com uma xícara de madeira. Na verdade, Bruna estava com bastante frio, mas ninguém precisava saber dessa parte.
— C-como sabe? — Recebeu a xícara com timidez.
— Todos que estavam no teste te conhecem bem, Bruna. Eu fiz parte da seleção de suas matérias, bobinha. — Ajoelhou-se do outro lado da mesa. — Aliás, você superaquece quando suas emoções florescem. Isso você jamais poderá esconder.
— Er... É um defeito meu. E tenho que começar a tomar cuidado, pois posso levar uma advertência se não me controlar...
— Não se preocupe com isso. Todos têm condições que são incapazes de ocultar ou domar. Cassandra expira fumaça pelas narinas, por exemplo.
— Como você... Como essa aula funciona?
— Ah, me esqueci que você não esteve presente nos primeiros dias. — Ergueu a mão e um cordão de água veio serpenteando pelo ar, e Idália sugou-o como se fosse espaguete. Pela fumaça e a cor do fio, era chá. — Sou uma natural como você. Apesar da simplicidade de nossas habilidades, somos mais raros. E apesar de tal raridade, os domadores da água e da terra são os mais comuns. E os mais poderosos, pois há água e minerais em tudo. Se um hidrocinético treinar arduamente a vida inteira, será capaz de captar a umidade do ar e multiplicá-la, dando a parecer que criou sua própria água.
Bruna sorriu, fascinada com a explicação. Até os nomes que ela usava eram diferentes.
— Eu não pude comparecer às aulas que explicavam os naturais...
— E nunca irá comparecer, se depender daquele arrogante — grunhiu, ao que Bruna ria do fato de que nem todos que odiavam Phaldengart eram necessariamente alunos.
— Me pergunto de onde vem tanta amargura dele. Se não fosse pela Cassandra, eu não teria entendido uma palavra do que ele ensinou hoje.
— Já que estamos aqui e meu treino tem uma longa duração, além de seu braço incapacitado, eu posso lhe explicar algumas coisas. Se quiser.
O sorriso da raposa dizia que sim. Portanto, a rã recomeçou:
— Apesar dos Anormais serem praticamente imprevisíveis, são os naturais os temidos. Têm altas chances de descontrole, pois manipular a natureza não é algo fácil, além do excesso de poder.
— Sinto que Phaldengart jamais nos contaria isso.
— Ninguém contaria. Se, num mundo hipotético em que todos os enerions convivem em sociedade, os naturais soubessem bem disso, iriam traçar uma hierarquia desprezível que menosprezaria outros enerions com mais habilidades escapistas por, em teoria, serem menos ofensivos. Infelizmente, o mundo é assim. Os fortes vencem, os fracos perecem. E como se já não bastasse a discriminação que ainda cai sobre quem somos, existem outras ainda piores dentro de nossa sociedade.
Reparou no olhar cabisbaixo da raposa e logo continuou, no mesmo tom casual de antes.
— Mas eu te conto isso porque confio em você e no seu caráter. Aliás, qualquer um com caráter entenderia que isso não é um nível de superioridade.
— É, eu entendo. Mas uma coisa que tenho dúvidas... — Bebericou o chá. Era extremamente amargo, mas gostava desse sabor. — É se os naturais dobram algo além de apenas fogo, água, terra e ar...
— Uma boa pergunta. Existem dúzias de coisas que os naturais conseguem fazer, como tornar a si mesmos uma nuvem de vapor, controlar metais e outros tipos de matéria, manipular vegetações ou, muito raramente, se comunicar com criaturas ou criar gelo.
— E novamente a palavra criar...
— Eles fazem como os profissionais, só que com uma facilidade natural. Captam o frio do ar e o transformam em gelo. Na minha residência na Sede em Nayrrah cheguei a conhecer um criocinético, foi fascinante entender como seus dons funcionavam.
Idália falava coisas tão interessantes que sentia que mesmo que passasse um mês com ela, não teria tirado todas as suas dúvidas.
— Pra você ter uma ideia, eles são tão raros que só podem coexistir cerca de cinco no mundo. — Sua mão aberta deixou à mostra as peles que uniam seus dedos. — Ou até menos.
— Caramba, de onde tiraram essas probabilidades? Rodaram o mundo e contaram?
— É presumido por invasão de pensamento coletivo, algo que é proibido hoje em dia, me referindo a Sede. Mentais são aterrorizantes, mesmo. Não se sabe muito sobre eles.
— Desculpe, mas o que é essa Sede que você tanto fala?
— A Sede foi a primeira academia de enerions do mundo. Diferente da Lifanos, que começou como um grande centro de faculdades mentais, a Academia Lettice se fundou em cima do estudo místico. Obviamente, fica em Nayrrah.
— E eles têm um vínculo conosco?
— Humph, mínimo. A diretoria é resistente a esse contato por motivos que não sei. Vai ver não querem passar vergonha pedindo ajuda. Ah, e se te perguntarem disso, finja que nunca te falei nada ou te desidrato.
A conversa foi se desenrolando. Bruna sempre ria quando, eventualmente, Idália tocava em um cristal comunicador que funcionava de alto-falante para avisar aos alunos que ainda estava na ativa e não iria poupar esforços para descer a cachoeira pessoalmente e empurrá-los pro treino.
Bruna assistia da janela do bangalô a maioria deles ainda ocupados com a escalada, enquanto uma tempestade assolava a arena de terra batida lá no começo, onde os demais disputavam entre si sob o temporal.
Idália era mesmo poderosa: conseguia manipular o curso das cachoeiras e iniciar uma tempestade controlada sem ao menos estar presente. Deve ter treinado a vida inteira para possuir tamanho controle, ou era simplesmente sortuda. Sentiu vontade de questionar sobre a infância dela, mas ignorou isto por enquanto.
— Você é mesmo surpreendente... — murmurou, ainda observando a tempestade. — Aquela chuvarada praticamente tem vida própria. Será que se você treinasse mais, conseguirá transformar a água em vapor?
Ela riu.
— Não, isso é impossível pra mim. Além de não conseguir controlar a poeira do ar, não sou capaz de fazer a água ferver. Isso é calor. — Ergueu-se, indo para perto para observar ao seu lado. — Talvez um natural que dobre ventos seja capaz de aquecer o ar, mas nunca ouvi falar de nada parecido.
— É, talvez o calor só seja a especialidade dos que o manipulam. Há variações desse tipo de natural? Dos que controlam fogo?
— Por serem raros como os que dobram o vento, é difícil dizer do que os pirocinéticos seriam capazes. Já ouvi falar de uma jovem que conseguia desenvolver magma, mas ressoou mais como história do que boato. Estudei demais sobre a parte que me tocava, desculpe por não ser tão esclarecedora.
— Nesse boato, ela por acaso criava o magma? — Idália notou um lampejo de ira reluzir em seus olhos quando a olhou.
— Bruna, isso é quase impossível até mesmo pra um hidrocinético. É uma suposição científica que usamos para explicar o que não entendemos. Sei por que questiona, e sinto lhe frustrar. Enerions do seu tipo e idade não chegariam nem perto de fazer o que você faz, quem diria mesmo criar. É mil vezes mais difícil captar o calor do que a umidade, você o produz. Já lhe disseram que é uma exceção?
Bruna desviou o olhar, indignada. Aquela palavra ganhou um significado negativo a partir do momento em que percebeu que era a única ali que sofria desse mal.
A única dentre milhares, milhões. Quais as probabilidades de existir alguém com capacidade similar? Idália a fez entender que os enerions naturais já tinham uma raridade bem significativa, não iria engolir o fato de ser ainda mais rara.
Apenas queria levar a vida normal que um enerion deveria levar. Sem troféus, sem aulas de níveis avançados, sem alguém sempre lembrando-a de que era algo maior, mais poderoso, mais importante. Sem ser a tal exceção, que todos exceto ela consideravam.
— Por que não gosta do que a torna especial?
Bruna suspirou, só então reparando que o ar ao redor estava aquecido.
— Eu... Eu não sei. Só não consigo aceitar isso.
— Não sou nenhuma psicóloga, mas sei que algo a impede.
Novamente a raposa suspirou.
— Talvez porque eu sempre fui uma exceção. — Abaixou a cabeça, contendo a tristeza repentina. — No orfanato, eu era a notícia porque fui achada no topo de uma árvore que não era nada pequena. Na minha infância, eu era motivo de atenção por ser diferente fisicamente, por me comportar muito mal. E quando descobri meus dons, me tornei o centro das atenções. A raposa de fogo, que não sentia frio. Pode até parecer um elogio, mas estava mais pra uma afirmação daqueles que tinham medo de mim. Todos sempre me temiam, embora fossem muito bons em fingir. Se não fosse pelo meu pai e uma ou duas pessoas, acho que teria crescido completamente sozinha.
Fingiu não sentir nada quando notou que a rã ainda a olhava.
— … Mas é óbvio que eu consegui ter outros amigos. — Continuou, para amenizar. — Cassandra é um deles.
— E Cassandra é como você. E vocês se conheceram porque foram postas uma contra a outra. Já percebeu isso?
Bruna não soube o que pensar daquela afirmação. De repente, ofendeu-se por Idália alegar que Bruna e Cassandra só se davam bem porque eram enerions, depois se enfureceu com o fato dela dizer que só se conheceram porque foram obrigadas a isso.
Mas, por fim, tornou a se decepcionar quando notou que a real intenção daquela frase não era humilhá-la, e sim fazê-la entender.
Por ter essa personalidade, apenas teria o prazer da amizade se o destino decidisse colocá-la num espaço inescapável com alguém, como ocorreu com Cassandra, como ocorreu com seu pai e as cuidadoras do orfanato, e com todas as pessoas que não pudera evitar conviver. O problema era apenas a própria Bruna.
Tornando a encarar seu campo tempestuoso, assistindo cada aluno lutar com tudo de si, a rã reiniciou:
— Você é diferente, de fato, mas só se sente assim porque esse “diferente” tomou proporções grotescas na sua cabeça. É normal que pessoas comuns nos discriminem. Somos algo que eles não compreendem. As crianças são capazes de sentir certas influências. Os demais órfãos devem ter sentido seu poder oculto, por isso se afastavam. E obviamente, quando você descobriu-se enerion, eles tiveram a certeza de que você não era “segura”. Mas, voltando ao foco, para tais pessoas, somos exceções, e é por ser dada como exceção pelas exceções que você se incomoda com essa descrição. A vida inteira foi diferente, e num lugar em que deveria se sentir normal, foi dada como diferente. Não se incomode em saber que é admirável; sempre seremos estranhos para olhos normais demais. Ou pra nossos próprios olhos.
Um pouco de silêncio e som de cachoeira se estendeu enquanto Bruna digeria as palavras. O gosto amargo do chá a impedia de produzir lágrimas.
— Você foi a única que conseguiu pôr em palavras tudo que eu sinto — disse à rã, quase rindo de nervoso. — Não me diga que é uma Mental...
— Não é nenhuma telepatia. Acima de tudo, estou aqui pra cuidar de você. Pode contar comigo pro que precisar.
A tempestade lá adiante ia se tornando chuva, para logo resumir-se à garoa e, então, deixar a luz do dia esquentar as peles encharcadas dos alunos. Mesmo de longe, Bruna podia ver que Cassandra a encarava arfando, nada menos que indignada. Até conseguiu imaginá-la gritando “Eu aqui sofrendo e você bebendo chá”.
— Eu… Aceito o que disse, só não consigo controlar esse sentimento, Idália. E parece que tenho ganhado ainda mais motivos para sentir mais isso.
— Os seus sentimentos, você não controla. O calor, sim. — Indicou com o olhar todos os friorentos encharcados que pontilhavam a arena lamacenta. — O fato de ser uma exceção não se lamenta, e sim aproveita. Então aproveite que só você é capaz de aquecê-los.
Estar de longe não impedia a rã de se felicitar com a cena de todos formando uma roda em torno da garota de aura quentinha para aproveitar-se de sua boa vontade.
O chá pareceu ter funcionado, Idália esperava que Bruna estivesse tão despreocupada quanto aparentava e que aquelas questões fúteis não a incomodassem mais.
Em pouco menos de vinte minutos, todos já estavam quase secos. Idália admitiu com certo pesar a excepcionalidade da raposa ao evaporar água fria tão rápido com tamanha sutileza — um feito divino, como diria Michelle. Aquela gata era mesmo muito esperta; devia mesmo saber de tudo como a própria dizia.
Havia pensado que o oscilar de sua energia fosse devido ao nervosismo, mas Bruna emanava a aura estranha mesmo quando tranquila. Talvez fosse a isso que a gata se referia. Seu calor não parecia mesmo nada natural.
Fosse qual fosse a condição que a tornava assim, esperava ao menos que Bruna apreciasse seu caminho. Questões como essas não deveriam existir para uma garota tão nova — e tão poderosa.