Asas ao Vento Brasileira

Autor(a): Akarui K.


Volume 1

Capítulo 29: Por ironia, o começo

Parecia estranho que uma garota que não gostava nada de estudar conseguiu entrar na academia. Ou o esforço foi imenso, ou ela usou de alguma estratégia não convencional ou ilícita para passar nos testes.

A segunda opção soava mais verdadeira, já que Cassandra era mais esperta do que dedicada e suas invasões silenciosas sempre assustavam Bruna. 

Como passava o dia todo na escola, a ovelha sempre a visitava durante a madrugada, o momento em que todos deviam estar dormindo e não viriam verificar se a moribunda morreu.

— Certo, aqui está tudo que pintou a lousa de hoje — dizia ela. — Eu perdi uns pedaços porque sou lenta em copiar, mas dá pra entender tudo. 

— Eu dou meu jeito. — Folheou o caderno, passando um rápido olhar por tudo. — Acho que consigo copiar com a mão esquerda, a menos que você precise deste caderno amanhã.

— A única coisa que me preocupo é com aquele cachorrão trevoso. — Apontou a porta, apreensiva. — É seu pai adotivo?

— Sim. Quer dizer, quase. Parece mais um irmão mesmo.

— Como vai fazer pra explicar caso ele te veja copiando um caderno que não é seu?

— Finjo que estou estudando. Ele não vai duvidar, eu sempre fazia isso mesmo. — Cassandra mostrou a língua, zombando os hábitos excessivamente corretos da raposa. — A propósito, você nem começou a me explicar sobre os tipos de enerions. Já está descumprindo sua promessa, faz uma semana que estou esperando.

— Não posso fazer nada se ficar batendo papo é mais interessante — murmurou. — Está bem, então. Existem os naturais, os anormais, os surreais e os escapes...

— Espera, fala devagar, droga! — Exigiu seu próprio caderno e anotou os nomes rapidamente na nova letra horrível. — Explica o primeiro. Devagar.

— Os naturais são como você. Eles dobram elementos da natureza, fogo, terra e tal. — Bruna escrevia na velocidade que podia, improvisando para poupar o garrancho que estava enchendo a página de pequenos desenhos, parecia um caderno do primário. 

— … Há uns tipos mais raros que conseguem controlar um corpo biótico, como fazer plantas se moverem e tal. Mas este tipo de enerion só é capaz de manipular o que já existe. Se ele vivesse num lugar que não tem plantas, não poderia fazer nada. Entendeu porque criar fogo do nada é tão bizarro? Pra especialistas, soa impossível.

— Me parece que eu consigo captar o calor ao redor e multiplicar...

— Isso é algo complexo demais pra algum enerion tão jovem fazer. Talvez você seja uma bela duma exceção mesmo. — A palavra soou amarga como grama mascada pra Bruna.

— Próximo. — Mudou de assunto. — Anormais.

— Estes são os que criam coisas que não existem nem no reino das fadas. Como eu, ou aquele menino dos cristais, ou o gatão de nariz empinado. É tão diversificado que é quase impossível citar exemplos. Me tome como exemplo. Quero um desenho meu aí.

— Os anormais seriam os mais comuns?

— Provável que sim, já que estão por toda parte fazendo beldades.

— Interessante... Não tem muito o que escrever. Fala o próximo.

— Surreais, acho. São os que ultrapassam o que é possível. Como ter uma força enorme, voar sem asas, pular a dezenas de metros, ser mais rápido que o vento, enfim. Coisas que deviam ser normais e que são literalmente surreais. Tem até gente que pode ficar gigantão também, sabia?

— Então você também é surreal. Aquele pulão que deu no campo de batalha chegou a uns cinco metros.

— Aquilo foi um truquezinho meu, quase nunca funciona aquela porcaria. Meio que eu faço a fumaça me jogar pra cima, entende?

— Sim, como…

— Uma explosão de vapor.

 — Eu pensei em um peido. 

Indignada, a ovelha lançou nela a primeira coisa que encontrou, xingando-a:

— Fedida! Sorte a sua que não posso fazer barulho. — Se recompôs, tornando a explicar. — Próximo: escapes. Estes são aqueles que têm táticas de uma fuga ligeira. 

— Então você também é escape — zombou. — Eu nunca sei em que momento você vai aparecer e me matar de susto.

— Aliás, silêncio é uma tática dos escapes. Uns são capazes de não emitir som algum ao caminhar, aliás, outros podem ficar invisíveis ou se camuflar, virar fumaça e sair evaporando para onde o vento levar, e etecetera. Na verdade é um subtipo, coloca uma flechinha aí.

Bruna implorou para que ela continuasse com o restante, mas a lua já estava além do topo. Já era hora de fugir novamente. Antes de se despedir com seu “boa noite” sem graça, a ovelha perguntou:

— Seu braço está melhor?

— Muito. — Moveu-o, imitando uma asa. — Já consigo mover direitinho.

— Então por que ainda está deitada nessa cama? — estalou a língua, dando um sorrisinho. — Vamos dar uma volta.

Bruna se intimidou e recuou.

— N-não, eu não posso.

— Claro que pode. Quem é que vai te impedir? Aliás, nunca mais te vi de pé desde aquele dia.

— Talvez seja porque você sempre vem de noite — ressaltou. — Era meu momento de dormir. E quer saber? Fazia tempo que eu não tinha esse conforto, acho que essa cama me acomodou mais do que esperava.

— Ah. — Ela disse em tom decepcionado. — Bem, deixa pra outro dia. Dorme aí, sua preguiçosa. 

Pulou a janela, ligeira, sem permitir que Bruna lhe dissesse que não teria “outro dia”.



Os poderes daquela curandeira eram mesmo de se surpreender, teria de agradecê-la um dia. Seus músculos voltaram a ser o de sempre, com leves incômodos — a sensação era de que havia acabado de comprá-los. 

As visitas de Cassandra ainda eram frequentes, embora houvesse noites que Bruna dormia esperando e a ovelha não aparecia. Ponderou se ela havia ficado chateada com a recusa, mas não pretendia sair dos trilhos apenas por uma falta de rotina divertida. 

Ficara mais de dez dias em casa, embora o gesso ainda estivesse ali por segurança. De volta ao que deveria ser sua rotina, conseguiu mergulhar metade do corpo na banheira e se limpar com uma mão só. 

— Ahá, aí está ela, cheirosa, bem cuidada, e a-do-rá-vel — zombou Lucas, irritando-a. — Só faltou a gravatinha...

— Cala a boca e amarra pra mim. — Estendeu a tira verde a ele, irada, ao que ele obedeceu. Bruna logo recolheu suas coisas e se dirigia a porta, mas antes que pudesse sair, o lobo chamou-a de novo. — O que foi?

— Com quem você conversa todas as noites?

O coração dela deu um salto que quase foi capaz de estufar a blusa. Sem pensar em desculpa alguma, fechou a cara fingindo incredulidade.

— Tá maluco? Como é que eu ia conversar durante a noite? Só se eu for sonâmbula e não saber...

Ele riu, autorizando sua ida e voltando aos afazeres. Agora Bruna entendia porque Cassandra falava tanto que ele era sinistro. 

O sol estava nascendo quando saiu, então já estava claro e quente quando chegou. O vento que fazia a saia sacudir a deixava desconfortável, sentia que a qualquer momento uma rajada revelaria a cor de sua calcinha ao mundo. 

Viu-se perdida na própria escola e isso assustava mais do que o gesso em seu braço. A mulher da recepção entregou-lhe a chave de seu armário enquanto explicava a ficha de Bruna, feita a partir do teste físico até o momento em que despencara da pedreira.

Por mais que houvesse falhado no último minuto, o fato de não ter sido um acidente a permitiu ser escalada à classe pós-intermediária — acima da intermediária, e abaixo da pré-avançada, mais do que esperava e justa, já que provavelmente todos que conseguiram escalar o paredão estavam ali também. 

Depois, a secretária entregou-lhe sua lista de horários, que não por acaso havia uma miniatura de mapa ali — “ainda bem”. Vasculhando-o, não demorou muito a achar o destino. 

No percurso, reparou que a maioria dos armários estavam com a chave espetada na fechadura, algo que a fez recordar seu antigo ducado cheio de trombadinhas até mesmo em meio a nobreza. “Então é com isso que uma escola de rico realmente se parece.”

Fascinada pelo local, não teve a percepção de quem se aproximava. Cassandra lançou o braço por cima de seus ombros, a impulsionando para frente e quase a fazendo dar de cara com uma coluna.

— Achei que você fosse morrer naquela cama! — gargalhou tão forte que sua fumaça escapou direto em seu rosto. Bruna entrou em pânico e começou a se debater.

— Argh! Eu vou morrer! Estou intoxicada!

A ovelha cruzou os braços diante do teatro, para depois abri-los e pedir um abraço. 

— Qual é — disse Bruna. — Não é como se não tivesse me visto antes.

Observando a ovelha em seu uniforme formal, quase não se parecia com a mesma jovem desleixada que invadia seu quarto todas as noites. Por mais irreal que parecesse, a camisa ainda parecia branca e a saia vermelha ficava ótima, realçando suas formosas coxas. 

Cassandra era realmente bonita, mesmo com aqueles dentes desproporcionais e amarelados, e sem aderir à formalidade do uniforme deixando parte da camisa desabotoada.

— Só te reconheci pelo gesso. — Depois de analisá-la por um tempo, esboçou um de seus sorrisos maléficos. — Você parece uma patricinha toda arrumada desse jeito. Então, estamos nas mesmas turmas? — Enquanto Bruna se olhava de cima a baixo, ela tomou-lhe o mini-mapa, começando a ler seu verso. 

— Maracujá, bolo solado, musgo de pântano... — Mais parecia um cardápio. A raposa espiou se ela lia a mesma lista que leu.

— Do que cê tá falando?

— Ah, é! Esqueci de te dizer que já apelidaram os professores — falou no maior entusiasmo. — Cada um deles tem um lado que todos odeiam ou no mínimo acham estranho, então ninguém perdoa e começam as zombarias... Os únicos que todo mundo tem um certo afeto são o marrento-mitológico, a musgo de pântano e a capa-preta.

Capa-preta?! — vociferou, procurando o nome de Michelle. No entanto, encontrou apenas o sobrenome Brundstein. Não sabia se suspirava de alívio ou dúvida. 

— Até no papel as gêmeas são idênticas. — Cassandra comentou.

— Só irei descobrir quando for o momento da aula, que saco. Vem cá, por acaso musgo de pântano seria a professora de natação?

— Ah, você já sacou a tática. E não era você que odiava água?

— E ainda odeio — reclamou. — Só estava curiosa, afinal, tem algum tipo de natação aí. Ou era pra ter, já que não tenho roupas de banho.

— Ah, eu te empresto um maiô.

Bruna urrou, indignada.

Maiô? Eu esperava que você fosse me recomendar uma troca de honorários ou algo assim! 

— Ah, qual é, já que nós não vamos treinar nossos truques juntas, por que não brincar um pouco na água? — tapeou seu ombro, incentivando-a a andar.

— Espera, como assim não iremos treinar juntas? — tomou o papel de novo. Só então reparou que os números das salas estavam escritos logo ao lado dos nomes dos professores, assim como a lição também. Segundo andar, sala onze, Manipulação.

Um pouco antes isso a deixaria pasma, mas agora, a encheu de decepção. Queria treinar junto da ovelha, descobrir até que ponto os poderes dela poderiam dissolver alguma carcaça.

Tinha se esquecido que não havia pensado nos próprios limites. Sua dominação com as próprias chamas a levou mais adiante do que queria estar.

O pior é que sentia que não deveria estar ali, numa aula de níveis avançados com jovens adultos mais experientes, passando vergonha só por ser a única pirralha de quase catorze anos da sala.

— Ah... Que droga. — a raposa comentou, cabisbaixa. — Queria treinar com você.

— Talvez no meio do ano a dona-morte mude de ideia e te empurre pra irmã.

Quando o sino tocou, eram cerca de nove e meia, o sinal do primeiro intervalo. Compensando as memórias do passado que se esgueiravam pelos cantos, existia uma ovelha zombeteira caminhando logo ao seu lado, que nunca deixava que Bruna se entediasse.

Explorando o ambiente escolar, se deparavam com diversos tipos de grupos, visivelmente com idades diferentes, o que tornava toda a experiência fora do comum para Bruna. 

Ela mesma se sentia um tanto deslocada, mas sabia que não era a única. Até crianças dividiam o espaço, crianças enerions. Dava pra saber por conta dos diálogos que escutavam: 

— Daqui a pouco você leva outra advertência ainda pior. E logo no início do ano!

— Eles não podem fazer isso com a gente. — respondeu o outro amigo, que continuava a brincar com as fitas de luz que produzia. — Estamos aqui pra aprender. Ninguém pode nos segurar.

Diferente do rosto cético e debochado de Bruna, Cassandra parecia inquieta com a afirmação.

— Fala sério. — Bufou. — Eu acho que nunca vou te ver lutar de novo.

— Como assim?

— Não são permitidos dons fora do horário de aula. Só podemos quando alguém autorizar ou se for realmente necessário.

Já esperava aquilo da academia. Diferente deles, não estava nem aí. Não usava suas chamas para mais nada além de acender as lenhas do almoço.

— Parece que é por segurança. — A raposa tentou amenizar — Pra que não aconteça o mesmo que aconteceu naquele campo ou as pessoas normais não fiquem traumatizadas. Você se lembra da bagunça que rolou no teste?

Ela sorriu e indicou a  pequena cicatriz no braço.

— E quem é que não se lembra? Mas, sabe, isso é chato. Não podemos brincar com nossas habilidades nas aulas, então aqui fora seria o único lugar em que poderíamos curtir, entende? Por isso ninguém gosta dessa regra.

O papo a deixava desconcertada. Parecia a única que pensava o contrário. Achava estúpido que não entendessem uma regra — não era como se fossem irracionais a ponto de uma regra parecer uma “coleira”. A sociedade existia por algum motivo, afinal.

Sem nem considerar que sempre invadia sua casa durante a noite, Cassandra já era mais rebelde do que pensava.



A sala em que Andreas dava aula estava mais para uma sala de estar. Não havia carteiras e sim pufes, assim como a carteira na qual o professor deveria organizar suas tarefas era uma almofada gigante cheia de algodão — Veronicca desapareceria caso se sentasse. 

Estava ali apenas como aluna, então costumeiramente optou pelos pufes do chão. A sala sempre estava vazia quando chegavam. Se não fosse pelo persa, se perderia todos os dias — desde o dia em que ela foi parar num pátio de treino estavam levando dessa forma. 

Muitas vezes explicava-lhe um pouco de história, gostava de falar das crenças alheias. Às vezes, ele até julgava, o que era cômico para um professor. No entanto, era um admirador da fé, mesmo que não fosse um homem de muitas crenças. 

— Caramba, existe até uma deusa do som? — Questionou a menina, pasma pelos mesmos motivos que um dia ele já boquiabriu também.

— Ela é muito louvada na maioria das outras nações. Mas aqui em Oliphia praticamente não existe uma religião...

— ... Cada um acredita no que quiser e que se dane quem achar ruim.

— Exato.

Fazia tempo que Andreas não trocava ideias com adolescentes, então adorava suas traduções juvenis. Apesar da aparência, Veronicca não era semelhante em nada com uma criança.

— Mas eles te chamam do quê?

— Tampinha de peruca, boneca de cera, marionete sem corda, dentre outros nomes. — Falava como se citasse uma lista de compras. 

— Quem são?

— Não faço ideia. Pode ser qualquer um. Só ouço cochichos.

— Certo, entendi. Mas você não se importa?

— Não. Estou acostumada com esse tipo de coisa. Palavras equivocadas não me afetam. Só choro pelo que é real.

Ter todos os sentimentos do mundo significava ter toda a sabedoria sobre eles — podia considerá-la uma miniatura de deusa se quisesse.

— Ah, saber ignorar é maravilhoso.

Acidentalmente, Veronicca lembrou-se das memórias de Leonardo. O irmão acabara se tornando bastante ciumento por conta da amizade entre Bruna e Lukas.

Ronica precisou se esforçar para ignorar isso antes que acabasse vendo-o como um monstro. Sequer vivia o dia todo com ele, mas nada mudaria o fato de que ainda era superprotetor. 

Vestir as luvas, usar mangas compridas, proteger-se do sol, evitar o frio, coisas das quais ela já se entediava há um bom tempo. Ter começado a estudar sem a companhia do irmão despertou um senso de liberdade em si. 

Até ponderou, porventura, se a futura companhia de Bruna o faria se esquecer um pouco da irmã…

Isso se já não houvesse esquecido.

Afastou o pensamento iniciando um assunto aleatório:

— Descobri que está incentivando aquele marrento enrugado a levantar da cama.

— Ele levanta por conta própria. Assim como você, está se acostumando mais com essa minha cara feia. Aliás, ele tem um desempenho ótimo em seus “passeios”.

— Desde criança ele faz isso. Mas com o tempo ele foi atrofiando. Acho que, com sua ajuda, ele recuperou o ânimo e voltou a treinar.

— Posso dizer que, às vezes, ele parece um solano.

Certamente o irmão gostaria de tal elogio... mas Leonardo só ouvia o que lhe interessava, provavelmente fingiria surdez. 

Era um tanto orgulhoso, preferia aprender sozinho a precisar de explicações. Com certeza não hesitaria em abandoná-la para seguir seus sonhos.

Desta vez falhou em afastar isso.

— Andreas, com que idade alguém pode começar a trabalhar?

— Por que a pergunta, anjinho? Não me diga que já quer me deixar...

— Claro que não. Só queria saber, mesmo. Aqui tem tantas lojas.

— Depende do emprego. Por exemplo, em mercadinhos, pode-se começar cedo. Agora em trabalhos mais pesados....

— ... Como escrivão?

Um tenso silêncio se instalou quando Andreas entendeu o motivo da questão.

— Não se preocupe com isso. Seu irmão não irá te deixar.

— Não é isso. É que, bem, ele sempre gostou de agir sozinho. Eu não queria ser um fardo, então eu preciso de algo pra me ocupar. Todos precisam de sonhos.

O persa riu baixo, abanando a cabeça.

— Ronica. Ninguém “precisa” de um sonho. Isso é apenas um objetivo, uma escolha, e você pode desviar-se disso como bem entender. Você não sonha com nada, e isso não te impede de comparecer às minhas aulas todos os dias. Não tenha pressa. E quanto ao seu irmão… Bem, não vou mentir e dizer que este dia não irá chegar. Leonardo é mais velho e ambicioso, ele pretende realmente ir para algum lugar que considere seu. Mas isso não é o fim do mundo para você porque vocês são irmãos, independente da distância. Se lembre disso.

A frase a fez sorrir, mais calma. Fazia bastante sentido, embora os ideais do irmão ainda a cutucassem. Quem sabe um dia fosse tão convicta quanto ele. 

Nos momentos em que olhava a raposa de longe, se perguntava o que é que fez Leonardo se prender tanto a ela: se era solidão, atração, ou qualquer outro motivo muito besta. Não entendia muito a paixão, afinal. 

E não entendia por que Léo inventava de relacionar seu sonho com Bruna se afinal não nasceram grudados.

Ao ser lembrada de sua próxima aula, Veronicca soltou um riso irônico ao perceber que era uma das disciplinas que dividiria com enerions.

— Como se já não bastassem os treinos, eles ainda têm que nadar. Mas por que tem aulas de natação aqui, mesmo?

Vontade pra resumir tudo o que os enerions faziam não faltava, mas Cowalsky só dispunha dos dez minutos da troca de aulas da menina pra explicar-lhe pelo menos aquilo. Portanto, pigarreou, iniciando com pressa:

— Porque obviamente existem enerions que controlam a água. Mas não é só por isso. A natação daqui não é como a convencional, é uma aula específica que treina as habilidades sob condições temporais. 

— Ah, então natação é só um nome, mesmo?

— Sim. É uma aula mais duradoura exatamente porque lá também se ensina a nadar. Afinal, guerras podem rolar em mares. Eu preferia que fosse chamada de dilúvio ou resistência.

— Espero que minha classificação não me permita ter tais ensinamentos. Eu não quero ser uma guerreira.

— A classe iniciante é só pra iniciantes, Veronicca — enfatizou. — Seu futuro só deverá ser escolhido ao passar pela intermediária. Até lá, você descobrirá o suficiente do mundo místico para começar a se interessar por inúmeras áreas envolvendo tanto a minha biomagicologia quanto um exército ou mesmo assuntos de regência.

— Até lá, eu terei um objetivo. — murmurou ela, recordando o irmão.

— O que disse?

— O que raios é essa tal de biomagico-sei-lá-o-quê mesmo?

Ele gargalhou.

— Pré-intermediário, Veronicca. Você ainda é iniciante.

Ela se debruçou na mesinha com um olhar pidão, ignorando os primeiros alunos que entravam na sala de Cowalsky.

— Não tenho tempo pra te explicar agora. Vá pra sua aula logo! — Quando a empurrou, ela derreteu em seus braços numa preguiça forjada.

— Ah, eu não quero ter que trocar de roupa! Odeio vestiários. Me faça me atrasar!

Os poucos alunos presentes riram.

— Não me faça te levar até lá. Ande logo, Veronicca!

— Ah, então é a ciência da naturalidade surreal... — Ela, de repente, evidenciava como se houvesse acabado de recordar ou se conhecesse completamente do assunto. — ...Como uma biologia de coisas surreais. Então você seria tipo um médico de enerions…

Surpreso, sua pressa se desfez num sorriso. Andreas sussurrou para ela:

É óbvio! Como acha que eu entenderia seu dom de sentir os sentimentos alheios se não existisse a biomagico-sei-lá-o-quê? — E se despediram com um sorriso.

Cowalsky não esperava tantos olhares fixos como quando voltou à sala, já repleta de alunos em pufes. Antes que pudesse chamar a atenção, um deles teve o ímpeto de perguntar:

— Ela é sua filha?

O persa abaixou o olhar, incomodado. Nisso, outro viu a oportunidade de tentar também:

— Você estuda sobre ela? Ela é tipo uma cobaia?

— Não sou nenhum rato de laboratório. — murmurou ele, brincalhão, tentando disfarçar o incômodo. Nisso, outra garota decidiu interrogá-lo também:

— Então o que ela é sua? Sempre vi os dois chegarem e irem embora juntos...

— Ela é um milagre, isso sim. Uma coisinha complexa e misteriosa que eu gostaria de entender.

— Ela lê mentes? — Outro disse. — Ela não parecia saber o que era biomagicologia.

— E realmente não sabia. — Respondeu automaticamente, já marcando a presença do garoto na lista. — Mas ela não lê mentes. Na verdade, nem sei se é enerion ou não.

De repente, todos estavam fazendo um escarcéu para saber sobre a menina, como se Veronicca fosse realmente uma cobaia.

— Fiquem quietos! — O persa exigiu. — Eu tenho uma aula pra apresentar e vocês tem que assisti-la se não quiserem que eu os jogue para Nicholas.

— Ah, professor, pelo menos diz o que ela é pra você! 

— Honestamente, eu queria que fosse mesmo minha filha. — respondeu, apenas. — Iniciemos.

Foi suficiente para pararem de lhe incomodar com um assunto tão pesado.

 



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