Volume 1
Capítulo 21: O Mensageiro
De volta ao interior da escola, Leonardo acalmou-se. Soltou a pressão dos pulmões que fazia seu peito ribombar e respirou fundo.
Caminhando mais devagar com um discreto sorriso no rosto, suas mãos estavam inquietas por trás das costas. Mesmo que o empurrassem ou nele esbarrassem, não tinha motivo pra sentir raiva; estava preenchido de satisfação, como raramente acontecia.
“Eu consegui.”
Acumulou coragem o ano inteiro para que fosse perfeito. Bastou manter esperanças de que iria vê-la novamente e foi menos difícil do que esperava. Tinha quase certeza de que a encontraria de novo e continuaria o trabalho.
Mesmo assim, sua felicidade era nada mais que breve. Não sabia em quanto tempo isso poderia acontecer.
O que era bom aos poucos se arrastava para baixo, tornando negativo tudo que havia cultivado. Passar uma última vez por toda aquela multidão, olhar os armários por trás dos enfeites e analisar bem cada entalhe daquelas paredes o lembrou o ano inteiro que passou ali.
O lugar estava quente devido à quantidade de pessoas, mas Léo sentia frio, não só pelas grossas camadas de pedra nem por sua pele, mas sim porque já não a sentia mais ali.
Havia muitas chances de nunca se verem novamente. Tentou parar de pensar, mas o sentimento superou sua força de vontade. Bruna se foi, talvez pra sempre.
Não adiantou de nada roubar aquele beijo, pois não existiam muitas chances de se desculpar por ele. Ela não iria voltar atrás.
Inesperadamente, vislumbrou Lukas no fim do corredor. Havia realmente muitas pessoas e uma distância enorme de onde o viu, mas teve certeza de que mesmo com tantos obstáculos ele o encarava fixamente com olhos sombrios.
Seu semblante era odioso, muito diferente da criatura desolada de dias anteriores, o que piorava o significado daquilo. Ao piscar os olhos, no entanto, a figura desapareceu.
Um delírio? Sequer tinha o costume de pensar nele, inclusive evitava isso. E, mesmo que fosse apenas fruto de sua imaginação, por que raios ele estaria irritado?
Abanou a cabeça, bufando. Não estava vendo coisa nenhuma. Estava feliz, isso sim. Ela não desapareceu, a encontraria aonde quer que fosse. E a memória distorcida de Lukas não o faria esquecer-se dessa obrigação.
A ponto de afastar a dolorosa lembrança da despedida, procurou o silêncio para acalmar-se melhor. No banheiro, deixava a água correr entre seus dedos, focando nos entalhes das próprias mãos magras em busca de relaxamento.
Olhou a si mesmo no espelho enferrujado. O tom lilás da íris o fez sorrir — há quanto tempo estavam assim? “Será que ela reparou neles?”
Soltou um risinho e encheu as mãos de água, lavando o rosto úmido de suor frio. Tinha certeza de que ela percebeu a estranha vicissitude de seus olhos, mesmo que ela nunca houvesse perguntado nada a respeito.
De todo modo, não hesitaria em explicar quando a reencontrasse. Tinha certeza de que conseguiria, pois mesmo que muito diferente, ainda era como ela. E tinham um sonho em comum: ele, escrivão, e ela, soldado.
Seria a combinação perfeita: adoraria escrever sobre o sucesso da missão na qual ela se encontrava enquanto a assistia afiar sua arma diante da fogueira do acampamento.
De certo que, se seus planos realmente se realizassem, como escrivão, nunca a veria lutar. Mas só de estar perto dela já seria um imenso prazer...
— Além de sonhador, paga de estrategista.
Leonardo ergueu subitamente o rosto da pia, encarando-se no espelho. Viu a própria íris empalidecerem ao notar a sombra de Lukas logo atrás de si, em que somente seus olhos esmeralda brilhavam no canto em que a luz não tocava.
Por algum motivo, os cristais-da-aurora estavam fracos e sem intensidade alguma. Podia identificar que ele tinha as mãos nos bolsos, que junto do semblante sério, o tornavam alguém de intenções duvidosas.
Mas não deixaria que o visse sentir medo, ele não lhe tiraria a dignidade. Mais uma vez, em seu próprio reflexo, viu seus olhos mudarem de cor ao retrucar:
— E você, além de egocêntrico, é medroso.
— Nada do que sinto ou deixo de sentir é da sua conta.
Leonardo bufou, revirando os olhos sem disfarçar o desprezo.
— Não ouse dizer que não tentei. Agora já não me interessa mais.
Lukas ergueu momentaneamente uma das sobrancelhas, transferindo as mãos para uma cruzada de braços.
— Claro. Você só se interessa no que é bom pra você. Como um posto à par das expedições.
Leonardo cerrou os punhos sobre o mármore da pia.
— Sim. Exatamente. Eu me interesso. — Ousou encará-lo pelo canto do olho. — Diferente de certas pessoas.
Lukas permaneceu impassível, também calado. Não se dignaria a responder aquele insulto. Até que o silêncio foi quebrado pelo riso abafado que ecoou do gato:
— Honestamente, pensei que não te veria nunca mais. Posso dizer que você chegou tarde. — Voltou-se a ele com um sorriso irônico. — Infelizmente não tarde o suficiente pra me poupar de vê-lo. Pra quê veio aqui? Pedir desculpas por ter sido medroso ou só pra me irritar mais?
— Já paguei o que devia e a quem devia. Já você, não digo o mesmo...
Leonardo se enfureceu. Conseguiu conter um pouco da ira, mas não pôde evitar que sua testa franzisse suavemente.
— Quem fugiu foi você, não eu. E se me afastei, foi pela sua possessão egoísta de esperar que só ela sentisse algo. — Havia uma gota de descontrole em sua voz.
— Você se afastou no momento em que sabia que ela mais precisava e sequer se desculpou antes de fingir que nada aconteceu. Até a hipocrisia tem limites, sabia?
O impulso do avanço de Leonardo poderia ter destruído a pia se ela não fosse feita de rocha.
— Foi culpa sua. — o gato rosnou no tom mais grave que sua voz podia alcançar. — Foi por culpa sua que me afastei. E por culpa sua que ela se isolou também.
— Isso não justifica que você fugiu. Se quer saber, é tão ruim quanto eu, você a abandonou. Você não se envergonha mesmo.
Lukas não tinha direito algum de culpá-lo por sua hipocrisia. Apesar de ser impossível vencer suas palavras, ainda tinha motivos de sobra para ofendê-lo.
— Não preciso me arrepender, não tenho porquê pra isso. Tenho um futuro à minha espera e nele há muito mais do que você não será capaz de ter.
Ao ver que, mesmo que imperceptivelmente, a testa dele se franziu, Leonardo descobriu que cutucou a ferida oculta. O ponto fraco; aquele que precisava para acabar de vez com aquele estorvo.
— Tudo porque eu sou um estrategista egoísta, como você mesmo disse. E só graças a isso consegui dar meu primeiro passo hoje. — Deu um passo lento, encarando-o focinho a focinho com um sorriso enviesado. — Enquanto você fica aí parado, porque é cuzão demais pra tentar pensar em mudar a si mesmo ou o próprio futuro.
O silêncio que se fez durou bastante tempo. Quase não ouvia-se o que acontecia do lado de fora, como se estivessem em uma bolha que abafava os sons externos. E havia pessoas demais na festa para que, durante tanto tempo, nenhum ousasse entrar no toalete.
Eram acontecimentos estranhos e sem explicação, como a luz fraca das lâmpadas, que tornava todo o ambiente similar à noite que reinava lá fora.
Diante da tensão, inesperadamente Lukas reagiu com um sorriso calmo, quase tranquilo, como se não tivesse acabado de sofrer qualquer impacto daquela frase.
— Como suspeitava, você tem poucas qualidades honráveis. Pretensão não é uma delas. — Lukas desviou-se dele, indo até o espelho. Leonardo compreendeu como deboche o jeito que ele ajeitava a gola da camisa. — Nem tudo vai agir de acordo com o que quer, é isso que torna a vida impiedosa. Não vá achando que esses defeitos são qualidades que explicam sua sorte, pois é sobre eles que seu azar gira em torno.
Os cristais-da-aurora do teto foram voltando ao seu brilho natural, revelando o que ele escondia para sustentar toda a sua pose. A flor que estava enfeitando o cabelo de Bruna estava bem ali, emoldurando o braço daquele perfeito idiota.
O choque fez o ar escapulir dos pulmões como se levasse um golpe. Ela entregou de bandeja o que Leonardo precisaria de mil anos de esforço para conseguir.
Todas as esperanças que nutriu para crer que tudo pudesse dar certo um dia desceram com a água da pia. Rezou para que fosse mentira. “Só podia ser mentira.”
— Se conhecesse o significado de suas próprias palavras, não as usaria. E se apenas se lembrasse com clareza do que almeja, não se permitiria ter tais defeitos. Sugiro que se lembre: quem caça no ar, não pega nada.
Aquilo explicava o sorriso, a calmaria. Ele sempre esteve com aquela carta na manga, mesmo antes da flor estar ali. Bruna sempre o considerou mais que ele. Sempre dedicou a maioria da atenção a ele, quase todas as suas palavras voltadas a ele.
Como nunca reparou antes? Sentiu-se miserável. Tolo. Presunçoso. Envergonhado. As variáveis obscuras de tudo que já fora um dia: bobo, sonhador e tímido. O lado negro se manifestou. E piorou quando Lukas passou porta afora.
Doíam como facas, mas não dava importância aos cacos de vidro que perfuravam seus dedos. Enxergava seu rosto enfurecido dentre as incontáveis rachaduras do espelho destruído e, de certa maneira, seu semblante distorcido ali o agradava.
Obviamente, ferir a si mesmo não era a opção mais sensata a recorrer, mas a raiva surgiu como a lava de um vulcão recém desperto e somente a dor física ofuscaria.
— A que ponto chegou.
Leonardo focou a visão — sua raiva o deixara literalmente cego, tanto que não havia reparado que havia mais alguém no ambiente.
Logo atrás de si, o dono daquela voz suave o observava com o olhar terno e compassivo, julgando em silêncio as atitudes do felino desde que aquela discussão começara. Ou não.
Apesar da imagem sombria e desconhecida do ser lhe assustar, sua ira se impôs diante de qualquer demonstração de medo.
O jovem elfo continuava a fitá-lo através dos cacos de espelho que ainda não despencaram. Possivelmente buscava palavras do dialeto mais adequado para com a bomba-relógio diante de si.
— A que ponto chegou, Leonardo? — repetiu o jovem, obrigando o gato a desviar o olhar do espelho, submisso pelo pavor recém surgido. Certo sarcasmo enfeitava as sardas nas bochechas do garoto.
— Antes, você acreditava que ninguém além dela seria digno de seus sentimentos. Por que sua tristeza se deve por ele?
— Não é tristeza. É ódio.
— Então por que seus olhos estão escuros?
Leonardo tornou a olhar a si mesmo no espelho. Junto dos seus olhos agora negros como a noite, viu o jovem sorrir. Cerrou os punhos, e sua íris foram se avermelhando novamente, ganhando o mesmo tom da mão ensanguentada.
— Admita. Foi como uma faca, não foi? — continuou o jovem. — Dói mais que esses cacos cravados na pele. E você nunca pensou que iria sentir tanto outra vez.
Repentinamente, a imagem de seu pai passou num vislumbre. Olhar a si mesmo no espelho, os olhos da cor do próprio sangue e úmidos por lágrimas que insistiam em se formar o lembrava exatamente aquilo.
Lágrimas de ódio? Soava falso. Só ele sabia o que seria necessário para causá-las; e isso apenas aparentava ódio.
Sentiu terríveis calafrios lhe gelarem a coluna. Aquela entidade logo atrás de si o obrigou a se lembrar, a julgar pela testa suavemente franzida e o sorriso irônico que ainda entortava o lábio do elfo.
Só então Leonardo reparou que o jovem tinha olhos tão verdes quanto os de Lukas.
— Vai se deixar cair depois de ter voado tão alto?
Sentiu os músculos das costas se enrijecerem, implorando para se soltar.
— Não.
O garoto acenou a cabeça enquanto ria baixo.
— Juro que achei que fosse afirmar. — Inclinou a cabeça, forjando um espanto. — Você parecia tão fraco agora há pouco...
— Não — esclareceu o felino. Seu coração saltou quando, de repente, o jovem fechou a cara e sua voz se tornou um ribombar metálico.
— E por que não?
A resposta era óbvia. Ainda era o garoto ideal, o menino doce que atraiu o olhar dela; o menino adorável e inocente, com ar de criança, amável e brincalhão, como sempre foi quando estava com ela.
Ainda era o mesmo Leonardo de quando a conheceu e não iria se deixar cair por quem empurrou a escada de propósito, pois tinha lá seus métodos para subir aos céus.
Conteve o sorriso, esmagado com a pressão negativa do jovem atrás de si, que ainda esperava uma resposta convincente.
Certamente a entidade sabia de tudo que se passava em sua mente, e mesmo assim preferia ouvir tudo de sua boca, como um jogo mórbido de tortura emocional. Decerto não havia muito motivo para recusa.
— Ansiar a vitória dá forças. E lutar por ela é o que a garante.
Para evitar mais uma vez o sorriso audacioso do jovem, seu olhar recaiu sobre as formas de seus dedos carimbadas em vermelho, no centro daquela explosão de vidro.
O sangue que restava no espelho coloria as rachaduras aos poucos, escorrendo lentamente sobre o granito rosado da pia e tingindo tudo de escarlate.
— Você não desiste — murmurou o garoto, abanando a cabeça. — Sabe que esta luta está perdida, mas se recusa a se render. O que vai ganhar com isto além de mais sofrimento?
Leonardo lavava o ferimento aos poucos, arrancando cada fragmento que podia alcançar com as unhas.
Certamente, quando aquele maldito encanto se desfizesse e alguém repentinamente invadisse o banheiro, se horrorizaria com a visão do espelho estilhaçado e a mão dilacerada do felino de olhos vermelhos.
Mas, por ora, deveria aproveitar que ainda tinha água e solidão à disposição, apesar da entidade tagarela ali.
— ... No entanto, sua persistência me agrada. Apesar de ser uma ideia equivocada, você continua acreditando que seria capaz de conquistar o amor verdadeiro de sua amada, mesmo tendo um lado obscuro tão terrível como este. — Ergueu a mão, indicando a vidraça trincada de ponta a ponta. — Se ela descobrisse seus planos, eu não iria querer estar na sua pele...
Antes que Leonardo pudesse pensar em um xingamento, os estilhaços do espelho começaram a se mover.
As rachaduras iam se desfazendo, como se apagadas à mão, enquanto os cacos flutuavam e voltavam a encaixar em seus respectivos lugares — um deles passou raspando em sua jugular: uma clara ameaça do poder da entidade. O sangue escorrido que sujou as paredes simplesmente retornava, como se regressasse no tempo.
Por um momento, temeu a ideia de rever a flor no punho de Lukas, mas a reconstrução se limitou ao espelho. Mesmo que a entidade ainda estivesse ali com seus próprios olhos verdes prontos a perfurá-lo.
E antes que pudesse questionar, espantou-se ao reparar que sua mão também estava intacta, regenerada até a última cutícula, sem quaisquer marcas da agressão.
— Mas não pense que só porque não se deve, não se pode.
Por instinto, sentiu vontade de se virar para ele, para saber se era mesmo real. Lentamente se voltou para o flanco e, de modo estranho, o banheiro vazio não lhe surpreendeu. Já esperava aquilo.
Olhou novamente o espelho e o adolescente elfo estava lá, ainda o olhando com o mesmo ar sorridente do início da conversa. Repetiu a ação algumas vezes, contemplando com fascínio aquela existência.
Maligno, minimamente assustador. Só então percebeu que estava lidando com algo fora de seu alcance. Obviamente era mil vezes mais fraco, um mero mortal deformado, um mero adolescente inconsolável e egoísta.
Portanto, abaixou a cabeça e contemplou as próprias mãos, depois a torneira ainda aberta e o redemoinho de água que descia pelo ralo. Como tudo começou.
— O que você é? — perguntou Léo, sabendo que esse era o único questionamento ao qual tinha total direito. Previsivelmente, o rapaz começou a rir baixo.
— Deveria fazer essa pergunta a si mesmo, Mensageiro.
Naturalmente, Leonardo voltou a reparar nos sons da festa que ainda acontecia lá fora. Como estava tão concentrado nos próprios pensamentos, a surdez recém desaparecida foi como um estouro violento em seus ouvidos.
Amigos se divertiam, curtindo a festa que ele também deveria aproveitar. Mas aquele não era o seu lugar — sequer tinha mais motivos para estar ali.
Fechou os olhos e suspirou, sua missão já foi cumprida. E quando olhou a si mesmo no espelho, já com seus olhos naturalmente castanho-esverdeados, também não se surpreendeu ao ver apenas o banheiro vazio atrás de si. Por isso sorriu — para si mesmo e mais ninguém.
— Eu sou o que almejo ser. E nada menos que isso.