Asas ao Vento Brasileira

Autor(a): Akarui K.


Volume 1

Capítulo 20: Sentimento

Amigos? Não iria lembrar-se dele desta maneira, pelo menos não mais. 

O único movimento que conseguiu fazer antes dele desaparecer na multidão foi abaixar o olhar, para depois mirar na direção da torre do relógio, que marcava sua ida. 

Provavelmente Lucas já estivesse lá fora e Bruna se aliviou por terem tido a ideia de permanecer no pátio interno; ele jamais poderia ver aquilo. Na verdade, ninguém podia. 

Ao menos, ser esquecida por alheios oferecia alguma vantagem nisso tudo. Em choque, voltou a andar para o portão, devagar como se o chão pudesse vacilar ou como se muitos olhos pudessem furá-la em julgamento. 

“Isso não aconteceu.” Fechou os olhos, respirando com calma e repetindo a frase na cabeça na intenção de se convencer de que era verdade, até que em algum momento, outra pergunta se pôs a frente com agressividade:

“Como ele ousou?”

Há quanto tempo estaria escondendo aquilo? Será que foi por isso que se afastara, porque estava apaixonado? Muitas coisas faziam sentido agora, juntamente com as atitudes irritantes com Lukas e certas palavras ditas. 

Franziu o cenho. Seria melhor se ele houvesse apenas dito, mesmo que no meio do ano, mesmo que quando se conheceram, mesmo duas semanas antes daquele maldito baile. Exceto no maldito baile

Agora só iria sofrer mais por sua ida sabendo que ele sentiria tanto quanto ou até mais do que ela, que sequer teve chance de processar a coisa toda. 

Não sabia o que sentia, quanto mais se deveria sentir. Brevemente, sentiu como se ele fosse um perfeito estranho. Pouco importaria aquilo tudo, já que nunca mais o veria e isso era inevitável. Pouco importaria se ele realmente se tornasse um estranho.

“Pouco importa, mesmo.” Um delírio de cansaço fez essa frase rebater nas paredes de seu crânio. 

Ao passar do portão, olhou para os lados na procura do carro preto com belas asas douradas no para-choque. Lembrou-se que não fazia ideia se Lucas era ou não pontual, pois nunca reparava quando ele saía. Desamparada, bufou de desaprovação.

No entanto, ao sentir uma mão pousar sobre seu ombro, um suspiro de alívio escapou; só podia ser ele. Não havia mais ninguém pra conversar naquela festa, tampouco alguém que se lembrasse do demônio que queima coisas. Muito menos alguém que a tratasse como a sutileza daquele toque.

Um cheiro familiar encheu o ambiente, mas não era o de seu Lucas. Era de chuva, mato, madeira: uma floresta úmida. A sua floresta.

— Yo.

Era ele, mesmo. Mesmo assim, não teve forças para sorrir ao vê-lo. O beijo de Leonardo só a fez evidenciar que aquele era mesmo o último dia naquele lugar.

— Ainda tenho tempo?

Bruna abaixou o olhar, desejando muito responder que sim. Ao olhar a torre do relógio, que marcava cinco minutos além de seu horário, esboçou um fraco sorriso esperançoso a ele.

— Por que não teria?

Sem perceber, estava voltando pro pátio, acompanhando-o. Em vez de seguir pelo meio, estavam andando ao pé do muro, numa área mais sombreada que fugia da barulheira de tantas vozes. 

Foi então que ele tomou coragem, com uma calma exacerbada que denunciava que ele treinou muito para dizer:

— Mais uma vez, me desculpe.

— Não precisa pedir de novo. Eu entendo você.

— E eu não entendo por que ainda me pesa. Eu não fui certo com você.

Bruna sorriu diante da empatia dele, que agora parecia mil vezes mais acolhedora que qualquer coisa que Leonardo pudesse dizer.

— Não esperava que fosse vir. — Mudou de assunto.

— Admito que também não. Mas aí me lembrei de você. Eu odeio festas, mas uma grande parte de mim queria te ver de novo.

— Eu não sei por que vim — admitiu seu princípio de arrependimento. — Eu meio que já sabia que seria assim.

— Assim como?

— É a última vez, não é? A gente não planejou nada disso. Nada foi conversado. Consigo imaginar como se sente…

— Honestamente, devastado. — Mesmo dizendo aquilo, sorria enviesado. — Mas feliz porque consigo te ver agora.

Seus olhos esquentaram involuntariamente, ao que se umedeceram. Não, não devia começar assim. Ele estava ali. Deveria aproveitar enquanto ainda eram sete horas.

— E depois?

— Se deus quiser, o mesmo que você. Saudade. A menos que você não deseje me ter em lembranças. Aí eu vou chorar todo dia.

— Não queria que fosse assim. Você se afastou tão rápido em tão pouco tempo... Quase não tive tempo de reagir. E agora não sei mais como te tratar, nem sei o que devo sentir. — lembrou-se de Leonardo e abanou a cabeça, afastando-se daquilo. — Ah, minha cabeça tá uma bagunça.

— Como eu já disse, não me afastei porque não te considero. Era o contrário. Eu nunca suportaria ter que te dizer adeus, então... Tentei fugir disso. Mas agora dá pra ver que não adiantou nada.

— E adianta alguma coisa estar aqui só agora? — Ela incitou, desejando que também pudesse ter dito algo assim a Leonardo. 

Se Lukas fosse apenas um por cento parecido com ela, nunca precisaria de nenhum adeus. E, como sempre, preferia fugir, assim como estava tentando adiar o inevitável naquele momento.

— O destino quis assim. — Ela continuou. — Eu tenho... Uma meta a cumprir. E há muitos sacrifícios pelo caminho... Como este.

— O que pretende daqui até sua meta? — Ele mudou de assunto.

— Irei pra onde eu seja bem-vinda. E assim continuarei até que tenha idade pra encarar... Sei lá, um quartel, quem sabe. Espadas e armaduras.. — Seu tom era triste demais para quem antes amaria cada uma daquelas palavras. — Quem sabe, daqui até lá, eu pudesse te visitar. Mas não sei como sua família reagiria, se eu moraria longe e...

Olhou adiante: a torre marcava sete e quarenta.

— ... Bem, é um pouco tarde pra pensar nessas coisas. Eu não queria, mas eu preciso ir.

— Você é importante demais pra eu deixar que se vá.

— Lukas... — Ela tentou pará-lo, segurando o choro com tudo que podia.

Podia deduzir o que ele ia dizer. Seria maravilhoso ouvir aquilo se não estivesse tão confusa com o feito de Leonardo. Não achava que iria sentir tanto medo do que estava para ouvir:

— ... Eu amo você, droga. — O rosto de Bruna caiu como se ele a ferisse gravemente. Seus cabelos cobrindo o rosto que sempre esteve acostumado a ver feliz era a cena mais dolorosa de sua vida. 

Por um momento, Bruna se perguntou se teria mesmo sido melhor se Leonardo tivesse apenas dito algo como aquilo. Suspeitou que sim, porque o que doía mais era que sentia o mesmo por Lukas. Doía porque vinha dele.

— … E me perdoa por isso. Agora só posso prometer que nunca me esquecerei de você. Porque você foi minha salvação.

Ele não precisava prometer nada. Sempre soube. Desde que viu um brilho estranho nascer nos olhos dele quando o conheceu, desde que viu seu sorriso resplandecer toda vez que a via e em todos os dias que passavam juntos. 

O pavimento escurecia quando as lágrimas o atingiam. Não tinha calor para evaporá-las, a tristeza a deixava fria. Passou as costas da mão sobre os olhos, em busca de poupar Lukas de ver uma cena tão desgastante. 

Foi surpreendida quando ele suavemente ergueu seu queixo, a obrigando a olhá-lo para ler seus lábios dizerem:

— Não desperdice a beleza do seu rosto com lágrimas. Nunca.

Não esperava que qualquer coisa fosse fazê-la sorrir naquele dia, mas aquilo fez. Bruna desviou o rosto sem conseguir conter os músculos que agora faziam suas bochechas fumegarem. 

Percebeu o fascínio dele e sentiu-se feliz em lembrar que nunca precisou explicar que aquilo sempre acontecia, pois nunca havia motivos pra chorar quando estavam próximos. 

— E-eu... — Tentou reiniciar, mas sua voz era um fio, tomada por uma intensa fraqueza. As palavras não saíam. Não conseguia dizer nada e isso a fazia querer soluçar. 

Toda a confusão estava voltando e já começava a se sentir meio tonta. Por instinto, espiou a torre: sua fantasia já tinha hora pra acabar e tinha de ser exatamente agora.

— Me desculpe, Lukas. — Seu corpo apenas permitiu dizer isso. — Já chega de adiar o inevitável. Eu não posso mais ficar.

E ele finalmente abaixou o olhar, deixando o sorriso desaparecer.

— Sim. Já era hora de dizer adeus. É melhor que vá agora. 

Sem conseguir demonstrar simpatia, tornou a andar de volta pro portão, evitando pensar em tudo que podia fazê-la voltar. Mas seus passos, pouco depois de começarem, cessaram quando sentiu-o segurar sua mão.

— Esqueci de dizer que está linda hoje. Sempre foi, na verdade. Mesmo com esse cabelo desgrenhado que nem palha.

Era tão bom sentir suas mãos juntas. Era tão... natural. Como um abraço de pai e filho, como as brincadeiras que costumavam fazer, como se estivessem unidos desde sempre, destinados a estarem tocando os dedos. 

Bruna olhou-o uma última vez, guardando bem aquele semblante. Novamente surpreendida, desta vez por conta das inusitadas cócegas, um risinho escapou ao sentir as raízes se soltarem de seu pescoço e percorrerem seu braço, passando por cada entalhe de suas mãos juntas até repousarem no antebraço dele. 

Lukas ficava engraçado quando se desesperava.

— Um elo. — Bruna disse, como se lembrava. — Não ouse se esquecer de mim. 

Então, sua mão deslizou lentamente até soltar, conforme seus passos a puxavam para longe. Como fizera com seu pai, como alguma coisa mandava e, por acaso, era o certo. Mesmo que parecesse errado. 

Enxugou o que restava de umidade em seus olhos e transpareceu impassível quando deu seu primeiro passo na rua, onde já podia ver-se um carro preto com adornos dourados estacionado pouco à frente. Lucas — o tutor — deu um discreto sorriso ao vê-la sem a flor. 

Quanto ao outro jovem, finalmente se rendeu e deixou suas lágrimas escorrerem em liberdade, sentindo delicadamente as pétalas daquela flor que estivera nos cabelos dela, ao que desaparecia no canto mais escuro do pátio.



Comentários