Asas ao Vento Brasileira

Autor(a): Akarui K.


Volume 1

Capítulo 18: Elos

Veronicca, que não era mesmo um gato nada normal, adorava um bom banho. Aliviava o incômodo de sua condição, pelo menos por um tempo.

Já ouviu de curandeiros que a água podia ser um remédio natural, apesar de ser apenas algo natural. Quente, aliviava tensões; fria, estancava ferimentos. Circulavam boatos de que podia até mesmo anular condições dermatológicas. 

Lembrou-se de sua mãe imersa em uma banheira de água fria e, no dia seguinte, em água quente, depois fria, depois quente, num ciclo interminável. 

Já chegou a pensar que fosse como ela, mas era óbvio que não. Porque, ao contrário de Veronicca, sua mãe precisava daquilo. 

Ignorando memórias tão duras, se distraía brincando com as próprias madeixas, fazendo-as dançar na água como sereias. De fato, elas não existiam, mas inocentemente se permitia crer, dado que estavam presentes em muitos de seus sonhos, por mais bisonhos que fossem.

— Espero que essa hora que passou aí dentro não tenha sido brincadeira!

Veronicca se ergueu da banheira com certa relutância. Torceu seus longos cabelos enquanto sacudia o próprio corpo na intenção de expulsar a água. Não iria funcionar de qualquer maneira; não havia como sacudir apenas pele lisa.

—  Já estou saindo.

Seu banho podia demorar horas, mas pelo menos era ligeira em outras coisas. Em passadas rápidas, passou correndo pro quarto com a toalha sobre os ombros, já que era tão pequena que não necessitava se enrolar casualmente.

Ao que terminava de pentear os cabelos, se dirigiu para fora do quarto em busca de certo frescor depois do longo banho que deixou seus dedos enrugados.

O irmão permanecia caído no sofá como se houvesse desmaiado. Respirando fundo e irada com a exigência dele de minutos antes, Veronicca iniciou:

— O que há com você, hein?

— Nada vai bem. Eu prefiro não te preocupar com tudo que penso. Afinal, você ia ficar me mandando tomar uma atitude, fazer isso, fazer aquilo, deixar o ciúme de lado e por aí vai.

Diante da completa certeza dele, ela apenas riu.

— É óbvio que mandaria. Você é um medroso. — Se aconchegando perto, permitiu-se um sutil toque em suas costas na tentativa de amenizar tamanho drama. — Me conta o que aconteceu.

Naquela posição vulnerável, era fácil dar-lhe um tapa bem no meio da nuca, mas agora não era o momento. Leonardo iniciou em tom lastimável:

— Não sei nem o que devo e não devo pensar, quanto mais dizer. Não é algo que eu consiga escolher. Estou chateado com tudo.

Decepcionada, a irmã encostou a cabeça na parede, bufando para o ar.

— Vocês pararam de se falar. Ah, logo quando estavam tão próximos...

Leonardo ergueu os olhos de súbito, intrigado com a conclusão da irmã.

— Veronicca. Sei que consegue me tocar sem luvas, mas... Você tem passado muito tempo na água. Suas mãos estão pinicando.

— Sinto isso toda hora. Por isso fico de molho na banheira. Sabe que é o único jeito de passar essa chatice.

— Mas você nunca passou tanto tempo. Não mais que uma hora. No que esteve pensando ultimamente?

Ela demonstrou cansaço ao fechar os olhos escurecidos por olheiras.

— Estou instável de novo. 

— O que está acontecendo? — o irmão questionou. — É algo que não posso saber?

Depois de um longo suspiro, a jovem revelou, em palavras lentas:

— Estou com medo, Léo, porque só tenho piorado. A água ameniza bastante essa coceira, mas o efeito fora dela é muito maior. E eu não preciso estar triste pra que possa piorar. 

Afastou a mão do lombo dele para encarar o próprio palmo, este sutilmente azulado.

— … Ontem, precisei segurar o braço do “pai” pra atravessar a rua, mas a mão dele acabou triscando no meu pulso. Ele reclamou da costura da luva, disse que era toda espinhenta e perguntou se não me incomodava. Não era a costura, Leonardo. Ele sentiu minha pele. Ele a sentiu faiscar e... — Sua voz ia morrendo. — … Consegue entender?

Leonardo buscou sua mão e a segurou. Sim, incomodava, como se leves espinhos raspassem seu palmo, como se faiscasse de fato, mas não tanto como ela contou. Podia ser derivado de seus sentimentos, mas realmente havia uma diferença maior do que já sentira.

— E do que você tem medo? — Ele murmurou, ainda segurando sua mãozinha. 

— De um dia ser como a mamãe.

Aquilo o silenciou por um tempo, ao que Veronicca sentiu o impacto daquela simples frase. Então, ela abanou a cabeça, tentando ignorar as próprias palavras e amenizar:

— Não sei por quanto tempo mais conseguirei esconder. Nunca esteve tão... Explícito. E tenho medo de como eles possam reagir.

Ele sorriu, apertando sua mão e a levando ao rosto, ignorando o incômodo que elas causavam.

— É inevitável, um dia vai acontecer. — disse ele. — E se realmente acontecer, saiba que vai dar tudo certo. Eu estou com você, independente do que acontecer.

Uma lágrima que ele não vira pingou em seu rosto.

— Ei, não chora...

Ela riu, passando a mão livre no rosto.

— É que suas memórias são muito fortes. Seus sentimentos também.

Quem lhe dera fosse fácil aceitar tudo e continuar vivendo tranquilamente. Já fora muito difícil na época em que todos descobriram que produzia fogo e não seria nada fácil agora, tendo se tornado uma estranha até para seus próprios amigos. 

Desde aquele dia, Lukas não viera conversar, porém sequer se preocupava em disfarçar que tinha seus olhos pregados nela. Os reluzentes olhos verdes, que infelizmente eram a única coisa vívida de seu semblante soturno. 

Sim, restava uma semana. Provavelmente ninguém compareceria nos cinco últimos dias, os alunos cochichavam que não valia a pena pois os testes já estavam finalizados.

Naquele sábado, haveria uma “pequena” festa de comemoração para o fim daquele diabólico ano letivo do lugar medíocre.  Tal confraternização daria um ânimo a mais aos alunos, o que talvez os fizesse ir até o último dia. 

Na visão de Bruna, era tudo muito ridículo, seria como um baile com comida. Lukas uma vez dissera que detestava bailes, sua presença não podia ser esperada e isso só piorava tudo. 

Mesmo assim, ela iria só para obter a experiência, mesmo que não houvesse com quem dançar ou conversar — pelo menos haveria docinhos, daqueles que Vanessa não a deixava comer de jeito nenhum. 

Já Leonardo, não tinha ânimo nem gosto pra esse tipo de coisa. Iria porque queria ver Bruna, pois sabia que ela, sendo curiosa, iria também. Fazia tanto tempo que não conversavam, mesmo.

Incomodava não ter uma roupa social o suficiente pra um — anteprojeto de — baile. De todo modo, todos a repugnavam estando bonita ou feia, então que mordessem suas línguas quando a vissem minimamente arrumada. 

Mandou tudo que era fútil pelos ares e vestiu as roupas casuais do dia a dia: calças simples, sapatos simples, uma camisa de seda frágil e, dizendo a si mesma que valeria a pena se fosse só por hoje, arrumou os cabelos. 

Não havia percebido o quão estavam longos: chegavam ao quadril e, mesmo sempre arrepiados, assentavam-se com o peso próprio. Castanhos, brilhantes e ondulados; uma cascata de café. 

Nunca reparou o quão eram bonitos. Penteou-os com cuidado, tentando não desfazer as ondas e observando, enfeitiçada, o brilho deles deslizar conforme a luz os seguia. 

Atirou-os para um lado, finalizando a coisa toda. Nunca se importara em arrumá-los, o travesseiro os amarrotava o suficiente para que não saíssem do lugar, mas encarando a si mesma no espelho, viu-se mais bela do que nunca. 

Pelo visto seus banhos faziam, sim, certa diferença. 

— E posso saber quem é que vai te levar? — Lucas apareceu de repente. Bruna o encarou, claramente irritada.

— Eu achei que você fosse me levar!

Ele deu de ombros.

— Eu? Pff, tenho mais o que fazer. Mentirinha, estou só brincando. — Aproximou-se, ajeitando sua gola. — Sua escola é longe demais para que você vá sozinha e você está linda demais pra que eu deixe que te cortejem.

Envergonhada, ela disfarçou com um sorriso irado.

A tal festa começara de dia, porém o céu já estava rosado quando Bruna saiu de casa. Fazia tempo que não andava naquele carro, que em um dia de brincadeiras fora batizado de Furgão-da-Morte.

Quase não podia ouvir a magia que fluía por ele. Se concentrava em ouvir as engrenagens trabalhando enquanto um som suave ecoava conforme o carro acelerava — se fosse pra defini-lo, seria... Brilhante.

— Faz tempo que não a vejo estudando seus livros. — Lucas mencionou de repente, tirando-a dos devaneios. — Cansou deles?

— Não, na verdade, já li tudo que podia. Estive focando mais na história, sabe? Ela é interessante também.

Uma pontada no coração sentiu ao lembrar-se de quem a recomendou.

— ... Só que até hoje nunca cheguei na parte que me interessa... Acho que não tem naquele livro.

— Que parte?

— Enerio-mágica. Ou era magico-enerion? Ah, acho que era esse o nome.

— Hm... Isso faz parte da história, mas é um pouco diferente da história dos reinos comuns, pois se trata do reino das fadas. É um livro difícil de encontrar, mas eu posso achá-lo pra você.

— Conhece o conteúdo?

— Sim, é simplesmente tudo que as fadas proporcionaram aos reinos comuns com o Tratado de Herthoda. Pelo que sei, um tratado de paz assinado há séculos ditou que cada reino concederia uma parte de seu território pra que as fadas pudessem viver, mantendo contato com a natureza, enquanto elas forneceriam sua matéria-prima a nós.

— Matéria-prima seria, então, os cristais, certo? — Ele concordou. — Mas e a magia em si?

— Os cristais são a magia. Ou pelo menos parte dela. — Lucas parou em um sinal vermelho, aproveitando-se dele para continuar a explicar tudo com mais clareza. — Cada um deles tem uma função diferente: a luminária do seu quarto, os postes da rua e as luzes das casas são os cristais-da-aurora, que obviamente tem luz própria. Aqueles que são pra conservar alimentos são os cristais-nevoeiros, que seriam como gelo que nunca derrete. Também existem os flambes, que são aquecedores. E os comunicadores, que são os das rádios. Bem, tudo isso é detalhadamente explicado naquele livro.

Sabia muito pouco de história, afinal.

— Assinar um tratado de paz com as fadas foi a melhor decisão já tomada. Elas são realmente incríveis. Me admira que precisaram de um documento pra conseguir um espaço seguro neste mundo. Imagino o quão tenham viajado pra isso.

Quando o sinal esverdeou, Bruna pôde ver a tonalidade do cristal do poste mudar aos poucos. Vermelho vivo, rosado, arroxeado, azulado, ciano, verde. Tudo em menos de um segundo.

— Falar em viagem — continuou ele. — , elas construíram os naviões. E os carros também.

Bruna gritou de empolgação.

— Estou dentro de magia! Você está dirigindo magia! — ele riu. — E sou passageira da magia!

— Não exatamente. O carro é de madeira e metal, como esse. E o que o move não são cristais e sim a magia que flui nele. É um feitiço perpétuo... Ah, esqueci o nome dele.

Bruna avistou sua escola no fim da rua e olhou-o, apressada.

— Ah, lembra aí! Vai logo!

Sem ter imaginado que ela se interessaria tanto, ele ria ao pronunciar:

— Acho que era Fluente. Porque faz fluir.

— E como o Fluente faz pra saber que a roda tem que rodar?

— Quem enfeitiça pensa exatamente na função que ele deve fazer.

— Isso é tudo muito legal. Quero esse livro pra agora!

Ele gargalhou, estacionando o carro pro rápido desembarque dela. A rua estava um tanto deserta, então não precisariam se preocupar em demorar na despedida.

— Bem, está entregue. Vá lá se divertir... Com pessoas que eu não conheço.

Havia um pingo de ciúme naquele sorriso. Bruna sentiu-se na obrigação de dizer que não havia ninguém com quem trocar uma palavra, mas isso estragaria o momento.

— Devo vir lhe buscar que horas?

Sentiu-se lisonjeada com a liberdade recém obtida, mas sua honestidade falou mais alto. Não queria aproveitar um tempo vago, ficaria apenas com o suficiente para desfrutar de dezenas e dezenas de docinhos que nunca comeu na vida. 

— Bem... — olhou o relógio da torre do centro da cidade, que marcava cinco e meia. — Hm... Sete e meia?

— Esperava que fosse dizer nove.

— Eu? Que raio vou fazer aqui até as nove?

Ele riu e começou a mexer no próprio braço, talvez procurando seu relógio.

— Obrigada, Lucas. Até daqui a duas horas, então.

Ela já ia dando as costas quando o ouviu chamá-la. Ele estava gesticulando para que se aproximasse novamente — esperava que ele fosse zombá-la com qualquer coisa que não devesse ser dita em voz alta, mas assustou-se quando ele agarrou sua mão e a puxou para perto da janela. 

Bruna sentiu algo entrelaçar-se sobre sua mão, no que um estranho calafrio vivo percorria seu braço por baixo da manga, passando pela nuca, pescoço e, finalmente, repousando sobre sua clavícula e agarrando suavemente a lateral de seus cabelos. 

Ainda assustada, puxou a gola para entender o que havia acontecido. Raízes avermelhadas envolviam seu pescoço em um belo colar natural com uma flor pequenina como pingente.

O caule seguia por sua garganta e nuca, passando pelas raízes de seu cabelo, preparando um penteado lateral e finalizando-se numa bela flor sobre a orelha. 

Chocada, Bruna deu um passo pro lado e olhou seu reflexo no vidro negro da porta de trás. Estava bonita há dois segundos, agora estava impressionante. Um colar de raízes encaracoladas e flores vivas. O que exatamente era aquilo?

— Lembre-se que café puro é melhor acompanhado.

— M-mas o q-q...

— Um elo. Entregue-a pra quem quer que se lembre.

E acelerou, sumindo tão rápido quanto geralmente surgia, largando-a incrédula, espantada, impressionada e com a autoestima em colapso. 

Ao retornar a si, ela sorriu, voltando a respirar normalmente. Seus dedos reencontraram a flor do cabelo. Não fazia ideia de como aquelas raízes com vida própria conseguiram afeiçoar-se tão bem, mas soube que significava muito mais que um simples presente.

 



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