Volume 1
Capítulo 17: Outro nome para a inveja
Depois que ele começou a agir estranho, Bruna sempre acordava indisposta, como se a simples infelicidade dele drenasse qualquer vontade de se erguer e enfrentar o dia.
Durante seu monótono café, contemplando uma curvilínea garrafa de leite, tentava compreender seu sonho repetitivo, sem muito ânimo de ir mais afundo.
Tudo que via era sempre um garoto magricela encolhido no canto de um quarto escuro. Sobre o ambiente, era possível saber que era vasto, frio, vazio, preenchido por uma densa melancolia.
O menino encolhido devia chorar, considerando os movimentos que seu busto pulsava. Bruna não ouvia quase nada e quando ouvia, era proveniente de soluços ecoados no vazio, que nada se pareciam com a voz adulta e madura de Lukas. Não devia ser mesmo ele, afinal, apenas um filhote cinzento de algum cão.
De forma perturbadora, não podia se mover, não conseguia. Devia ser uma espécie de condenação em que nunca pudesse tirar os olhos da única coisa diante de si, sendo que nunca podia acolhê-lo ou se libertar da dor de vê-lo chorar, quem quer que fosse o menino.
Às vezes, o jovenzinho parecia imóvel, o que a fazia crer que pudesse ser só uma pintura em preto e branco de seu maior medo: nunca conseguir demonstrar que ainda estava ali querendo abraçá-lo.
A imagem assemelhava-se demais a ele... Não, Lukas nunca chorava. Apenas deixara de sorrir.
Estava confusa. O chorão do sonho não podia ser ele e o Lukas que conhecia apenas havia se desanimado um pouco, sem motivos. Ele estava bem, era só crer nisso. Hoje, iria vê-lo sorridente e alegre como sempre o viu, com aqueles olhos reluzindo ao sol e aquela voz grave e confortante.
Sabia que estava delirando, mas mesmo assim, espantou-se ao vê-lo imutável. Silencioso, quieto, triste. Exatamente como estava.
Ele não deixou de cumprimentá-la, embora triste. Tudo que lhe era dirigido era respondido com respostas vagas, curtas demais pra quem normalmente não costumava economizar em palavras.
Nunca se acostumaria com isso e tudo continuava tão estranho como o modo como aquilo começou.
Leonardo também parecia fugir. Falava tão pouco com ele que até chegou a se perguntar se estavam decidindo indiretamente que nunca mais se olhariam.
Já para o felino, o motivo era simples: não suportava falar com ela. Sentia-se constantemente observado, sob um olhar frio e desagradável que o perseguia pelos cantos.
Tudo estava se esvaindo, até o que um dia fora chamado de simpatia. Já nem reconhecia Lukas, nem tinha coragem de tornar a conhecer aquela criatura sinistra.
Faltava pouco pro fim daquele ano e Bruna passaria a administrar o próprio futuro dali em diante. Estava ansiosa, também surpresa por ter uma sensação boa dentro daquela convergência de angústia.
Finalmente poderia agir sem medo, lutar sem vergonha e orgulhar-se de si mesma, sem ninguém pra desdenhar seus limites.
No entanto, aquilo doía: como estaria feliz sem seus amigos por perto, os únicos que confiava? Talvez Léo só estivesse assustado e Lukas também.
Cada dia era uma eternidade, mas de tanto esperar que um dia amanhecesse diferente, não viu o tempo correr. As coisas estavam passando rápido demais para quem sentia tudo parado.
Já faltavam menos de duas semanas para o juízo final, ao que ambos não se pronunciaram para uma despedida digna.
Logo o próximo ano de Bruna ganharia um significado maior, grande o bastante para essas memórias se perderem em meio ao dever de crescimento.
Lukas seguia sem conseguir pronunciar uma única palavra, paralisado. Isso o envergonhava. Mais vergonhoso foi notar que o tempo que passou tentando se afastar e esquecer foi o mesmo tempo que podia ter usado com o melhor que podia oferecer.
Foi um erro, um erro gigante... E de nada adiantava se arrepender. Agora tinha de aceitar o ponto em que suas ações o levaram. Agora, mesmo que o vazio ocupasse seu coração, apenas olhava de longe o que um dia sentira de perto.
A mesma Bruna que conhecera aos onze anos estava bem ali, lendo seu livro, quieta como se houvesse perdido a voz, longe de seu lugar antes favorito. O mesmo Leonardo que um dia demonstrara bochechinhas vermelhas e um sorriso eufórico mofava naquele mesmo corredor, solitário.
Tudo voltou a ser o que era num grotesco símbolo de repetição, evidenciando que não importava a direção que tomasse, estava fadado ao abandono.
Não havia ninguém para distraí-lo de todo aquele pesadelo. As cartas dispunham de algum alívio, mas afinal, não eram nada além de palavras.
Resignava-se em pensar que pelo menos Bruna teria um futuro promissor. Era como uma fênix, se arriscou pensar que ela se esqueceria de tudo quando conquistasse tudo — afinal, seus amigos nada tinham a ver com o que ansiava.
Diante do pensamento, notou que ela não exatamente poderia estar sozinha. Léo queria algo próximo das obrigações nobres e da atuação militar, também. Algumas peças se encaixaram no que sua raiva se embolava na garganta.
“Ah. Então ele queria acompanhá-la”. E onde é que ele estava agora? Será que acabou demonstrando tanto seu desgosto a ponto de ser o motivo dele ter se afastado também?
Lukas arfou de cansaço, contendo lágrimas de raiva. “É minha culpa que nem ele se aproxima agora, se é que ele é minimamente empático com isso. Agora já era.”
Se contentar com seu arrependimento não era de seu feitio, apesar de pensar deste modo. Já estava na hora de raciocinar: o que achava que era um pensamento vazio na verdade era sua admiração por ela se escondendo por trás de sua mente entorpecida. Seu ciúme, sua paixão.
Odiava ver aquela garota sozinha, ainda mais diante de outro suposto amigo igualmente incompetente em confortá-la. Todas as vezes que a encarava, sentia o mesmo que sentiu quando a conheceu.
E o que ela estaria sentindo agora?
Ardor nos pés é que não era.
Não devia deixá-la ir sem pelo menos fazê-la lembrar-se dele — já que a recordava todas as noites, passando vontade de arrastá-la para conversas fúteis e desejando ver seu sorriso uma vez a cada cinco segundos.
Devia agir agora. E se ela decidisse mesmo pensar nele depois, aí já não era ele quem podia decidir.
Tinha pouco tempo até que ela se fosse de vez. Devia ser audacioso ir até ela só naquele momento, já que evitara isso a todo custo. Se morreria de vergonha ou atingido por sua ira, isso viria em vão, diante do fato de nunca poder tê-la de verdade. Então não importava o que ouviria.
Quando parou diante dela, Bruna demorou-se a olhá-lo, como se ela já não tivesse esperança que mais alguém viesse lhe dar atenção. Lukas percebeu um certo espanto, desespero, ou mesmo um lampejo de raiva surgir no brilho de seus olhos cafeínos.
— Yo.
“Oi invertido”, pensou. Foi estúpido. Pelo menos um jeito divertido de cumprimentá-la.
Era certo que devia começar com um discurso longínquo de que a achava a garota mais incrível da terra e por isso tinha todos os bons sentimentos do mundo sobre ela, mas disse apenas isso.
O que foi mais que suficiente praquele brilho desaparecer e restar apenas o vazio profundo de sua negrura. Ela assustava muito daquele jeito, quase pediu para que sorrisse. Nem teve tempo de se sentir ameaçado, ela mergulhara o rosto no livro novamente.
“Tudo bem”. Compreendia seu sentimento, sua raiva. Mesmo assim, aquilo doeu. Sequer tinha um plano em mente diante disso. Não se lembrava o que o fez vir até ela e agora tudo parecia uma imensa perda de tempo.
— Eu entendo sua raiva. Me desculpe. — Ele agachou e ajeitou-se ao seu lado, tão próximo, tão perto, sem sua permissão.
Mutuamente, sentiram seus aromas, o jardim queimado de Bruna e a floresta úmida de Lukas. Senti-los fez a mágoa de Lukas se esvair e a raiva dela se tornar apenas saudade. Uma doce nostalgia surgiu, dentre tanto incômodo.
— Por que você sumiu? — Ela perguntou, enfim. Sua voz era um sussurro, quase não a reconheceu. Bruna costumava ter um brado orgulhoso como voz. Só então ele percebeu que sequer sabia a resposta daquela pergunta.
— Bem.... Precisava organizar tudo, pode-se dizer.
— Não precisava se trancar e ir embora para isso.
Agora ela o olhava mil vezes pior, enfurecida como um vulcão prestes a explodir.
— Eu... — Lukas tentou impedir o caos, sem sucesso diante do discurso bravio:
— Eu não sei que desgraça te amaldiçoou, mas passar dias sem abrir a boca sobre isso fingindo que nada aconteceu é bem o que gente cuzona faz. Até o Léo desistiu de tentar descobrir algo sobre essa sua cara de bunda. Custava ter deixado uma brecha pra eu tentar ajudar com essa merda de problema que nem sei o que é? Não, você quis se fechar feito um idiota. E agora vem aqui, com essa carinha bonita querendo mais um pouco da minha gentileza, como se não a tivesse negado.
Ele desviou o olhar, submisso, acostumado a tantos sermões, à opressão em si. Pelo menos ela tinha alguma razão em meio à loucura, o que o fez tomar seus dizeres como verdade e de fato sofrer por isso.
— O que minha amizade significa pra você, hein? O quanto eu não sei sobre você?
Quase como um período pós-guerra, o vazio se expandiu, avassalador e insensível. O jovem nada disse diante da questão, que ele não tinha coragem de responder por muitas razões.
Bruna o viu murchar ainda mais do que parecia possível, desta vez por sua culpa. Pisoteou-o ainda mais e a resposta não vinha. Não era como se fosse surgir agora, quando mesmo com quase dois anos de amizade Lukas nunca contara o que tinha de errado com seu sobrenome.
Vanessa tinha razão, afinal de contas. Bruna sentiu-se repugnante pelo que acabara de dizer. Que direito tinha de cobrar aquilo dele se o problema nem podia ser isso? Devia ter tentado mais, insistido para de fato conseguir aquela resposta. Cuspir tudo contra ele definitivamente não era a opção.
— Não deixei de me despedir porque você era menos importante. — Baixo, ele pronunciou. — Era o contrário.
… A coisa toda de dominar a mente parecera tão inútil quando a loba lhe disse. Se fosse a mesma Bruna que seu pai criara, no mínimo faria a coisa certa. Seu estômago revirou.
— ... Me desculpe. — disseram mutuamente, correndo os olhos para longe um do outro.
— Não — disse ela. —, eu que me desculpo. Eu não sabia de nada, devia ter imaginado que se você não queria dizer nada, era porque devia pesar muito.
— Eu devia ter contado. Fui fraco de verdade, você tem razão. E continuo sendo. Quem me dera ter um pouquinho da sua coragem.
— A mesma que usei pra te ofender? — bufou. — Não a recomendo a ninguém.
Ele se permitiu mostrar os dentes num riso. Ainda era absurdamente desanimado, mas pelo menos era um sorriso.
— Acabo de perceber que o amor é quase inveja — Ditas tão inesperadamente, aquelas palavras tiraram dela o ar. — Admiramos nos outros o que não temos em nós mesmos e ansiamos ter. Faz pouco sentido, mas posso dizer que tenho inveja de você, Bruna.
A badalada do sino se equiparava ao coração que agora pulsava, frenético, em seu peito. Se Bruna ouviu claramente, então tinha muito a entender.
De repente, o tempo pareceu passar mais rápido, pois logo o pátio já estava se esvaziando e ele se ergueu ao seu lado. Ainda estava sem reação, ambos sem palavras. Já indo embora, ele só parou quando a ouviu chamá-lo.
— Lukas. — Ela escolheu as palavras com cautela, temendo a resposta. — O que isso significa?
Nada daquilo foi calculado, muito menos o modo como o disse. O que faria depois? Continuaria tentando esquecê-la antes do juízo final?
Continuaria apreciando sua voz até o último minuto possível? Explicaria de uma vez o significado de sua última frase ou viveria o resto dos dias em silêncio perpétuo?
Não sabia. Apenas quis ouvir a voz dela hoje e talvez quisesse amanhã, depois, ou daqui a uma semana, ou até o último dia em que a visse. Ou para sempre.
Só não queria permitir que estas palavras nunca fossem ditas, como muitas das coisas que deveria ter feito e não teve coragem, nos tempos em que podia ter pedido ajuda de verdade.
Respirando fundo e tentando desfazer o imenso nó em sua garganta, ele tentou encerrar: — Muito mais do que parece, Henriqueta.
Nada que pudesse pôr em palavras serviria de alguma coisa para ela. O que devia ter sido acabou antes de começar por uma simples falta de raciocínio por parte dele.
Suas diferenças pareceram muito evidentes agora, quando o abismo entre eles crescia e Lukas se afastava. Fosse o que fosse, aquelas palavras não se perderiam tão cedo para ela.