As Faces do Abismo Brasileira

Autor(a): O Corvo


Volume 1 – Arco 1

Capítulo 1: Portões Prateados

Lá estava eu, mais uma vez, diante de gigantescos e imponentes portões prateados. Cercado pela multidão em polvorosa, ansiando pela visão dos rostos tão familiares que os atravessariam em breve.

De repente, algo calou toda a multidão. Um repentino ranger de metal, que fez as conversas paralelas e murmúrios cessarem. Depois, o som familiar de engrenagens se movendo, e então, os Portões do Abismo foram abertos.

Nesses momentos, o único som audível em toda a Cidade dos Começos, além do ranger dos portões, eram os de passos metálicos que ecoavam do seu interior. Eu me apoiei na ponta dos pés, tentando ver por cima das cabeças que dificultavam minha visão.

À alguns metros, um homem de cabelos longos e brancos, assim como os meus, andava calmamente até a multidão. Atrás dele, diversas pessoas caminhavam a alguns passos de distância. Mesmo de longe, reconheci vários deles, é claro. Recordo-me até hoje de suas expressões duras e cansadas, seus rostos e armaduras brancas cobertas de sangue seco, brilhando em um tom opaco.

O homem que tomava a frente do grupo continuou andando, seus passos eram lentos e metálicos. A multidão se abria para sua passagem, tal qual um oceano ao seu comando.

Ele parou e ergueu a mão direita. Nela havia uma das armas mais belas que meus olhos tiveram a oportunidade de apreciar, uma foice quase do seu tamanho, sua lâmina reluzia a ponto de parecer ser forjada de luz.

A multidão explodiu em gritos e clamores em uníssono.

— Ceifeiros da Luz! Ceifeiros da Luz!

Eu sorri. Orgulhoso do homem ali parado em meio a todos, orgulhoso de meu pai.

Normalmente, após o retorno de meus pais do Abismo, toda a cidade passava a noite festejando na Taverna Mercador Sussurrante. E como esperado, apesar do nome do estabelecimento, o que menos havia naquela noite de fato eram sussurros.

A jovem Laurie dedilhava graciosamente seu alaúde. Tão bela quanto sua melodia era sua voz, doce e suave feito mel. As pessoas a rodeavam e cantavam junto a ela. Tratando de acabar com qualquer silêncio que ousava se espreitar por ali.

Até Harlam, o barman bigodudo, de sorriso fácil e dono do estabelecimento, cantarolava enquanto servia as bebidas e limpava taças e copos na mesma eficiência atarefada de sempre.

Não me entenda mal, de fato existem momentos próprios para a boa e velha calmaria, mas não aquele, aquele não era um momento feito para qualquer categoria de silêncio. Os Ceifeiros da Luz haviam retornado vitoriosos mais uma vez.

Quase todos eles estavam ali, cada um ocupado com o que considerava como diversão.

Reinhold e Daskin, ambos de bochechas rosadas, realizavam suas rotineiras apostas envolvendo bebidas. Daskin, como sempre, estava prestes a desmaiar, enquanto o enorme Reinhold ria a plenos pulmões.

Eu me perguntava como os dois gostavam tanto de beber. Uma vez provei um pouco do que havia restado nas canecas de um dos dois e, como uma boa criança que se preze, havia achado a bebida horrível e amarga.

"Talvez o gosto mude com a idade", pensei.

Úrsula disputava queda de braço com um homem com quase o dobro do seu tamanho.

— Vamos, garotão. Você consegue — ela disse, quase bocejando de tédio.

O rosto do pobre homem já estava indo de um tom quase tão vermelho quanto o cabelo de Daskin para um roxo de tanto fazer força.

Do outro lado da Taverna, estava Aurora, debruçada sobre seus livros.

Já meus pais, os líderes dos Ceifeiros da Luz, gostavam de passar o máximo de tempo que podiam comigo. Sentados em uma grande mesa de madeira, que ficava mais perto de uma lareira quentinha e mais longe de toda a barulhada do local, eu os ouvia contar magicamente suas histórias sobre suas viagens e aventuras. 

Meu pai abriu uma das mãos e formas familiares feitas de luz dançaram sobre sua palma enquanto ele me entretinha com suas histórias mágicas.

— Estávamos a alguns metros dos Picos Uivantes. — As formas de luz caminharam por uma planície coberta de grama e cercada por grandes picos de pedra saindo da terra feito garras. 

Os detalhes na magia de meu pai eram impressionantes, eu conseguia distinguir todas as formas de luz. A frente do grupo, meu pai portando sua foice. Ao lado dele, minha mãe, segurando sua espada. Daskin, com sua lança. Aurora e seu arco. Úrsula e sua clava. Eltan e seu machado.

Eu assisti à magia de meu pai maravilhado e encantado. Por um segundo me imaginei lá, junto a eles, caminhando pelas planícies do Abismo. Mas o brilho em meu olhar se foi quando algo se pôs diante deles, uma criatura esquelética e gigantesca surgida das sombras da luz. Ela estendeu sua mão sem carne por debaixo de seus trajes negros cobertos de pedras preciosas e a apontou na direção dos Ceifeiros. Seus olhos terríveis e sem vida pareciam olhar-me através da magia de meu pai, girando em uma espiral de morte e desespero.

O chão abaixo deles tremeu e crateras se abriram sob seus pés. Revelando centenas criaturas esqueléticas pútridas portando armas e vestindo armaduras enferrujadas. 

Meu pai estendeu sua arma em direção a elas, e com urros de guerra violentos, os Ceifeiros da Luz avançaram contra seus inimigos. Prendi a respiração quando minha mãe foi cercada por uma dúzia de soldados esqueletos, mas soltei o ar quando, em um piscar de olhos, todos foram reduzidos a meras estátuas de gelo e despedaçados por sua espada.

Os Ceifeiros da Luz continuaram a avançar, fortes e implacáveis, brilhando com o poder mágico de suas marcas e derrotando todos os monstros em seu caminho até chegarem à criatura esquelética gigantesca que havia se posto a sua frente.

Ela ficou ali, parada com seu olhar vazio que parecia devorar tudo ao seu redor, feito um redemoinho de sombras. A criatura estendeu sua mão cruel mais uma vez, e dessa vez o que surgiu de seu comando foi um exército inteiro daqueles soldados esqueléticos, mas dessa vez eles diferiam de várias formas. Haviam soldados esqueletos gigantescos cobertos de armaduras, soldados menores e arqueiros. E no centro de tudo estavam meus pais e os Ceifeiros, cercados e encurralados por um exército capaz de sobrepujar impérios em uma só noite.

— Por pouco não fomos dessa para melhor. A lança do Deskin se quebrou durante a batalha e Reinhold teve que improvisar outra para ele no meio do confronto. Sem contar que ele ainda teve que assimilar outra marca para a arma, o que nos fez perder mais tempo ainda.

Meu pai nunca deixava nenhum detalhe de lado em suas histórias, por mais violento ou mórbido que fosse, o que, na maioria das vezes, o levava a tomar alguns puxões de orelhas de minha mãe, porém, eu não me importava. Afinal, a pior parte de ser uma criança é quando realmente te tratam como uma.

— Então eu, sua mãe e Úrsula tivemos que aguentar todo o tranco praticamente sozinhos, já que o veneno da Aurora não funcionou neles. Úrsula, como sempre, perdeu a cabeça e derrubou vários deles antes que pudéssemos piscar.

Eu ri e a procurei com os olhos pelo salão. E lá estava ela, tinha uma cicatriz sobre o olho que marcava sua pele negra, se estendia até sua boca e ficava mais visível a cada vez que sorria, não que ela se importasse com isso, muito pelo contrário, sempre demonstrou muito orgulho de suas cicatrizes, que não eram poucas.

— Elas contam a minha história de uma forma que eu jamais conseguiria, garoto — ela me disse certa vez, quando perguntei o porquê dela nunca pedir a Aurora para dar um jeito em suas cicatrizes.

Dois homens parrudos tentavam, em vão, abaixar o braço da guerreira, que ria dos pobres coitados. Eu conhecia muito bem a personalidade da companheira de seus pais e, por mais que eu soubesse que às vezes ela causava dor de cabeça a eles, nutria muito apreço por ela.

— Mas conseguimos matar a criatura e arrancar o coração dela. — Meu pai fez balançou uma das mãos e um coração feito de luz apareceu. — Ou o que quer que seja aquilo que sua mãe arrancou do peito dele — completou.

— Bem, seja lá o que for, arranjamos um bom preço por ele no mercado. — Uma voz grossa interrompeu.

— Oh! Olá, Reinhold. Eu estava contando para o Lucian sobre a última expedição.

— Pois, continue, meu amigo. Estou bastante interessado em ver o que você anda falando sobre mim para o meu pupilo. — Reinhold, que tinha um bêbado e desacordado Daskin sobre os ombros, largou o homem como quem larga um saco de batatas e se sentou ao meu lado.

Eu abri um sorriso para ele, que em resposta bagunçou meu cabelo. Um gesto que repetia na maioria das vezes que me via. Sua enorme mão tinha quase o dobro do tamanho da minha cabeça.

Meu pai pigarreou e retomou com sua história.

Devo admitir ser difícil para uma criança imaginar um lobo grande o suficiente para se comparar a dois Reinhoilds empilhados um em cima do outro. Mas era exatamente isso que meu pai me mostrava na palma de sua mão. Um lobo gigantesco, cruel e como o meu pai disse; "do tamanho de dois Reinholds".

— Apesar de tudo, a luta se desenrolou bem. Até o momento em que, antes de morrer, o maldito uivou e chamou uma alcateia inteira. Aurora teve que gastar todas suas flechas e Eltan… — A ilusão de luz de meu pai se desfez assim que essas últimas palavras amargas saíram de sua boca. Todos na mesa assumiram uma expressão séria. Meu pai ficou olhando para o nada por alguns segundos e então balançou a cabeça, como se quisesse se desvencilhar dos pensamentos, e completou: — Mas não se preocupe, logo ele estará aqui conosco. Nada que uns remendos não dêem conta.

Naquela mesma noite, enquanto meu pai ainda me entretinha com suas histórias e uma quantidade considerável de homens haviam sido derrotados por Úrsula, o barão Ledic Graylock atravessou as portas da Mercador Sussurrante. O homem tratou de cumprimentar e acenar para todos ali, com um sorriso impecável e branco, digno da nobreza.

Mais tarde, ele discursou para todos sobre como estava orgulhoso de seus guerreiros e declarou que toda a bebida daquela noite seria por sua conta. O que fez que uma salva de palmas e assobios ressoarem pelo estabelecimento.

— Como todos vocês sabem, quando o Abismo foi descoberto e os primeiros de nós chegaram até aqui, esse lugar foi rapidamente infestado de malditos mercenários violentos — disse o barão, de pé sobre uma das mesas. Todos ali o ouviam em silêncio. — Que foram contratados por meus companheiros barões para tentar a sorte lá dentro. — Apontou o indicador para uma das janelas atrás dele. 

Pela mesma janela, eu conseguia ver os portões prateados do Abismo a distância.

— A violência e a carnificina andavam livres pelas ruas. Essa era uma Terra sem lei. — Fez um gesto amplo com os braços, como se abrangesse tudo ao seu redor. — E nós, juntos, mudamos essa realidade nos últimos anos. Forjamos dos escombros daqueles tempos nossa Cidade dos Começos. Demos um fim aos mercenários. Estamos finalmente vencendo o Abismo e chegamos até onde ninguém jamais foi. — O barão levantou a taça acima da cabeça. — Chega de mortes! Chega de miséria! Sejam Bem vindos a era dos Ceifadores da Luz! — ele exclamou.

Não me lembro de como foi o restante daquela noite, mas tenho certeza de que foi repleta de risadas altas, boa música e histórias fantásticas.



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