Volume 1
Capítulo 8: No fundo do abismo
O som da água correndo preencheu o local. Uma brisa gelada soprou suavemente em seu rosto. Seu corpo estremeceu pelo frio penetrante. Havia uma sensação sólida contra seu rosto enquanto um calafrio atingiu a metade de baixo de seu corpo. Hajime gemeu enquanto ele acordava.
A dor percorreu não apenas sua cabeça, mas seu corpo inteiro. Hajime apertou suas sobrancelhas e sustentou seu corpo com ambos os braços.
— Owwww. Isto é... eu pensei que eu tinha...
Segurando sua cabeça oscilante com sua mão, ele estudou a vizinhança enquanto tentava se lembrar do que aconteceu. Os arredores eram escuros, mas graças a iluminação das pedras de luz verde, não era como se ele não pudesse ver nada. Diante dos olhos de Hajime havia um rio subterrâneo com quase cinco metro de largura. A metade de baixo de seu corpo estava presa entre rochas salientes no fundo do rio.
— Isso mesmo... a ponte... ela desmoronou.
Sua mente grogue finalmente processou os eventos que aconteceram. Ele percebeu que a única razão para ainda estar vivo depois dessa queda foi graças a um imenso golpe de sorte. Durante a queda, ele encontrou vários buracos na parede ao redor do precipício. Além disso, jatos de água ocasionalmente surgiam desses buracos. Eles eram uma sequência de gêiseres[1].
Hajime não sabia quantas vezes ele foi lançado para longe pelos jatos de água, o fazendo colidir com as paredes. No fim, ele foi empurrado para dentro de um túnel que parecia um tobogã e foi jogado neste lugar. Era de fato um milagre. Contudo, quando ele foi jogado dentro do túnel, Hajime bateu sua cabeça e perdeu a consciência. Era inacreditável pensar na sorte que ele teve.
— De qualquer forma, eu ainda estou vivo... atchoo! Es-está tão frio.
Ele esteva submerso na fria água subterrânea por todo este tempo. Graças a isso, todo o seu corpo estava congelando. Neste ritmo, havia uma possibilidade de que ele sofresse uma hipotermia[2], assim, Hajime se arrastou para fora do rio imediatamente e tirou suas roupas molhadas enquanto tremia incontrolavelmente. Ele estava apenas com suas roupas íntimas e torceu suas outras roupas. Usando sua Transmutação, ele começou a criar um círculo mágico no chão.
— Uuu... está tão frio. É difícil manter a concentração assim.
Ele queria usar a magia Centelha. Esta era uma magia simples que até uma criança poderia usar com uma formação mágica de dez centímetros. Contudo, não apenas ele não tinha nenhuma Pedra Mágica que aumentaria a eficiência da magia, a proficiência de Hajime com magia era quase zero. Então a única forma para ele lançar o feitiço era desenhando um círculo mágico que era maior do que um metro de diâmetro com uma enorme quantidade de fórmulas mágicas complexas. Depois de quase dez minutos, ele finalmente completou a formação mágica, então ele a ativou colocando Poder Mágico no círculo mágico com um encantamento.
— Eu busco vosso fogo, o poder da luz, manifesta-te, Centelha”... uuuuuu. Por que é necessário um encantamento tão exagerado apenas para criar um fogoooo. Tão constrangedoooor. Haaaaa.
Os suspiros pareciam ter se tornado um hábito recente. Apesar disso, ele ainda esticou suas roupas perto da chama do tamanho de um punho que ele invocou enquanto se banhava em seu calor.
— Me pergunto onde estou... eu devo ter caído uma considerável distância... eu vou ser capaz de voltar?
Se aquecendo próximo do fogo, ele lentamente se acalmou, mas seu coração foi gradualmente preenchido pela angústia. Lágrimas começaram a se acumular nos cantos de seus olhos. Ele sentia que estava a ponto de chorar. Quando ele percebeu que iria desmoronar se começasse a chorar agora, ele limpou suas lágrimas e deu alguns tapas em suas bochechas com as duas mãos.
— Eu não posso ficar sem fazer nada. Eu preciso voltar para a superfície. Não há motivos para ficar assustado, tudo vai terminar bem.
O rosto de Hajime ficou determinado depois que ele murmurou alguns encorajamentos para si mesmo, tudo isso enquanto ele encarava dentro das chamas.
Depois de se aquecer por vinte minutos, suas roupas já estavam quase secas, então ele as colocou de volta e se levantou. Hajime não tinha certeza sobre o andar em que ele caiu, mas certamente, ele ainda estava no Calabouço. Não seria estranho ver Feras Mágicas espreitando ao redor. Hajime estava muito, muito, muito cuidadoso enquanto prosseguia pela enorme passagem à sua frente.
A passagem em que Hajime entrou parecia mais uma caverna. Ao invés de ser uma passagem retangular, o caminho tinha rochas e paredes projetando-se em diferentes lugares e serpenteavam pelo local de forma complicada. Era parecido com a última sala do 20º andar.
Contudo, o tamanho não poderia ser comparado. Mesmo se a complicada passagem fosse cheia de obstáculos, ela ainda tinha quase vinte metros de largura. Até os lugares mais estreitos tinham por volta de dez metros de largura, então era um local consideravelmente grande. Não era um caminho fácil para se lidar, contudo, havia muitos pontos para se esconder. Hajime avançou sorrateiramente de cobertura para cobertura.
Depois de percorrer o que parecia ser uma enorme distância, Hajime começou a se cansar. Justo quando ele estava a ponto de parar para descansar, ele finalmente alcançou a primeira bifurcação do caminho. Era uma enorme encruzilhada. Hajime estava se escondendo atrás de um pedregulho, se perguntando qual caminho ele deveria tomar.
Enquanto ele estava refletindo, ele viu algo se movendo com o canto de seus olhos e entrou em pânico, escondendo todo o seu corpo atrás do pedregulho. Colocando apenas sua cabeça para fora para observar a situação, Hajime viu uma bola de pelos branca saltitando pelo caminho logo a frente. Ela tinha longas orelhas e sua aparência exterior parecia exatamente a de um coelho.
Entretanto, ele tinha quase o tamanho de um cão mediano e suas pernas traseiras eram bem desenvolvidas. E o ponto mais importante era que o “Coelho” tinha linhas carmesins percorrendo todo o seu corpo como vasos sanguíneos. As linhas pulsavam como um coração batendo, o fazendo parecer extremamente bizarro.
Era claramente uma Fera Mágica perigosa. Então ele decidiu que o melhor seria evitar o monstro indo para a esquerda ou para a direita. Julgando pela posição do coelho, ele deveria ser capaz de evitar ser detectado se ele fosse para a passagem da direita. Hajime prendeu seu fôlego e esperou pela melhor oportunidade. Então, o Coelho se virou para Hajime e começou a farejar o chão. É agora! Hajime aproveitou esta chance e tentou correr.
Nessa fração de segundo, o Coelho pareceu reagir a algum barulho. Ele rapidamente endireitou suas costas e ficou de pé. Com suas orelhas formigando e vigilantes, ele espreitou ao redor.
“Merda! El-ele me descobriu? Eu-eu devo ficar bem, não é?”
Ele rapidamente se abaixou atrás da rocha e tentou acalmar as batidas de seu coração. Enquanto sentia que as batidas de seu coração seriam ouvidas pelas aguçadas orelhas do monstro, Hajime começou a suar frio da cabeça aos pés.
No entanto, o Coelho ficou vigilante por um motivo diferente.
— Awrooooo!!
Junto do rugido de uma Fera Mágica, um monstro parecido com um lobo com pelo branco saiu das sombras de um pedregulho e pulou em direção ao Coelho. Esse lobo branco tinha duas caudas e era do tamanho de um cão enorme. Assim como o Coelho, o Lobo tinha as mesmas linhas escarlates pulsantes por todo o corpo. Depois que esse Lobo pulou de lugar nenhum, outros dois Lobos de Duas Caudas surgiram de trás de outros pedregulhos.
Hajime espiou com sua cabeça de fora nas sombras do pedregulho para observar a situação. Não importava como você olhasse para isso, essa era uma cena onde os Lobos estavam caçando o Coelho-chan (apesar de ele não ser fofo o bastante para acrescentarmos o chan com ele). Sob a cobertura dessa confusão, Hajime ergueu seu pé. Porém...
— Kyu!
Ao mesmo tempo que o grito fofo foi ouvido, o Coelho pulou no ar e se virou. Usando sua grossa perna dianteira, ele desferiu um roundhouse kick[3] em um dos Lobos de Duas Caudas.
Bam!
O chute gerou um som que não deveria ser possível para um chute. Coelho-chan acertou um chute direto no crânio do Lobo de Duas Caudas, como resultado...
Crack!
Junto de um barulho que não foi alto e claro, a cabeça do Lobo de Duas Caudas se torceu em um ângulo estranho.
Hajime congelou com essa cena. Durante este tempo, o Coelho usou a força centrífuga[4] de seu chute anterior para aumentar ainda mais a velocidade de sua rotação no ar até ele ficar de ponta cabeça. O Coelho pisou no ar e caiu contra o solo como se fosse um meteoro, mandando um poderoso chute giratório vertical.
Bang!
A cabeça do segundo Lobo foi pulverizada sem ele ter chances de dar seu grito final. Outros dois Lobos de Duas Caudas apareceram neste momento, pulando no momento em que o Coelho aterrissou. Hajime não tinha dúvidas de que o Coelho seria derrotado desta vez. Mas o Coelho fez uma parada de mão[5] enquanto girava suas pernas em alta velocidade como se fosse um dançarino de breakdance. Os dois Lobos de Duas Caudas que pularam nele foram lançados contra as paredes com os chutes giratórios que pareciam um tornado. Com o som de tomates sendo esmagados, sangue espirrou nas paredes e os Lobos lentamente escorregaram até o chão, onde não se moveram mais.
O último Lobo ficou com suas caudas desgrenhadas assim que rosnou. Como resultado, suas caudas começaram a descarregar eletricidade. Essa certamente era a Magia Única do Lobo de Duas Caudas.
— Awrooooo!!
Junto do uivo, a descarga elétrica se espalhou por todo o lugar com um zumbido. Contudo, enquanto o trovão se aproximava em alta velocidade, o Coelho se esquivou esplendidamente com movimentos em ziguezague. Quando o trovão se dissipou, o Coelho encurtou a distância em um único salto e desferiu um chute alto no queixo do Lobo de Duas Caudas. O chute fez o Lobo dar um mortal para trás, caindo no chão com um estrondo. Seu pescoço estava obviamente quebrado.
O Coelho estava...
— Kyu!
Dando um grito de vitória? Ele levantou suas orelhas e suas patas dianteiras como se estivesse comemorando.
— ... você só pode estar brincando... minha nossa...
Hajime que ainda estava paralisado pelo medo só conseguiu dar um sorriso sem graça. Isto era realmente ruim. Os Soldados Esqueletos que deram tanto trabalho para os estudantes não pareceriam nada além de brinquedos comparados com este Coelho. Se considerássemos apenas o poder de ataque, este Coelho poderia ser até mais forte do que o Behemoth.
Hajime sabia que ele estaria morto se fosse descoberto, esta inquietação o fez inconscientemente andar para trás. Isso foi um erro.
Bang!
Esse som ecoou através de toda a caverna. Hajime chutou uma pedra perto de seus pés enquanto andava de costas. Enquanto se xingava por fazer uma trapalhada tão grande, a testa de Hajime ficou coberta de suor. O Coelho Chutador virou sua cabeça lentamente como um robô que não foi lubrificado para confirmar a origem do barulho... Hajime apareceu em seu campo de visão.
Ele piscou seus olhos parecidos com rubis assim que encontrou seu alvo. Hajime estava paralisado como um sapo pego pelo olhar de uma serpente. Sirenes de emergência que o diziam para fugir com tudo o que tinha começaram a soar no fundo de sua alma, mas como se todos os nervos de seu corpo estivessem desligados, ele não podia se mover.
Pouco depois, o Coelho Chutador que só tinha virado sua cabeça, girou seu corpo inteiro em direção a Hajime. Suas pernas começaram a acumular poder.
“Está vindo!”
Hajime instintivamente sabia o que iria acontecer em seguida. O Coelho Chutador liberou o poder que tinha acumulado em suas pernas de uma vez, criando um efeito de persistência de visão[6] assim que ele disparou em uma velocidade absurda.
No momento em que se deu conta, Hajime já tinha saltado para o lado com todas as suas forças.
Na sequência, o lugar onde Hajime estava há apenas um segundo foi atingido por uma bola de canhão chamada Coelho Chutador. O chão explodiu e deixou uma enorme cratera. Hajime estava rolando pelo chão com estrondo, então, ele parou em uma posição sentada com sua bunda no chão. Ele se moveu para trás enquanto olhava para o chão da caverna com o rosto pálido.
O Coelho Chutador casualmente se levantou e, mais uma vez, atacou Hajime com o mesmo ataque explosivo. Hajime rapidamente levantou uma parede de pedra com sua Transmutação, mas a parede foi facilmente atravessada pelo chute do Coelho. A parede de pedra na frente de Hajime explodiu e ele levantou seu braço esquerdo por reflexo. O ataque que deveria esmagar seu rosto foi bloqueado, mas a colisão mandou ele para o chão de novo. No momento que ele parou de rolar, ele sentiu uma enorme dor percorrendo seu braço esquerdo.
— Augh!!
Quando ele olhou para seu antebraço esquerdo, ele estava pendendo e estava torto em um ângulo estranho. Parecia que o osso estava completamente esmagado. Se agachando pela agonia da dor, ele desesperadamente procurou pelo Coelho Chutador. Depois do feroz ataque de antes, O Coelho ainda estava com sua atitude despreocupada enquanto lentamente se aproximava. Hajime sentiu que o Coelho Chutador estava zombando dele, como se estivesse o olhando de cima. Parecia que ele estava apenas brincando com Hajime.
Hajime só podia olhar para ele com uma expressão feia e se arrastar para longe. Em seguida, o Coelho Chutador parou na frente de Hajime. Ele o olhou de cima, como se Hajime não fosse nada mais do que um verme se arrastando pelo chão. Depois disso, como se estivesse se exibindo, o Coelho levantou sua perna acima de sua cabeça.
“Eu vou... morrer aqui?”
Hajime foi tomado pelo desespero, ele aceitou seu destino e olhou para o pé do Coelho Chutador com uma expressão vazia. E finalmente, o chute mortal foi lançado para baixo como o redemoinho de uma tempestade. Hajime fechou seus olhos com força graças ao medo da iminente morte.
...
Contudo, não importava a quantidade de tempo que passava, o golpe que ele estava esperando nunca foi feito. Hajime timidamente abriu seus olhos e o pé do Coelho estava diante de seus olhos, parado a apenas alguns centímetros de distância.
“Não me diga que ele ainda planeja brincar comigo?”
Quando Hajime tinha abandonado toda a esperança, ele notou algo estranho. Se ele olhasse com atenção, o Coelho Chutador parecia estar tremendo de medo.
“O qu-quê? Por que ele está tremendo... ele parece estar com medo de alguma coisa...”
Não. Não “parecia”, era a realidade. O Coelho Chutador estava petrificado. Isso se devia ao fato de uma nova Fera Mágica ter aparecido quando Hajime tentou correr para a passagem da direita.
Era um monstro enorme. A fera tinha quase dois metros de altura. Seu corpo musculoso estava coberto por um pelo branco. Como todas as outras Feras Mágicas, ela também estava coberta pelas linhas carmesins pulsantes por todo o seu corpo. Para servir de comparação, esse monstro era praticamente um urso, contudo, em seus braços longos e grossos que se estendiam até seus pés, ele tinha três garras afiadas com trinta centímetros de comprimento cada.
O Urso de Garra Curvada[7] se aproximou sem que ele percebesse. Ele estava encarando de forma hostil o Coelho Chutador e Hajime. A área foi envolvida pelo silêncio.
Hajime ficou ainda mais aterrorizados e até o Coelho estava paralisado. Não, era mais como se ele não pudesse se mover um centímetro. Da mesma forma que Hajime estava paralisado pelo medo instantes atrás, ele ficou petrificado com o olhar do Urso de Garra Curvada.
— Grr...
Ficando irritado com a situação, o Urso rosnou.
— !?!?!?
Como se o Coelho Chutador tivesse acabado de acordar de um sonho, ele estremeceu momentaneamente antes de se virar e fugir o mais rápido que podia. Até um momento atrás, ele estava usando suas patas traseiras para pulverizar os inimigos, mas agora ele estava as usando para fugir. Contudo, ele falhou nesse objetivo.
Usando uma velocidade que não combinava com seu tamanho, o Urso de Garra Curvada se aproximou do Coelho Chutador enquanto usava suas garras afiadas. Como esperado do inteligente Coelho, ele foi capaz de desviar do ataque ao girar seu corpo. Hajime também confirmou com seus olhos que as garras do Urso passaram reto e erraram seu alvo. Parecia que o Coelho não tinha sequer um arranhão.
No entanto... o corpo do Coelho Chutador foi cortado ao meio quando ele finalmente aterrissou. Sangue jorrava como em uma fonte e as duas metades de seu corpo caíram em direções opostas.
Hajime estava impressionado. O poderoso Coelho Chutador não teve nem chance de contra-atacar e foi morto com facilidade. A razão para o Coelho fugir com o rabo entre as pernas finalmente foi entendida. O Urso de Garra Curvada era tão poderoso que ele não podia ser comparado com os outros monstros. Até mesmo o Coelho que possuía habilidade no nível de artistas marciais veteranos ainda não seria um oponente para esse monstro.
O Urso caminhou até os restos do Coelho com tranquilidade. Usando suas garras afiadas para espetar o corpo, ele devorou seu alimento parecendo satisfeito.
Hajime não podia se mover um centímetro. Ele foi consumido pelo medo. Além disso, mesmo enquanto mastigava o Coelho Chutador, o Urso de Garra Curvada manteve Hajime em seu lugar com seus olhos afiados. Hajime foi perfurado por seu olhar aterrorizante.
O Urso de Garra Curvada engoliu o Coelho Chutador inteiro depois de apenas três mordidas. Ele rugiu enquanto se virava para Hajime. Os olhos da fera pareciam dizer “Você é o próximo”.
Hajime entrou em pânico quando encarou os olhos de um predador.
— Uwaaaaaaaaaaaa!!
Enquanto gritava inutilmente, Hajime até se esqueceu que seu braço esquerdo estava quebrado e se levantou para correr na direção oposta da do Urso. Entretanto, mesmo o Coelho foi incapaz de fugir, era impossível para Hajime realizar tal feito. Com o uivo do vento, um poderoso ataque atingiu o lado esquerdo de Hajime, o atirando contra a parede.
— Guah!
O ataque tomou todo o ar de seus pulmões. Enquanto tossia para recuperar o fôlego, ele deslizou pela parede e caiu no chão. A visão de Hajime estava embaçada pelo impacto. Atordoado, ele olhou para a direção do Urso de Garra Curvada e notou que a fera estava mastigando alguma coisa.
Contudo, o que ele estava mastigando? O Coelho Chutador já tinha sido devorado e, por alguma razão, o braço que ele estava comendo era extremamente familiar. Hajime estava em um estado de incompreensível confusão enquanto ele olhava para seu braço esquerdo que parecia mais leve por alguma razão. Para ser mais preciso, onde seu braço esquerdo deveria estar...
— E-eh?
Hajime inclinou sua cabeça com uma expressão angustiada. “Para onde meu braço esquerdo foi?”, “Por que há tanto sangue?”... seu cérebro e seu coração recusaram aceitar a situação. Entretanto, era impossível escapar da realidade para sempre. Hajime despertou de seu estado semiconsciente. A imensa dor o trouxe de volta a realidade.
(Hajime): “A-A-Ahhhhhhhhhhhhh!!”
O grito de Hajime reverberou pelo Calabouço. Agora mesmo, tudo abaixo de seu cotovelo esquerdo tinha desaparecido. Isso aconteceu graças a Magia Única do Urso de Garra Curvada. As lâminas de vento que eram invocadas ao redor de suas três garras podiam se estender em até trinta centímetros e cortavam o alvo a sua frente. Considerando isso, perder apenas um braço poderia ser considerado um grande golpe de sorte. O Urso poderia estar brincando com ele ou Hajime só era mesmo sortudo. Não seria estranho se seu corpo fosse dividido ao meio como aconteceu com o Coelho Chutador.
Depois que o Urso de Garra Curvada terminou de comer o braço de Hajime, ele se aproximou dele sem pressa. Ele não tinha uma expressão despreocupada como a do Coelho, parecia que ele não poderia pensar em Hajime como algo além de alimento.
O Urso gradualmente se aproximava dele e estendeu sua pata para Hajime. Talvez ele não estivesse planejando usar suas garras para corta-lo, mas sim engoli-lo inteiro.
— A-ah... khhh, Tr-Transmutação!
Com seu rosto coberto de lágrimas, muco e saliva devido a dor extrema, Hajime colocou sua mão direita na parede atrás dele para usar a Transmutação. Foi uma reação involuntária. Ele que era chamado de incompetente, ele que não tinha aptidão para nenhuma magia, ele que tinha todos os atributos com valores baixos... esse era o único poder que Hajime possuía. Era uma magia que normalmente se usava para produzir espadas, lanças e armaduras.
Todos dessa classe se tornavam Sinergistas sem exceção e eram considerados inúteis em combate. Os métodos que alguém de outro mundo como Hajime criou impressionou os Cavaleiros. Com o objetivo de ser útil para seus colegas, Hajime pensou em diferentes formas de usar isso. Foi precisamente por esse motivo que Hajime inconscientemente se tornou dependente desta habilidade até mesmo à beira da morte, pavimentando o caminho que resultaria em sua sobrevivência.
Um buraco com quase 50 centímetros de altura, um metro e 20 centímetros de largura e dois metros de profundidade apareceu na parede atrás dele. Pouco antes das garras do Urso alcançarem ele, Hajime se deitou e rolou para dentro do buraco.
Com sua presa escapando diante de seus olhos, o Urso de Garra Curvada foi tomado pela fúria.
— Guruaaa!!
A fera usou sua Magia Única enquanto soltava um rugido, balançando suas garras em forma de meia-lua em direção a caverna que Hajime entrou. Junto do destrutivo e horroroso barulho, a parede foi despedaçada pelas poderosas garras do Urso.
— Wuahhhhh! Transmutação! Transmutação! Transmutaçããããoooo!
Seguindo o uivo do Urso de Garra Curvada e o som das paredes sendo arranhadas se aproximando cada vez mais, Hajime entrou em pânico e continuamente usou a Transmutação para mergulhar mais fundo na parede, esperando colocar um pouco mais de distância do monstro. Sem olhar para trás, ele simplesmente invocou a Transmutação de forma imprudente, avançando ao rastejar pelo chão. Ele esqueceu completamente a dor de seu braço esquerdo. Seus instintos de sobrevivência o ordenavam a continuar a usar o único poder que ele possuía.
Hajime não sabia quão longe ele tinha avançado deste jeito, mas o que ele fez foi o bastante para que ele não escutasse mais os sons aterrorizantes. Na realidade, ele não prosseguiu tanto assim. O alcance efetivo de cada Transmutação não cobria mais do que dois metros (o que era o dobro do que ele fazia em seus primeiros dias neste mundo). Mais importante que isso, o sangramento em seu braço esquerdo era muito sério e ele não seria capaz de resistir mais tempo. De fato, a consciência de Hajime aos poucos se perdia graças a severa perda de sangue. Mesmo assim, ele continuou a lutar e avançar.
Entretanto...
— Transmutação... Transmutação... Transmutação... Transmutação...
Depois de muitas Transmutações, a parede na frente dele continuou como estava. Seu Poder Mágico se esgotou antes que seu corpo desistisse. Sua mão que estava pressionada contra a parede lentamente deslizou.
A cabeça dele começou a ficar nebulosa e justo quando Hajime estava a ponto de perder a consciência, ele prendeu seu fôlego e usou sua última reserva de força para girar seu corpo. Ele futilmente pensou em encarar o céu, mas tudo o que ele viu foi uma manta de escuridão. Esta região não era iluminada pelas pedras de luz verde.
Hajime inconscientemente se lembrou de algumas memórias de seu passado. Era outra lanterna girando[8]. Sua vida passou diante de seus olhos em um instante. Da creche até a escola fundamental e então para seus dias no ensino médio. Todos os tipos de memórias fluíram em sua mente e sua memória final foi... o tempo que ele passou com Kaori naquele quarto iluminado pelo luar e aquele sorriso no rosto dela quando eles fizeram a promessa...
Depois de se lembrar desta bela cena, a consciência de Hajime foi engolida pela escuridão. Pouco antes de sua consciência se apagar por completo, ele sentiu gotas de água caírem em sua bochecha, como se alguém estivesse derramando lágrimas nele.
Notas
[1] Gêiser é uma fonte termal que lança no ar jatos de água ou vapor em intervalos regulares.
[2] Hipotermia é diminuição excessiva da temperatura normal do corpo, às vezes provocada artificialmente para fins terapêuticos ou para facilitar cirurgias cardíacas.
[3] O chute circular, ou roundhouse kick, é um golpe utilizado em várias artes marciais em que o atacante move a perna num movimento circular, alongando o membro e batendo com o calcanhar ou com a prancha do pé, podendo ou não completar o movimento com uma volta de 360º na posição de luta inicial. O golpe ficou famoso por ser usado com frequência pelo artista marcial e ator Chuck Norris.
[4] A força centrífuga surge sempre que nos movimentamos fazendo curvas. É ela quem nos faz ter a sensação de estarmos sendo atirados para fora.
[5] A parada de mão é uma posição da Yoga onde a pessoa suporta o corpo na posição vertical de forma estável e equilibrado nas mãos. Em uma parada de mão básica do corpo é mantido em linha reta com os braços e as pernas totalmente estendidas. Também é um movimento usado por dançarinos de breakdance.
[6] Persistência da visão é o nome do fenômeno ou a ilusão provocada quando um objeto visto pelo olho humano persiste na retina por uma fração de segundo após a sua percepção. Segundo essa teoria, ao captar uma imagem, o olho humano levaria uma fração de tempo para "esquecê-la".
[7] A palavra que o tradutor gringo usou foi talon, que é um termo inglês para se referir as garras curvadas de algumas espécies de aves de rapina, como o gavião.
[8] Ver uma lanterna giratória é o mesmo que dizer que a pessoa está vendo toda a sua vida em um breve momento.