Volume 1
Capítulo 27: Eu Estou Sozinho
A prova “Caça ao Rei” chegou ao fim quando o cronômetro no bracelete de Emma Brown zerou. Decepcionada, segurava a carta de rei falso contra o pequeno visor do aparelho com urgência. Ethan parecia estar um tanto satisfeito ao lado. Tentava conter um sorriso enquanto observava o desespero de Emma. Mas logo, apenas deixou o ar vazar dos pulmões e seguiu caminhando, sorrindo.
Emma ergueu a cabeça para olhá-lo, deixou com que lentamente as lágrimas estocadas nos olhos escorrerem pelas bochechas. Se esforçou para desgrudar os dentes, sua voz saia trêmula.
— Por… por quê?! — Emma parou para puxar o catarro para dentro. — Eu te ajudei! Até aqui, nós fizemos todo esse esquema juntos!
— Acho que você não entendeu… — Ethan riu, colocou as mãos nos bolsos e olhou para o alto. Naquela hora, os braceletes de todos brilharam enquanto a voz de um dos instrutores anunciava o final do jogo. — Nesse “plano” inteiro que eu criei, você ainda não percebeu que você não teve função nenhuma?
Emma levou o braço ao rosto para limpar as lágrimas das bochechas. Ainda segurava a carta falsa nas mãos bem forte, estava ficando amassada.
— Você… você me disse que só me escolheu para ser sua dupla nesse seu plano porque eu tinha uma função especial. Você me disse que eu me encaixava perfeitamente nele… Para quê eu servi então?! — Emma abaixou os braços e bateu o pé no chão. Sua voz ganhou um tom mais agressivo. — Você nunca deixou isso claro pra mim. Só me disse “faça isso, faça aquilo”, mas tudo isso eu conseguiria fazer sem você!
Ethan parou de seguir em frente e se virou para ela por cima do ombro. Seu olhar se ergueu devagar.
— Eu sei. E você fez tudo o que você já faria sozinha sem desconfiar. Você jogou essa prova inteira por conta própria...
Ele olhou para o próprio punho, a voz do instrutor explicando que aqueles que não obtiveram um rei até este ponto estariam todos eliminados do colégio, sem exceção. Poderiam buscar suas coisas em seus dormitórios e se despedir, sua saída seria quando anoitecesse. — Mas se você quer mesmo saber, na verdade sua função era muito simples. Quando eu te falei desse plano ontem a noite… naquela hora, eu já tinha sido o mais claro possível com você.
“Um motivo especial? Eu nunca fui muito com a sua cara, desde que Aria ficou tagarelando sobre você desde que entramos aqui. Por que você acha que eu te ajudaria?”
“Porque eu tenho um plano… e você se encaixa perfeitamente nele. Você só precisa… confiar em mim.”
— Sua função no plano sempre foi apenas “confiar em mim” — Ethan sorriu, abriu os braços e começou a andar de costas enquanto a encarava. — E no fim, você concluiu sua função no plano direitinho. Não entendo sua raiva agora… te pedi para fazer algo e você simplesmente fez. Quer algum doce por isso?
Emma abriu a boca e deu como se fosse responder a pergunta, mas ela não disse nada. Depois recuou os braços e devagar foi se encolhendo no chão, encostada na parede. Ela chorava e chorava, era a única coisa que conseguia fazer. Observar uma chance daquelas ir embora tão fácil… Estragada por um garoto qualquer. Mas talvez, tenha sido frutos de suas consequências. Mas por que um destino tão cruel?
Enquanto assistia, Ethan parou de se distanciar. Presenciou Emma perdendo toda sua arrogância até ver sua base desmoronar ao chão. No fim, ela era muito frágil. Talvez não merecesse aquele destino.
— O que foi que eu… fiz pra você? — ela perguntou, tentava manter uma estabilidade na voz. Também parecia um pouco mais meiga.
— Você não fez nada.
Nenhum dos dois disse alguma coisa. Emma permaneceu chorando no canto, mas Ethan não se sentiu confortável em apenas sair andando e continuar seguindo em frente. Isso era estranho… isso era culpa. — Seu único erro foi… gostar demais da sua amiga. E ter medo de perdê-la tão fácil…
Dessa vez, Ethan estava um pouco mais consolidado com a situação. Mas mesmo assim não tentou acolhê-la.
— É que… — Emma fechou os olhos, deixou as últimas lágrimas pingarem em suas roupas. — Eu sempre fui uma pessoa… introvertida… fraca… sem apoio moral eu nunca consegui fazer nada! Eles me diminuíram na escola… tiravam sarro de mim e eu fui perdendo as forças. Ninguém nunca acreditou em mim… Todas as vezes que eu venci, eu estava sozinha. Mas ao mesmo tempo, sempre que eu perdia apareciam pessoas de todos os lugares para rirem de mim.
“Não importa quantas vezes eu tente, quantas vezes eu lute ou quantas vezes eu tente me sentir melhor fazendo algo que eu sei que sou incapaz. Que eu sei que vai dar errado no fim! Do que adianta eu vencer… se não tem ninguém torcendo por mim no final?”
— Foi quando ela chegou… — Emma sorriu, sua voz estava abafada pois ela apertava a própria cara contra as mangas do moletom. — E me disse que agora seríamos melhores amigas… Eu só... Eu só não queria ficar sozinha de novo!
Ethan observava inerte, um olhar caído e o sorriso vanglorioso já havia desaparecido também. Ele sentia empatia por ela, uma sensação que talvez pudesse ser compartilhada pelos dois. Uma ideia que no início ele tentou ignorar até que a solidão formasse quem ele era.
— Você não está… — ele se aproximou para tentar dizer alguma coisa, mas Emma rapidamente se levantou enquanto tentava limpar as lágrimas do rosto. Estava sorrindo, estava nervosa.
— Me desculpa! Só… me perdoa se eu acabei atrapalhando vocês!
Ela se virou e desapareceu no horizonte do corredor. Seguiu apressada, o som dos passinhos se aprofundando até desaparecerem.
De pouco em pouco os outros dezoito competidores daquela prova foram dando as caras na saída do galpão. Alguns seguravam lampiões pela escuridão, outros ainda com medo da selva que se tornou aquele lugar, vinham escondidos se rastejando nos cantos e destroços da bagunça que foi feita. Brittany Taylor tinha um semblante caído, seu grupo se desfez, todos haviam perdido. Sarah Megan se sentia indignada por perder justo para o Kevin Johnson. Ele era um delinquente, mas talvez fosse justamente por sua maestria em lugares caóticos que acabou o levando a vitória.
Ethan foi o último a se juntar naquele meio, e tanto Christopher quanto Emma sequer apareceram. Nathan, que estava um pouco mais a frente, parecia estar procurando por Ethan. Quando o encontrou soltou um suspiro aliviado, principalmente quando viu que ele estava na pequena lista dos três vencedores, pois dois dos reis estavam com Ethan.
De repente as luzes do galpão foram se acendendo uma a uma. Mesmo a fiação tendo sido queimada, de alguma forma, o pessoal da administração já tinha um plano B para essa situação.
Nick Smith, o instrutor daquela prova, estava de frente para a pequena porção de degraus que levava aos corredores do colégio. Os braços estavam juntos atrás das costas, ele tentava esconder um sorriso estranho. Aquela expressão não parecia um bom sinal.
— Muito bem! — ele exclamou, dando voltas no lugar em que estava. — Estamos todos aqui, ahem. Agora que já sabemos os que foram eliminados e os que permanecerão, vocês devem imaginar que já estão liberados e que tudo isso terminou, certo? Errado. Para os que foram eliminados, há um grande caminho ao meu redor que podem seguir e nunca mais terem que encarar a minha cara. Já para os sortudos que concluíram o desafio, que estranhamente foram apenas três, aguardem com que os perdedores deixem o local.
Os que perderam lentamente foram passando ao lado de Smith e seguindo em frente, todos exibindo decepção nos rostos. Enquanto passavam, o instrutor podia ouvir os pequenos sussurros.
— Que rude… ele não era assim quando mostrou as regras no começo. Ele parecia mais agradável.
— Agora que a maioria está indo embora ele mostrou como é de verdade… um idiota que nos menospreza sendo que sua única função dele foi sentar e observar…
— Que baixo nível ele tem… falando assim com os que perderam…
— Por isso eu prefiro Isabel desde o começo. Ela é rude, mas pelo menos não tem medo de mostrar isso para nós.
Smith riu, mas logo retomou a postura. O grupo dos que perderam se dividiu pelo colégio, para aproveitar seus últimos momentos com os amigos que fizeram.
— Certo, certo… muito bem — Smith pigarreou para limpar a garganta antes de seguir com a explicação. — Todos nós já estamos cientes sobre a derrota daqueles que saíram, e que eles nunca mais retornarão para este lugar. Então, dessa vez eu vou ir direto ao ponto. Agora que concluímos a primeira etapa da prova… daremos início a segunda.
Ethan, Nathan e Kevin foram os únicos que restaram no galpão. O queixo de Kevin caiu, a calmaria de Nathan se expeliu e os olhos de Ethan ficaram mais sérios.
— O que você quer dizer com isso? Somos apenas três, não dá para continuar a prova assim! — protestou Kevin, impaciente.
— A prova não se aplica a apenas vocês três… ela se expandirá, e a proporção será elevada. A partir de agora, o jogo Caça ao Rei dará início de verdade. E se estenderá até o final da última prova de toda a Betrayal Lines…
Aquelas palavras estavam sendo transmitidas nos aparelhos de todos os outros que não estavam presentes, e que não tinham participado da primeira parte da competição.
“Os reis serão repassados todos os dias a partir de hoje. As regras são simples. Os três reis nas mãos dos três vencedores desta competição terão que ser repassados para alguém aleatório. Claro, alguém de confiança. A pessoa que receber o rei precisa mantê-lo consigo… Caso ela decida repassar o rei para outra pessoa antes do dia terminar, a primeira pessoa que passou o rei inicialmente será eliminada. E se a próxima pessoa repassar novamente, o usuário anterior será eliminado. Se o rei não for repassado até o final do dia, a pessoa que o guardou perderá um terço de seus pontos totais. Mas esta regra só se aplica se o rei não for repassado nenhuma vez neste dia. Porém… há uma regra a mais. Se em um dia, nenhuma pessoa for eliminada… todos, sem exceção, perdem 500 de seus pontos.”
Todos os ouvintes ficaram incrédulos, desacreditados daquela regra absurda. Aquilo era cruel, não restariam escolhas, ninguém seria capaz de confiar em ninguém. O jogo de sobrevivência se estenderia para fora do galpão até o final de todas as competições. Eliminaria jogador por jogador lentamente, enquanto a caça infinita ao rei traria angústia aos que possuem menos pontos. Pois a qualquer momento, a qualquer dia, poderiam perder 500 de seus pontos que já eram escassos.
— Isso… isso é um absurdo! Eles não podem fazer esse tipo de coisa com a gente! — protestava Liam Bernard ao lado de Aaliyah. A garota tinha um olhar perdido, arregalado, estava assustada. Não foi capaz de respondê-lo de começo. Ela já não confiava em ninguém desde seus princípios, e agora, com esta prova…
E as pessoas continuaram mostrando sua indignação em diferentes lugares da escola.
Na cantina…
— Quem foi que inventou essa regra?! A gente precisa reclamar! Não podemos perder pontos de graça pelo erro dos outros. E se eu for eliminado sem nunca ter sequer visto esse tal rei?!
Na quadra…
— Só podem estar brincando! E as pessoas que conseguiram poucos pontos até agora?! Os gigantes que estão no topo da tabela estão seguros, mas e quanto ao último?! Perder 500 pontos de graça é desumano.
No pátio…
— Que palhaçada! Temos sorte de não estarmos tão ruins assim, né, Hina? — perguntou Mia, um pouco tranquila sobre a situação. — Pelo menos, eu sei que posso confiar em você… não é?
Hina Takahashi tinha um olhar tão perdido quanto o de Aaliyah, não conseguia raciocinar, montar frases na mente, nem responder Mia com clareza. Esfregava seu anel dourado no dedo com pressa. — Não é…? Hina?
— É… você pode… confiar em mim.
Nathan suspirou, percebendo que as coisas ficariam complicadas principalmente pelo fato de por ser vencedor, ele já começaria com a carta do rei para ser repassada. Kevin chutou as tralhas espalhadas no chão do galpão, pensou que o jogo já estava ganho. Ethan observava o chão, com remorso e angústia. Ergueu o olhar para observar a tabela do resultado final. Os três vencedores, e bem no final da lista, estava aquele nome. “Emma Brown, eliminada.”
Agora tinha o mesmo pensamento de Emma. As pessoas são egoístas, frias, atentas ao desconhecido e ao que parece ser diferente. Pessoas quietas, reclusas, isoladas, são diferentes e únicas, o que pode causar estranhamento e desconforto. Uma criação isolada do mundo exterior, rigorosa, um passado detestável acompanhado de uma ideologia sombria. Se Ethan já não tinha amigos antes, por que os teria agora? Em uma competição onde todos lutam pela sua própria vitória, é uma chance única. Uma prova que mostraria até onde se pode confiar, até que ponto se pode carregar alguém importante até que ela vire um peso nas suas costas. Ou pior, um peso nas costas de todos à sua volta. Mesmo se Ethan ganhasse, alguém torceria por ele no fim? Sabendo que a suposta torcida também correria ao seu lado para alcançar a linha de chegada. Os valores do que é certo ou errado se invertem com a situação, logo, eles não existem? A mesma coisa acontece com amigos… logo…
“Eu estou… sozinho…”
— Você está sozinho? — perguntou David, quando as coisas se acalmaram e Ethan já havia voltado ao dormitório. David Cohen ainda não tinha permissão para sair do quarto. — Nah, isso é coisa da sua cabeça. Deve estar preocupado porque se comoveu com o que Emma te disse. Mas você não está sozinho! Eu estou do seu lado! Acredito que a Aria também esteja!
— É — Ethan se levantou da cama e pulou lá de cima. Ele dormia na calma mais alta da beliche. — Devem ser mesmo.
— Você ainda está preocupado com a Emma? Nunca vi o senhor Kim sentindo tanta empatia assim.
Os dois se calaram com essa frase. Ethan continuou olhando para o tapete, e David sentado na poltrona, virada para a janela. Logo, Ethan deixou seu corpo tombar e se apoiar na parede pelo ombro. David virou a poltrona para olhá-lo de frente. — Sabe que sou seu amigo, não sabe? Você pode confiar em mim. Está preocupado se Aria ficaria irritada quando souber que foi você quem eliminou a melhor amiga dela?
— Na verdade… eu nem tinha parado para pensar nisso.
— Oh! desculpe então, dei mais uma preocupação a você sem querer!
— Tá… — Ethan se desgrudou da parede e começou a dar voltas pelo quarto. — Tanto faz.
— Então! Me fala o que você está sentindo. Você não é o único que entende de sentimentos aqui! Se é que você sabe o que significa isso.
Ethan hesitou em continuar falando alguma coisa, mas ao olhar o rosto esperançoso e redondinho de David se sentiu seguro para poder liberar um pouco do que pensava.
— Eu percebi que… Emma não é tão diferente de mim. Aos poucos as pessoas vão mostrando quem elas são de verdade, o alguém interior que nem mesmo elas conheciam. Muitos agem sem pensar, pois ninguém pode olhar para si mesmo e ter uma visão de fora. Poucos têm noção de seus próprios atos, poucos sabem dos monstros que eles se tornam em certas ocasiões. Você sofreu contra o Joey e o Kevin, e até onde eu vi Joey também parece não saber como ele é por fora. Um interesse egoísta de se mostrar melhor… acompanhar Kevin pois ele se sente inferior a alguém que ele pensava entender e chamar de amigo. E no fim, apenas uma noite foi suficiente para que aqueles dois se tornassem inimigos.
— E… onde esse pensamento todo está te levando?
— Leva à conclusão de que ninguém é amigo de ninguém de verdade. Confiança não existe, é apenas uma vontade movida por egoísmo… A única pessoa que eu realmente tive minha vida inteira… que eu pude confiar… foi Katherine. Como você acha que ela vai se sentir se souber que eu tirei a maior oportunidade da vida da filha dela? Ou então, sendo mais realista… Se Katherine não recebesse o salário que recebe, ela sequer se preocuparia comigo? Estaria ali para me apoiar e… me acolher quando eu pareço angustiado. Ou essa conexão é ligada apenas pelo dinheiro, que caso seja cortado, nossa conexão se cortaria também?
David respirou fundo depois de ouvir toda aquela analogia e se afundou um pouco mais na poltrona.
— Você só tá preocupado com quem vai entregar essa carta sua, né? Você tem a mim. Eu não faria uma coisa dessas com você… só esperar um dia com essa carta para te proteger é moleza. Amanhã eu posso entregar a alguém e…
— Não — Ethan disse como se estivesse finalizando a conversa. Seu olhar ficou um pouco mais frio e ele se dirigiu para sair do dormitório. — Não precisa. Acho que já sei a quem vou entregar.
— Por quê? — David sentiu uma pontada no peito, mais uma vez, seu amigo dando as costas para ele. — Você não confia em mim?
Antes de fechar a porta, Ethan deu apenas uma última olhada dentro do dormitório. Os olhos entristecidos de David como um pequeno bulldog entristecido. Os dois se encararam profundamente, e diferente de Emma, Ethan não sentiu nenhuma empatia dessa vez. Tinha certeza do que estava falando.
— Não. E acho que já sei exatamente para quem vou entregar essa carta…
Ethan fechou a porta do dormitório e olhou para o pátio pelas janelas do segundo andar. Lá embaixo estava Joey e Christopher Santiego, andando juntos. Joey parecia orgulhoso de Christopher, e de longe, dava a entender que estavam tendo uma conversa amigável, o que era até meio estranho de se olhar. — Para alguém que eu sei que não vai me eliminar...
Notas:
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