Volume 1

Capítulo 5: Sem Amanhã Para Nós

"ESTOU TE DIZENDO, ESSE GAROTO PRECISA superar logo o que quer que seja isso. Ele nunca vai fazer amigos de verdade na escola desse jeito."

"Não há necessidade de apressá-lo, querido. Só precisamos ser compreensivos e deixar o Kayato lidar com isso no ritmo que for... confortável para ele."

Enquanto eu me revirava em meio a curtos e rasos períodos de sono, uma lembrança repentinamente invadiu minha mente — de meus pais brigando, se bem me lembrava, na época em que eu estava no ensino fundamental. Eu conseguia ouvi-los gritando um com o outro na sala de estar, mesmo estando no meu quarto.

"Ele não consegue nem andar de trem, pelo amor de Deus! O que vai fazer quando precisar entrar no mundo real e arrumar um emprego?"

"Não precisamos pensar tão longe agora, não é? Além disso, hoje em dia existem muitos lugares onde você pode trabalhar de casa!"

"Ah, por favor! Isso é só para trabalhos empreendedores de meio período ou para um número muito, muito pequeno de posições privilegiadas. Vamos tentar ser um pouco mais realistas, pode ser?"

"Acho que você é quem precisa ser mais compreensivo com o Kayato! Ele está fazendo o melhor que pode, querido."

Que memória horrível de se recordar. Não havia nada que me deprimisse mais do que ouvir meus pais brigando — especialmente por minha causa. Eles discutiam sobre mim e sobre meu futuro. Sim, "futuro" — uma palavra que sempre deixava um gosto amargo na minha boca sempre que era pronunciada. Às vezes, sentia até que seria esmagado pelo peso de todas as implicações contidas naquela palavra odiosa.

Nunca gostei de pensar no futuro. Nem um pouco. Eu já estava sob pressão demais apenas tentando manter a cabeça fora d'água e seguir vivendo no presente.

"Pressão? Não. Você simplesmente está com medo, meu garoto. Não dos seus pais, nem da escola, mas de algo muito maior."

Lembrei-me das palavras do tio Kurehiko.

Medo? Sim, agora eu me lembrava — exatamente o que meu tio estava prestes a me contar naquele sonho. Mesmo quando eu era apenas uma criança, a resposta dele me tocou profundamente. E meus pensamentos não haviam mudado desde então — eu sabia do que realmente tinha medo. Era o mesmo medo que levara o tio Kurehiko a viver como um recluso, e provavelmente o que Akira também estava sentindo.

O futuro.

Eu tinha medo da passagem do tempo. Do que o amanhã poderia trazer. De perder pessoas queridas. De doenças que poderiam piorar. De entrar na faculdade. De conseguir um emprego. De desastres naturais, acidentes, despedidas, envelhecimento, da inevitabilidade da morte e de perder toda a felicidade pela qual lutei na vida — tudo aquilo que um dia me foi precioso. Tudo aquilo que qualquer pessoa temia estava lá, espreitando adiante, talvez até esperando na soleira do amanhã.

E ainda assim, as pessoas sempre falavam do futuro com olhos brilhantes, em tons esperançosos e sonhadores. Provavelmente porque essa era a única maneira que conheciam de seguir vivendo. O futuro tinha que ser brilhante e belo — cheio até a borda com tudo que ousaram sonhar. Só acreditando nisso é que podiam encontrar a felicidade que tanto buscavam, ou pelo menos era o que se dizia. Mas, na realidade, o verdadeiro rosto do futuro era opaco e incerto — algo que ninguém podia conhecer de fato, exceto pela certeza de que deixaria infortúnios pelo caminho.

Contudo, enquanto o tempo permanecesse congelado, estaríamos livres dessa incerteza. Poderíamos seguir em frente sem jamais ter que pensar no que eu faria pelo resto da vida ou na Akira sendo responsabilizada judicialmente por suas ações. Nesse caso, talvez esse timefreeze fosse o que precisávamos desde o início. Talvez essa fosse a nossa salvação.

— Você quer... simplesmente deixar assim, congelado? — disse Akira, franzindo a testa. Fiquei aliviado por ela ao menos não ter explodido comigo apenas por sugerir isso ou rejeitado a ideia de imediato. — Quer dizer, não é como se tivéssemos escolha quando nem sabemos como fazer o mundo voltar a se mover, né?

— Na verdade... acho que talvez eu tenha uma boa ideia de como fazer isso — respondi.

— O quê?! Então por que diabos você não falou nada até agora, seu idiota?! — gritou Akira, se aproximando de mim até ficar cara a cara. Bem, droga. Parece que era com isso que eu deveria ter me preocupado.

— E-Eu sei, me desculpa, tá?! Mas eu juro que só percebi isso há algumas horas, e você estava dormindo, então... é...

Dei alguns passos para trás enquanto tentava me explicar. Akira, que ainda me encarava com os olhos semicerrados, também recuou um pouco.

— Então vamos ouvir, vai — disse ela.

Soltei um suspiro de alívio e comecei a explicar.

— Tá, então, sabemos que eu já passei por pelo menos três timefreezes, certo? Um quando eu estava na terceira ou quarta série, outro na oitava, e agora este, no segundo ano do ensino médio. Eu tentei, com todas as minhas forças, lembrar o que aconteceu logo antes de cada um desses eventos, para ver se encontrava alguma ligação entre eles — e, eventualmente, percebi que todos tinham algo em comum. E eu apostaria que o que aconteceu com você também tem esse mesmo fator em comum.

Akira levou a mão ao queixo, pensativa — até que seu rosto se iluminou, como se tivesse tido um momento de eureca.

— Se sentir no fundo do poço? — ela disse.

— Exatamente — respondi.

Todas as três vezes, eu estava à beira do desespero.

Na primeira, eram as brigas dos meus pais.

Na segunda, o bullying dos meus colegas.

E, desta vez, foi a sensação de estar encurralado e acabar machucando, sem querer, um dos outros alunos do meu grupo na viagem escolar.

Se olhássemos apenas pela superfície, seria até ridículo dizer que vivi um desespero verdadeiro em qualquer uma dessas situações — especialmente se comparado ao que aconteceu com a Akira. Mas para mim, todas foram circunstâncias tão insuportavelmente estressantes que me fizeram sentir como se não quisesse mais continuar vivendo.

— E se sabemos que o desespero é o gatilho — propus —, então faz sentido que só o oposto consiga nos tirar desse fenômeno.

— Tipo... esperança ou algo assim? — perguntou ela.

— Algo assim, é. Pelo menos, é o meu palpite.

— Seu palpite...? Parece bem fraco pra mim...

Akira deixou os ombros caírem, como se tivesse perdido toda a esperança em mim.

Eu tinha quase certeza de que o timefreeze que vivi na infância tinha terminado quando cheguei à porta do apartamento do tio Kurehiko. Naquele tempo, com minha mente mais infantil, provavelmente estava rezando para que ele pudesse me resgatar da montanha-russa de emoções desagradáveis deixada pela briga dos meus pais. Talvez, ao alcançar a porta do apartamento, eu tenha sentido que havia uma luz no fim do túnel, e esse vislumbre de esperança fez o tempo voltar a se mover.

Na segunda vez, eu achei que o gatilho tinha sido conseguir me vingar. Depois de bater nos dois com um taco de metal e fugir da cena... acho que senti uma certa sensação de realização. Ou então, senti como se um peso finalmente tivesse sido tirado dos meus ombros, e essa emoção trouxe o fim do congelamento temporal.

— Mas, seja esperança ou não, estou pensando que provavelmente não é um critério super rigoroso — falei. — Especialmente porque eu consegui sair do congelamento de boas, mesmo ainda sendo criança. Então, acho que não existe um truque especial ou uma técnica pra isso — a menos que seja pura sorte, o que também duvido.

Akira cruzou os braços e ficou murmurando enquanto pensava sobre isso. Ainda não parecia totalmente convencida.

— Mas se é só encontrar uma coisinha pra ter esperança, sinto que já teríamos acabado com esse congelamento, né? Quero dizer, já estamos na estrada há um mês, e tivemos momentos bem legais no caminho.

— Pois é, e é por isso que tô achando que a gente precisa encontrar algo específico pra ter esperança.

— Tipo o quê?

— Tipo... o futuro, por exemplo.

Os olhos de Akira se arregalaram, como se minha resposta a tivesse pego completamente desprevenida.

— O futuro, é...? — repetiu baixinho, enquanto sua expressão ficava cada vez mais conflituosa e ela coçava a nuca. — Droga, odeio admitir, mas parece que você pode estar certo...

Apenas se divertir ou querer que o congelamento acabasse não era a mesma coisa que sentir verdadeira esperança pelo futuro. E embora Akira nunca tivesse escondido o quanto odiava o congelamento e seus inconvenientes, eu não lembrava de ter ouvido ela dizer nada remotamente otimista sobre o que queria fazer quando tudo voltasse ao normal. Parecia que nós dois realmente estávamos na mesma sintonia, pelo menos em relação ao que era mais crucial.

Dito isso, se a condição para acabar com o congelamento era realmente o que eu suspeitava, então sim, parecia um requisito meio fraco, como Akira disse. Mais do que isso, parecia até relaxado demais. Tipo, e se alguém de repente resolvesse mudar de vida bem na frente de um carro parado? Só de pensar no tempo voltando a se mover do nada no meio da estrada me dava arrepios.

— Bom, acho que entendi a essência do que você quer dizer — disse Akira. — Mas... ainda quero um tempo pra pensar. Sobre sua sugestão, quero dizer.

Não podia culpá-la por isso. Definitivamente não era uma decisão a ser tomada de qualquer jeito — decidir entre viver no futuro ou continuar nesse mundo fora do tempo. Ambas as opções tinham consequências sérias, e eu imaginava que a balança não ia se inclinar tão facilmente para um dos lados, pelo menos para ela.

— Justo — falei. — Vamos pensando enquanto caminhamos, então.

E com isso, segui estrada abaixo. Independentemente da escolha dela, era melhor voltarmos a alguma cidade de verdade do que continuar parados ali na frente daquele velho karaokê. Akira não respondeu, mas me seguiu mesmo assim. Depois de caminharmos em silêncio por um bom tempo, ela foi quem quebrou o silêncio com uma história pessoal.

— Quando eu tava no fundamental — começou ela —, eu não sabia nadar nem um pouco. Era a única menina da turma inteira que não sabia. E sempre que tentava, só ficava me debatendo como se estivesse prestes a me afogar. Morria de vergonha só de pensar em ser vista por alguém dentro da piscina. Dá pra imaginar o quanto eu odiava os dias de natação na aula de educação física.

Eu a ouvi atentamente, sem interromper.

— Aí, na quarta série, teve essa prova de natação. A gente tinha que atravessar a piscina de vinte e cinco metros usando o nado crawl pra passar. Se encostasse o pé no chão, tinha que fazer aula extra nas férias de verão. Eu fiquei tão deprimida com a ideia que nem consegui dormir na véspera da prova — só fiquei deitada na cama, torcendo para que o dia seguinte nunca chegasse. Teria sido um sonho se o tempo tivesse parado pra mim naquela noite. Mas, obviamente, o sol nasceu e tive que fazer a prova junto com todo mundo. E não só eu ainda não sabia nadar, como tava ainda pior do que o normal, porque não tinha dormido nada.

Akira soltou um suspiro leve antes de continuar.

— No fim das contas, paguei o maior mico na frente de todo mundo e ainda fui inscrita nas aulas de verão. Pensando bem agora, sinto que tudo que eu precisava naquela época era de mais tempo. Tempo para praticar sozinha, sem ninguém me olhando. Tempo para dormir bem na véspera. E tempo para me preparar mentalmente e entrar no clima pra prova. Mas eu não tive tempo pra nada disso.

Nesse ponto, Akira parou de andar. Eu também parei e me virei para ela.

— E é exatamente assim que me sinto agora. Como se eu só precisasse de mais tempo. Sei que pode ser só uma forma de adiar o inevitável... mas sinto que, se eu tiver um tempo pra me preparar de verdade, talvez até uma desastrada sem esperança como eu consiga encontrar coragem pra encarar esse mundo cruel cheio de mentiras e dor, sabe? Então acho que o que tô tentando dizer é... É. Acho que posso apoiar essa sua proposta.

Assim que ela disse essas palavras, uma onda quente de alegria brotou no meu peito. Eu sabia que não era exatamente certo ficar feliz por estar mandando o resto do mundo para o inferno, mas, de qualquer forma, aquilo me fez sentir que eu e Akira tínhamos criado um vínculo ainda mais forte. Estávamos juntos nessa — e para valer.

— Obrigado — falei. — Fico muito feliz em ouvir você dizer isso.

Akira deu um leve sorriso em resposta, e então virou-se para a estrada à frente.

— Então... o que a gente faz agora?

— Uhhh, para ser sincero, eu ainda nem tinha pensado nisso. Mas acho que podemos continuar seguindo em direção à casa do meu tio, só por ir mesmo — só que agora não precisamos mais ter tanta pressa.

— Então a gente pode ir bem de boa agora, é isso? — perguntou ela.

— Exatamente — respondi, assentindo animadamente.

De repente, me senti nervoso e empolgado ao mesmo tempo, como se finalmente tivéssemos sido libertados do feitiço chamado "tempo" que nos mantinha presos. A partir de agora, poderíamos fazer o que quiséssemos, pelo tempo que quiséssemos — e ninguém poderia nos julgar ou impedir. Mas, acima de tudo, não precisaríamos mais pensar no futuro... e não existia sensação melhor do que essa.

— Ei, nesse caso... — disse Akira. — Tem um lugar que eu queria dar uma olhada, se você não se importar.

— Ah, é? Onde seria? — perguntei.

Akira corou e coçou a bochecha, envergonhada.

— Bom... Você gosta de fontes termais, né?

*

 

E assim mudamos nosso percurso e seguimos para o oeste, rumo a uma famosa vila de fontes termais aos pés das Terras Altas de Nasu — a vila Nasu Onsen. Levou um dia inteiro de caminhada só pra chegar lá nessa pequena "paradinha". Foi uma subida puxada o tempo todo, com uma inclinação bem íngreme, e acabamos suando bastante. Mas quanto mais subíamos, mais as estradas de terra se transformavam em caminhos pavimentados, ladeados por antigos prédios de madeira. Eventualmente, vimos um riozinho atravessando a pequena comunidade montanhosa, com pontes elegantes e antigas cruzando-o.

— Oh, olha só. Tenho quase certeza de que já vi esse lugar na TV — comentei, apontando para um grande hotel de madeira especializado em fontes termais, que parecia ainda mais velho do que os outros. — Que tal começarmos por aqui?

Akira aprovou com um aceno, então nós dois entramos no prédio.

Resumindo a história: fizemos a escolha certa. Não sei muito sobre a qualidade da água ou os efeitos minerais e tal, mas a vista do banho ao ar livre nos fundos era simplesmente de tirar o fôlego. A paisagem de outono — quilômetros e mais quilômetros de natureza intocada, com árvores em tons de vermelho, amarelo e verde — já fazia a caminhada inteira valer a pena.

Depois de um longo e revigorante banho, voltei para o saguão. Lá encontrei Akira sentada junto à janela, olhando para fora enquanto se abanava com um leque tradicional. Eu nem sabia de onde ela tinha tirado aquilo.

— Uau, você terminou rápido — comentei.

Ela parou de se abanar e olhou pra mim.

— É, queria sair antes de ficar completamente satisfeita. Já que viemos até aqui, quero visitar o máximo de lugares que puder.

— Heh. Parece que você tá determinada a aproveitar ao máximo... quer dizer, todo esse zero ienes que a gente gastou.

— Ah, qual é. Nem é como se você estivesse pagando também, seu bobão.

— Tá bom, ponto pra você — falei, sentando ao lado dela.

Akira colocou o leque na mesinha de centro em frente a nós, levantou-se e foi até um turista que encostava casualmente na parede, lendo um guia de viagens. Sem cerimônia, arrancou o guia das mãos dele, como se fosse um jornal gratuito, e começou a folhear as páginas. Logo soltou um grito de surpresa.

— Nossa, olha só! — exclamou. — Tem até banho misto aqui perto!

— Oh, interessante — comentei. — Sempre achei que isso só existia no meio do mato, mas aqui nem é tão afastado assim.

Akira se virou para mim com um sorriso provocativo.

— Já que estamos aqui... quer tentar?

— B-Bwuh?!

— Hahaha! Caramba, você ficou vermelho num instante!

Akira agora ria feito uma hiena, enquanto eu sentia meu rosto corar cada vez mais. Eu odiava o quanto ela conseguia me provocar com facilidade. Decidi tentar contra-atacar pela primeira vez.

— O-O que você quer dizer? Eu topo se você topar...

— Nah, deixa disso. Não tenta bancar o durão. Eu sei que você não é desse tipo.

— Não, acho que quem tá se fazendo de espertinha é você. Aposto que só sugeriu isso porque achou que eu ia amarelar.

Akira fez uma careta de indignação, empinou os lábios num beicinho irritado, devolveu o guia ao pobre turista e marchou de volta até mim para um verdadeiro duelo de olhares.

— Ah, é? — desafiou. — Então tá combinado. Vamos nessa.

Espere... Eu acabei de assinar minha sentença de morte?

Já estava sentindo as pernas bambas, mas sabia que se desistisse agora, Akira nunca me deixaria esquecer. Então me levantei e pedi que ela me guiasse. Assim, nós dois saímos do prédio e seguimos em direção à pousada com banho misto.

O caminho foi bem mais longo do que eu esperava. Tivemos que andar bastante por estradinhas estreitas e sinuosas pelas montanhas. Parecia que agora estávamos literalmente fazendo uma trilha no meio do nada, a ponto de me perguntar se estávamos mesmo no caminho certo. Mas, depois de mais de uma hora de caminhada, finalmente chegamos à pousada tradicional que Akira tinha visto no guia. O lugar era tão antigo que devia ter sido construído no final do século XIX.

Havia até uma pequena fonte termal do lado de fora do prédio, como uma espécie de piscina ao ar livre. E, pelo que parecia, não havia mais nenhum outro cliente por ali.

— É aqui o banho misto? — Perguntei.

— Bom, se não me engano... — disse Akira, inclinando a cabeça de um lado pro outro enquanto tentava se lembrar — o guia dizia que tinham dois tipos de banho misto. A diferença era que no de fora tinha que usar roupa de banho, mas no de dentro... vale tudo.

— Ah, entendi...

— E-Então, o que a gente tá esperando? Vamos logo.

Ah, meu Deus... N-Nós vamos mesmo fazer isso?!

Meu coração parecia que ia saltar do peito, mas mesmo assim tirei os sapatos e entrei no prédio atrás dela, apesar do meu bom senso. O interior parecia saído de outra época, cheio de móveis antigos e fotografias em preto e branco nas paredes. O exterior já dava uma ideia, mas entrar ali era como ter viajado de volta no tempo, direto pro Japão pré-guerra.

Chegamos a um vestiário no fim do corredor, e aparentemente a área de banho ficava logo adiante. Akira e eu ficamos parados ali, imóveis, como se houvesse uma barreira invisível nos impedindo de seguir em frente. Nenhum de nós disse uma palavra. Lancei um olhar furtivo para Akira pelo canto do olho, tentando captar sua expressão — e me surpreendi ao ver um leve traço de apreensão em seu rosto. Isso por si só já foi o suficiente para me fazer desistir imediatamente daquele estúpido jogo de resistência.

— Sabe de uma coisa? Melhor a gente não fazer isso — falei.

— Não — respondeu Akira. — Nós vamos.

— Mas…

— Com roupa — disse ela, começando a andar. — Vamos entrar de roupa.

— Uhhh... T-Tem certeza de que quer fazer isso?

De onde estava vindo essa teimosia estranha? Ela realmente estava sugerindo que entrássemos na água vestidos, como crianças envergonhadas numa piscina pública? Não era uma baita gafe num onsen natural? E será que dava pra chamar isso de "banhar juntos" se estivéssemos completamente vestidos?

Apesar de todas essas dúvidas pairando sobre minha cabeça, segui Akira até o vestiário. Ela se sentou num banco e começou a tirar as meias. Meu coração até pulou uma batida — mas foram as únicas peças de roupa que ela tirou.

Resolvi tirar minhas meias também, amassei e enfiei no bolso por enquanto.

Por fim, entramos na área de banho. Felizmente, não havia mais ninguém no local. O ambiente era meio escuro, e tanto o chão quanto a banheira eram feitos de concreto cru e simples. Havia uma grande máscara de tengu pendurada na parede como decoração. Enquanto eu ainda estava ali, meio impressionado pela atmosfera opressiva do lugar, Akira já enrolava as barras da calça. Pegou um balde de lavagem próximo, jogou um pouco de água quente nos pés para aquecê-los e enxaguá-los, e depois mergulhou os dedos dos pés na banheira.

— Ah, não dá — disse ela. — É muito fundo. Vou molhar a calça.

Imediatamente, puxou o pé para fora da água, depois se agachou à beira da banheira e apenas enfiou as mãos na água quente.

Sério mesmo...? Era pra isso que a gente tinha vindo até aqui?

— Vamos, Mugino — chamou Akira. — Vem aqui.

— Uh, o-ok...

Agachei-me ao lado dela e também mergulhei a mão na água, como se estivesse testando a temperatura. Parecia um pouco mais quente do que a de uma banheira comum.

— Pronto — disse Akira. — Agora a gente pode tecnicamente dizer que tomou banho junto, né?

Não sei se eu iria tão longe assim... Mas, se era nisso que ela queria acreditar, não via motivo para contrariá-la.

— É... Até que é gostoso, na verdade.

Assim que disse isso, a expressão de Akira de repente ficou tímida.

— Ei, Mugino. Você estava falando sério quando disse que não gosta de garotos, né?

Essa era uma pergunta que ela já tinha feito no primeiro dia da nossa viagem. Eu não sabia por que ela precisava confirmar isso agora, mas apenas assenti.

— Tenho que admitir, às vezes até esqueço que você é um menino...

— Hm. Não sei bem como responder a isso...

— Então, me diz... O que você acha de mim?

Olhei para ela, surpreso; agora sim eu estava realmente confuso. Essa era uma pergunta ainda mais difícil do que a anterior. Levou alguns segundos até Akira perceber as possíveis interpretações do que tinha dito. Seus olhos se arregalaram e ela soltou um pequeno suspiro de surpresa.

— Ah, desculpa! — disse ela. — Não quis dizer isso de um jeito estranho nem nada! É que, sei lá... fiquei curiosa para saber como você me enxerga, só isso.

Heh. O clássico recuo atrapalhado.

O rosto dela começava a ficar visivelmente vermelho, apesar de só suas mãos estarem na água. Mesmo assim, achei que ela merecia uma resposta sincera, então pensei bem antes de falar.

Obviamente, já considerava Akira minha amiga — e tinha certeza de que ela também me via assim. Mas, se ela queria saber o que eu sentia além disso, a pergunta era outra. Ela era uma garota atraente, e talvez houvesse até alguns sentimentos românticos surgindo ali. Só que não dava para dizer que a via como minha namorada ou algo assim.  Havia uma palavra que parecia mais apropriada para definir nossa relação. Parceiros? Talvez... mas também podia ser facilmente mal interpretado. Se eu tivesse que colocar em termos um pouco mais específicos...

— Acho que te vejo como... uma espécie de camarada de batalha, se é que isso faz sentido — respondi.

— Tipo... companheira de guerra...? — disse Akira. — E contra o que a gente tá lutando?

— Sei lá... Contra a realidade, talvez?

Os olhos de Akira se arregalaram como se eu tivesse a pego de surpresa — mas logo ela se recompôs e assentiu, pensativa.

— Entendo, entendo... Uma visão interessante, suponho — disse ela. — Mas, hmmm... é, desculpa. Não consigo te dar mais do que um D de média nessa resposta.

Ai. Ela era uma professora bem exigente.

— Desculpa, professora. Qual seria a resposta certa, então?

— Descobre sozinho, seu idiota — respondeu ela, jogando água em mim.

*

 

Acabamos passando cerca de três dias na vila de Nasu Onsen, vagando sem pressa e explorando os vários estabelecimentos. Depois de termos aproveitado bastante os banhos termais, voltamos para a estrada e seguimos para o sul, rumo à cidade de Utsunomiya — que eu estava visitando pela primeira vez na vida, apesar de não ser tão longe assim de Tóquio. A cidade toda transmitia uma sensação tranquila e descontraída, talvez por causa do grande rio que a cortava bem no meio. Só caminhar pela avenida, admirando os prédios modernos e os condomínios à beira do rio, já era uma visão bem agradável.

Mas nosso passeio calmo foi interrompido quando Akira avistou algo interessante e soltou um grito animado.

— Ei, olha! Tem uma pista de patinação ali na frente!

Segui seu olhar e, de fato, havia uma grande placa pendurada num dos prédios com os dizeres UTSUNOMIYA ARENA DE GELO.

— Quer dar uma olhada? — perguntou Akira, já se adiantando na direção da pista. Parecia que ela realmente estava com vontade de patinar no gelo. Pensando bem, ela já tinha comentado que, no colégio, eles costumavam ter aulas de educação física na pista de patinação, não era? Talvez fosse o sangue do norte dela chamando por um gostinho de casa.

Quando chegamos ao rinque de patinação, ele não parecia nada diferente de um ginásio normal por fora. Ao entrar no prédio, nos deparamos com algumas máquinas de ingressos e um balcão de recepção, atrás do qual havia prateleiras cheias de patins de gelo disponíveis para aluguel.

— Me diga qual é o seu tamanho — disse Akira. — Vou pegar um par pra você.

Eu disse meu número de calçado, e ela pulou o balcão, começando a procurar nas prateleiras. Em pouquíssimo tempo, ela já estava de volta com dois pares de patins nas mãos. Isso ou era uma prova da ladra eficiente que ela se tornara durante esta viagem, ou simplesmente mostrava o quanto ela estava animada para fazer isso comigo.

Com os patins em mãos, seguimos até a área de patinação — onde fomos imediatamente atingidos por uma onda gelada de ar congelante, como se alguém tivesse aberto a porta de uma geladeira gigante. Fiquei um pouco surpreso com o quanto estava frio. A maioria das outras pessoas presentes naquela manhã de terça-feira eram famílias com crianças pequenas.

Akira sentou-se em um banco próximo à pista e começou a calçar seus patins. Eu a imitei, observando para entender como amarrá-los corretamente.

— Estão bem firmes? — perguntou ela.

— Acho que sim — respondi.

— Deixa eu ver.

Akira se inclinou de onde estava sentada para examinar meu trabalho. Nesse momento, tive uma rápida visão de seu sutiã — o que me deixou tão envergonhado que desviei o olhar na hora.

— É, parece bom o suficiente pra mim — disse ela. — Vamos lá.

Akira pisou no gelo e imediatamente começou a patinar com facilidade. Enquanto isso, eu fui me arrastando lentamente para a pista, apoiando-me o tempo todo na mureta. Mas, uma vez lá, percebi que era surpreendentemente fácil me manter de pé, então tentei soltar a mão do corrimão.

— Uou, o quê...?!

M-Meu Deus! É tipo duas vezes mais escorregadio do que eu imaginava!

Arranhei as lâminas dos patins no gelo enquanto me agarrava à parede como se minha vida dependesse disso. Eu definitivamente precisava de mais prática antes de conseguir andar sozinho.

— Vem um pouco mais pra cá! — chamou Akira do centro da pista. Ela estava parada no gelo como se fosse a coisa mais fácil do mundo.

— N-Nem pensar, não consigo — respondi. — Tá escorregando demais!

— Você só tá tensionando o corpo. Tenta deixar o impulso fazer o trabalho por você.

— Não sei se é uma boa ideia... mas tá bom...

Resolvi tentar mais uma vez. Empurrei-me suavemente da parede, deixando-me deslizar levemente sobre o gelo, como Akira sugeriu. De fato, senti-me mais estável em pé assim — exceto pelo pequeno detalhe de que agora eu não sabia como parar.

— E-Ei, espera aí! — gritei. — Eu nem tô fazendo nada e ainda tô deslizando! Será que essa pista é inclinada?!

— Óbvio que não, bobão. Você vai continuar se movendo enquanto o seu centro de gravidade estiver pra trás.

— Sério? Mas como isso faz sentido?

— Ou melhor... será que era pra frente? Ih, agora esqueci...

Enquanto Akira inclinava a cabeça, pensativa, eu perdi o equilíbrio e caí de bunda no gelo. Saí me arrastando de volta para a borda da pista, decidido a nunca mais soltar a parede.

— Uau, você é um caso perdido — disse Akira. — Deixa que eu te mostro como se faz.

Dito isso, Akira se impulsionou e começou a dar voltas rápidas pela pista.

Caramba, ela é rápida! E, ainda assim, seus movimentos eram tão fluidos e graciosos que mal dava pra acreditar que ela era só uma patinadora casual. Seu corpo se inclinava tanto para frente que eu não entendia como ela não caía. Ela deu uma grande meia-volta na pista antes de começar a desviar dos outros patinadores, como se estivesse numa prova de slalom.

— Nossa... — murmurei, admirado. E, por um instante, nossos olhos se encontraram. Ela sorriu para mim, acelerou ainda mais e começou a patinar de costas. Eu nem sabia que isso era possível! Então ela levantou uma perna, bateu forte no gelo e saltou no ar, girando uma vez antes de aterrissar com graça. Patinou de volta até onde eu estava, pôs as mãos na cintura e estufou o peito.

— Heh-heh-heh... E aí, o que achou?! — disse ela, toda orgulhosa.

— Uau, você parece uma patinadora profissional! — exclamei. — Você é tão boa que acho que nem dá para aprender só olhando! Você fez aula ou algo assim?

— Que nada, foi o professor de educação física que ensinou a gente na escola primária. A maior parte do que eu sei, aprendi praticando depois da aula. Até me surpreendi de ainda lembrar de tudo depois de tanto tempo. Acho que é talento natural, né?

— É... nem dá para discordar...

Eu estava tão impressionado que só conseguia elogiar enquanto ela se gabava.

— Com essa habilidade toda, você devia tentar ir pras Olimpíadas!

— Nem pensar. Na época já tinha um monte de gente melhor que eu. E custa muito caro investir para virar profissional de verdade.

— Sério? Nem imaginava...

— Eu só quero patinar por diversão, e isso já tá ótimo. Mas você vai ter que começar a praticar de verdade se quiser parar de abraçar a parede, viu?

Dizendo isso, Akira voltou a patinar despreocupadamente pela pista.

Obviamente, tínhamos o dia inteiro para praticar — mas eu já percebia que aquilo não era a minha praia. Eu sabia que tinha reflexos horríveis, mas não esperava ser um desastre completo. Pelo lado positivo, pelo menos tinha aprendido meu nível real de habilidade e só me humilhei na frente da Akira.

Não dava pra dizer que eu estava me divertindo, mas ver o jeito animado e feliz com que ela patinava já fazia valer a pena ter vindo.

Resolvi continuar praticando um pouco, sem atrapalhá-la. Fui me arrastando lentamente pela parede, puxando meu corpo mais com as mãos do que com os pés. Não parecia que eu estava melhorando em nada. Era realmente difícil.

Akira, percebendo meu esforço patético, deslizou até mim — trazendo nas mãos, curiosamente, um tripé de câmera.

— Onde você conseguiu isso? — perguntei.

— Estava largado no banco ali. Aqui, segura — disse ela, estendendo a extremidade das pernas do tripé dobrado. Não precisei que ela repetisse; agarrei-o imediatamente. — Achei que podia te dar uma carona grátis. Só não solta, tá?

— Uou! — exclamei quando Akira deslizou para trás — e, como eu estava segurando o tripé, fui arrastado junto. Meu corpo enrijeceu enquanto eu me agarrava com todas as forças em uma posição agachada, e ela rapidamente ganhou velocidade. O ar frio roçava minhas bochechas, já coradas depois da minha sequência de quedas anteriores. Na verdade, estava bem agradável — tão agradável que, depois de um tempo, meu corpo relaxou naturalmente. Quando levantei a cabeça, vi Akira me encarando com um sorriso vitorioso. De vez em quando, ela olhava por cima do ombro para verificar a direção em que seguíamos, ajustando o trajeto sem diminuir o ritmo.

De repente, uma fantasia estranhamente específica passou pela minha mente — nós dois de mãos dadas, girando e girando num grande campo cheio de flores. Parecia cena de um conto de fadas, e não pude evitar abrir um sorriso com a imagem.

— Está se divertindo? — perguntou Akira.

— Sim. Ou pelo menos, acho que sim — respondi.

Ela sorriu.

— Que bom. Quando melhorar um pouco mais, juro que você vai acabar amando patinar também. Só precisa se esforçar e praticar.

— Ok — respondi, assentindo. — Eu acredito em você.

Segurei o tripé firmemente com as duas mãos. Era um pensamento bobo, mas eu podia jurar que sentia um leve calor do corpo de Akira através das pernas de plástico robustas.

*

 

Depois de patinar por várias horas, estávamos completamente exaustos. Quando saímos da pista, meu relógio já marcava sete da noite. Akira e eu concordamos em ficar em um hotel um pouco melhor naquela noite, então procuramos até encontrar um que tinha um restaurante estilo buffet anexo. Por sorte, ele ficava aberto o dia todo, então mesmo àquela hora havia bastante comida para escolher.

Nossos apetites falaram mais alto e deixamos de lado toda formalidade, comendo como se não houvesse amanhã. Comi um bife, sopa, um flã de ovo com frango, pizza, macarrão gratinado e vários tipos de sobremesas para encerrar. Ao final do banquete, estávamos ambos abarrotados.

Akira se recostou na cadeira e esfregou a barriga com satisfação.

— Tô tão cheia... Faz tempo que não como tanto assim...

— É, eu também — disse. — Ugh... Na verdade, estou me sentindo meio estufado...

Subimos para procurar quartos para passar a noite, ambos curvados para frente de tanto desconforto, como se fôssemos desabar a qualquer momento. Por sorte, achamos dois quartos vizinhos disponíveis. Entrei no meu e desabei na cama, caindo num breve coma alimentar. Doloroso, sim, mas era bom estar vivo com a barriga cheia.

Depois que meu estômago se acalmou um pouco, sentei e peguei um caderno que havia "pegado emprestado" de uma loja de conveniência dias atrás. Fui até a escrivaninha no canto do quarto, peguei a caneta do hotel e comecei a rabiscar algumas palavras na página. Mas, poucos minutos depois, ouvi uma batida na porta. Deixei a caneta de lado e fui atender. Ao abrir, dei de cara com Akira no corredor, segurando um baralho na mão.

— Ei! — disse ela. — Achei isso lá na recepção... Pensei que a gente podia jogar alguma coisa, que tal? Hehehe...

A risadinha tímida dela — assim como todas as suas outras manias fofas e inocentes que surgiam de vez em quando — era tão adorável que quase fazia meu coração derreter. Eu era muito fraco para essas coisas.

— C-C-Claro! — disse. — Pode entrar.

— Valeu.

Bastaram poucos passos para Akira notar o caderno aberto na escrivaninha.

— Ah, você estava escrevendo alguma coisa?

— É, mais ou menos — respondi, voltando a me sentar na cadeira enquanto Akira se sentava na cama. — Pensei que, como talvez a gente perca as memórias depois que o timefreeze acabar, seria bom deixar um registro escrito da nossa viagem. Assim, mesmo que a gente esqueça, vamos saber o que aconteceu.

— Ah, é verdade, você comentou que queria fazer isso — disse Akira, enquanto tirava as cartas da caixa e começava a embaralhá-las.

— Nossa, é meio deprimente pensar que vamos esquecer tudo isso, né?

— É. É sim.

O silêncio desconfortável tomou conta do quarto.

Droga. Não era minha intenção acabar com o clima. Nem queria puxar um papo tão pesado agora. Precisava reverter isso de algum jeito.

— Bem, não é como se soubéssemos com certeza que vamos esquecer — falei. — Pensa nisso só como um seguro extra. Você também podia escrever um pra você, sabia? É até divertido.

— Hm. Talvez eu tente — disse ela.

— Tenta, sim.

Akira se inclinou sobre meu ombro para espiar o caderno.

— É bom você estar me descrevendo como alguém legal aí, viu?

— Tô só escrevendo como as coisas aconteceram, na real. Agora mesmo tô na parte em que a gente passou a noite naquela escola primária... e você encostou no meu braço.

— O quê?! Você colocou isso?! Vai fazer eu parecer uma pessoa horrível pro seu "eu" sem memória!

— Relaxa. Já escrevi muita coisa boa sobre você também.

— Vo-você escreveu? Ah... Então tá bom. Continua assim, então...

Fechei o caderno e fui sentar na cama com ela. O quarto era pequeno, então a cama era o único lugar com espaço suficiente para jogarmos cartas. Até podíamos ter ido para o saguão ou outro lugar, mas Akira não parecia se importar.

Distribuímos as cartas sobre a cama e começamos jogando algumas rodadas de Speed. Depois passamos para Blackjack, Cheat, Memória, Pôquer — praticamente todos os jogos de cartas que conseguíamos lembrar as regras, jogamos pelo menos uma vez.

— Hahaha! Parece que essa campeã aqui ganhou de novo! — Akira se gabou depois de uma rodada de Presidente em que ela realmente me humilhou. Como perdedor, agora era meu trabalho embaralhar o baralho. Enquanto cortava e embaralhava as cartas, num movimento que já me era dolorosamente familiar depois de tanto tempo, olhei para cima e vi que Akira me observava.

— Q-Que foi? — perguntei.

— Nada, só reparei que seu cabelo ficou bem comprido — disse ela. — Não que já não fosse bem comprido quando a gente se conheceu, claro.

— Ah, é… Acho que ficou mesmo, né? Meio que deixei crescer sem me preocupar muito — respondi, largando o baralho de cartas e começando a mexer na minha franja. Ela já caía sobre meus olhos quando começamos nossa jornada, mas agora estava tão longa que quase tocava a ponta do meu nariz. O que fazia sentido — obviamente, o cabelo continuaria crescendo se eu não o cortasse, e já fazia cerca de um mês desde que saímos de Hakodate.

— Aliás, isso significa que você não se importa que mexam no seu cabelo?

— Hmmm… Eu diria que é meio uma área cinzenta. Com certeza não gosto que fiquem acariciando ou algo assim, mas se for só encostar nas pontas ou coisa parecida, não é tão ruim.

— É mesmo… Poxa, fiquei até com pena do seu cabeleireiro.

— Ah, eu não vou ao salão.

— Hã? Ahhh, desculpa. Barbearia, então?

— Er… também não tenho barbeiro.

Akira inclinou a cabeça, curiosa.

— Ué, então como você corta o cabelo?

Parte de mim queria ser sincero para que ela pudesse me conhecer melhor, mas ao mesmo tempo, sentia medo dela se afastar por causa disso. Era uma disputa acirrada, mas no final, a vontade de contar venceu, ainda que por pouco.

— Hã, ok… — comecei, hesitante. — Eu ia ficar muito agradecido se você prometesse não exagerar ou achar estranho, tá?

— P-Por que esse clima todo sério? — perguntou Akira, se endireitando na cama. — É algo tão grave assim?

Meu coração batia muito mais rápido do que deveria. Minha boca estava seca e minhas mãos tremiam. Eu estava ainda mais nervoso do que quando sugeri que deixássemos o tempo congelado. Mas agora ela tinha me encurralado, e não havia como voltar atrás. Me preparei para o pior.

— A verdade é que… eu só deixo a minha mãe cortar meu cabelo — confessei.

— Ah, é…? — disse Akira — e então ficou em silêncio por alguns instantes. — … Espera, é só isso?

— S-Só isso, sim.

— Poxa, pra quê fazer esse drama todo, então? — disse ela, desabando como se essa fosse a maior anticlímax do mundo. — Quem liga se sua mãe corta seu cabelo? Além do mais, é econômico, né? Não gasta dinheiro.

Fiquei meio confuso. Não era a reação que eu esperava.

— É, mas… tipo, eu tô no ensino médio. Ninguém mais deixa a mãe cortar o cabelo nessa idade… a não ser que seja um completo perdedor.

— Você acha? Tipo, pode até não ser o mais comum, mas também não vejo qual o problema. Na real, a maioria dos caras do time de beisebol da minha escola ainda deixa os pais rasparem a cabeça deles.

— Ok, mas acho que isso é meio diferente.

— Diferente como?

— Eu… não sei explicar direito. Só é diferente.

Enquanto eu insistia sem dar uma explicação, Akira fez uma careta de irritação, claramente frustrada com a minha teimosia.

— Tô falando sério, não é nada pra se envergonhar — disse ela. — Bem melhor do que ter uma relação horrível com os pais, isso sim.

Eu também não diria que tinha uma relação lá muito boa com eles… Mas, de qualquer forma, eu não sabia como responder. Concordar ou discordar não parecia certo. Ainda assim, eu estava feliz por ter contado para ela — de verdade. E feliz que ela era a pessoa com quem eu estava viajando. Tive sorte de encontrar alguém que não desse a mínima para quem cortava meu cabelo, muito menos me julgasse por isso.

— Então, se é a sua mãe, tudo bem, né…? — murmurou Akira, antes de seus olhos brilharem de esperança. — Você acha… que eu poderia tocar no seu cabelo também?

— O quê, tipo… agora?

— É, ué! Não tem hora melhor do que agora, né? — disse Akira, animada.

Eu tinha que admitir: ela me colocou numa situação bem delicada. Minha condição não escolhia quem podia ou não me tocar. Ainda era extremamente desconfortável quando minha mãe cortava meu cabelo, mas era algo que eu sabia que precisava suportar de vez em quando. Não era como se eu não me incomodasse.

Mas, se fosse a Akira, talvez…

Na remota possibilidade de eu não sentir tanta resistência com ela, isso poderia até servir como um primeiro passo para, aos poucos, superar minha condição — com a ajuda de alguém em quem eu confiava.

Engoli em seco e assenti.

— Tá bom, pode tentar.

— Beleza. Se prepara, tá?

Akira se inclinou para frente, e eu ouvi as molas da cama rangendo sob nós, enquanto meu corpo inteiro endurecia como uma estátua.

— Ok, hããã… Vamos ver aqui… — disse Akira, parecendo indecisa sobre onde ou como deveria tocar meu cabelo para não me deixar desconfortável.

Achando que talvez essa posição não fosse a melhor para evitar que ela encostasse na minha pele, inclinei a cabeça para frente, como numa reverência, e minha franja caiu longe da testa. Akira estendeu a mão lentamente — e antes mesmo de me tocar, minha testa já parecia estar pegando fogo. Foram apenas alguns segundos de tensão, mas pareceram minutos.

Finalmente, seus dedos chegaram perto o suficiente para tocar meu cabelo… e ela acariciou levemente minha franja.

M-Meu Deus… Meus braços já estão começando a coçar!

Era como se ela estivesse literalmente caminhando na linha entre fazer cócegas e provocar um desconforto físico. Eu me sentia em agonia, rezando para que aquilo acabasse logo.

— Poxa, seu cabelo é mais sedoso que o meu até — disse Akira. — Isso me irrita um pouco, sabia?

Ela começou a brincar mais livremente com a minha franja — amassando, enrolando nos dedos, puxando de leve. E então, aos poucos, foi tocando não só a franja, mas outras partes do meu cabelo, enquanto eu sentia meus receptores táteis em alerta máximo e me agarrava à última gota de paciência.

Até que, de repente, os dedos de Akira tocaram o meu couro cabeludo. Num reflexo, recuei com força e bati na mão dela. O estalo seco ecoou pelo quarto do hotel. Os olhos de Akira se arregalaram de surpresa — e os meus também. Ela ficou com a mão suspensa no ar, exatamente onde tinha levado o tapa.

Ficamos completamente em silêncio. Ela me encarava, e eu a encarava de volta. Pela primeira vez, parecia que o tempo tinha congelado nós dois junto com o resto do mundo.

Demorou alguns segundos até eu finalmente recobrar a consciência.

— Ai, meu Deus! Me desculpa! — gritei, me desculpando de forma tão enfática que parecia que eu ia me ajoelhar. — N-Não foi culpa sua! Foi só um reflexo, eu juro!

— Não, foi totalmente culpa minha. Acho que me empolguei demais. Desculpa mesmo...

Ela baixou a mão de volta para o colo, tentando ao máximo parecer calma e serena, apesar das nuvens escuras de melancolia que eu conseguia ver se formando como uma tempestade em seus olhos. A culpa e o ódio que senti de mim mesmo ao vê-la daquele jeito foram tão esmagadores que achei que minhas costelas fossem ceder e perfurar meus pulmões. Mas, pior do que me sentir horrível por ter afastado a mão da Akira, foi perceber que nem mesmo ela — a pessoa para quem eu havia aberto meu coração como nunca antes — conseguia quebrar essa maldição. E essa realidade era tão cruel que parecia um soco no estômago.

— Eu realmente achei que, se fosse com você, talvez eu conseguisse... — disse.

O desespero tomou conta de todo o meu corpo. Eu ia ser assim até o dia da minha morte, não ia? Nunca conheceria o calor de outro ser humano, muito menos poderia pegar sua mão e compartilhar a vida juntos. Estava condenada a morrer sozinho.

— Eu genuinamente me odeio por isso, sabia...? Tipo, o que foi que eu fiz para merecer viver uma vida assim?

— Mugino...

Mordi o lábio. Eu deveria saber — aliás, achava que já tinha desistido de melhorar anos atrás. Mas agora, aqueles míseros fiapos de esperança que eu ainda guardava no fundo do coração tinham se transformado em agulhas afiadas que se espalhavam pelo meu peito.

— Me desculpa, Iguma-san. Eu não queria te machucar... — Essas foram as últimas palavras que consegui dizer antes de afundar num poço de autodepreciação.

— Não se preocupa comigo. Eu prometo que não levei para o lado pessoal — disse Akira.

Suas palavras eram como um cobertor macio sendo cuidadosamente colocado sobre todo o meu corpo.

— Eu sei que você chama isso de "condição", como se fosse uma doença horrível — ela continuou. — Mas se eu não soubesse que você não podia tocar em outras pessoas, eu nunca teria me sentido confortável em fazer essa viagem com você, ainda mais depois do que aconteceu comigo. E eu sei que provavelmente é meio insensível da minha parte dizer isso, já que obviamente é uma grande insegurança sua e algo que te causou muita dor. Mas acho que só queria dizer que ser você mesmo nem sempre é algo ruim... pelo menos pra mim.

Akira sorriu para mim.

— Então não sinta que precisa mudar. Tem coisas que a gente simplesmente tem que aprender a viver, sabe? Você é ótimo do jeito que é. Mas, se você quiser mesmo tentar superar isso... eu adoraria te ajudar, a hora que você quiser. Não me importo se for difícil no começo, nem se você reagir de maneiras que não queria. É só dizer a palavra, e eu estou aqui para você.

Seu sorriso era abrangente. Acolhedor. Perdoador. Era quente. E gentil. Mas, acima de tudo, dolorosamente agridoce.

— Obrigado, Iguma-san.

— Ah, não precisa agradecer — respondeu Akira. Em seguida, o sorriso dela se abriu ainda mais, como um raio de sol tão brilhante que parecia capaz de transformar aquele outono congelado de volta em verão. — Então, me conta: o que você quer fazer amanhã?

*

 

Seguimos nossa jornada num ritmo tranquilo. Passamos no zoológico e invadimos o espaço das girafas para tirar fotos com elas. Visitamos um parque de diversões local e invadimos o palco bem no meio de uma apresentação. Exploramos fábricas, aeroportos, bases militares, delegacias de polícia, usinas de energia e todo tipo de lugar onde civis comuns jamais seriam permitidos. Aproveitamos esse mundo congelado com todo o nosso coração, de todas as maneiras que conseguimos imaginar.

Após inúmeras paradas e desvios, finalmente chegamos ao distrito de Adachi, em Tóquio, onde ficava o apartamento do meu tio, depois de mais uma...

— Ehh... quanto tempo faz que a gente saiu de Nasu, mesmo? — perguntei.

— Sei lá — respondeu Akira. — Um mês, talvez?

— Ok, acho que dá pra considerar isso...

Anotei "mais ou menos um mês" no meu diário.

Já estava resumindo bastante as coisas nesse ponto, mas tudo bem. No final, o que tínhamos feito era basicamente aproveitar o tempo ao máximo, então, desde que eu transmitisse essa ideia, achava que já estava bom.

Fechei o caderno e o guardei de volta na mochila. Estávamos descansando na frente de uma loja de conveniência, sentados sobre um par de barras de proteção em forma de U invertido. Ao meu lado, Akira devorava alegremente um pedaço de frango frito.

Agora que estávamos em Tóquio de verdade, a paisagem esparsa que víramos em algumas províncias do norte havia dado lugar a uma verdadeira selva de concreto, com gente por todos os lados. Essa cidade sempre tinha sido abafada e cheia demais para o meu gosto. E, ainda assim, por alguma razão — talvez uma sensação acolhedora de estar de volta para casa, ou o simples fato de que o tempo ainda estava parado —, eu não conseguia detestá-la tanto naquele momento.

— Nossa, isso tava bom demais — disse Akira, jogando o embrulho do frango no lixo mais próximo. — Então, o apartamento do seu tio é por aqui, né?

— É — respondi. — Mais uns trinta minutos de caminhada, talvez.

— Entendi. Caramba, tô começando a ficar nervosa...

Eu entendia perfeitamente. Embora tivéssemos dado muitas voltas e mudado nossa perspectiva sobre o timefreeze no caminho, ainda assim tínhamos andado de Hokkaido até ali para chegar no apartamento do meu tio. Se não encontrássemos nada depois de todo esse esforço, seria uma baita decepção. Mas atravessaríamos essa ponte quando chegássemos nela. Além disso, acabar com o fenômeno nem era mais nosso objetivo principal.

Saímos do estacionamento da loja, e eu fui guiando o caminho para o apartamento do meu tio, me orientando pelas ruas e prédios que reconhecia.

— Ah, olha, aqui é a Universidade U of I — falei. — Fica linda na primavera, com todas aquelas cerejeiras floridas. E se seguir reto por essa rua, vai direto para a sede da editora Yutosha.

— Caramba... Você até parece um morador local — comentou Akira.

— Bom, é porque eu sou, né — respondi, sorrindo de forma meio envergonhada.

— E a casa dos seus pais é por aqui também?

— Na verdade, minha casa fica bem longe. Mas a escola onde estudo é aqui perto, se quiser dar uma olhada.

— Sério?! Mas é claro que eu quero!

E assim, decidimos fazer mais um desvio e seguimos até o meu colégio — não que tomar um caminho mais longo fosse algo de que a gente precisasse se envergonhar, já que o tempo estava congelado, afinal. Além disso, era só atravessar mais dois cruzamentos, então chegamos rapidinho. Akira e eu ficamos ali na calçada, olhando para o grande brasão da escola estampado na parede externa do prédio principal.

— Uau... Então é aqui que você estuda? — disse Akira, parecendo levemente impressionada enquanto puxava os portões fechados da escola. Eu a ajudei a forçar a abertura dos portões, e nós dois entramos no campus.

— Não lembro de uma única vez em que eu não tenha me sentido deprimido entrando aqui — comentei enquanto atravessávamos a entrada principal, e todas as memórias sombrias e desagradáveis que eu tinha daquele lugar voltaram à tona.

Akira inclinou a cabeça.

— O quê, porque você não gostava da escola?

— É... acho que dá pra resumir assim. Pra falar a verdade, eu até costumava desejar que um meteoro caísse aqui e destruísse tudo.

— Quer quebrar todas as janelas na saída, então?

— Nem pensar, sua delinquente. A gente não vai fazer motim, pelo amor de Deus.

Subimos para o corredor principal sem precisar trocar de calçado; na minha escola, podíamos usar sapatos de rua mesmo. Embora os alunos do segundo ano estivessem viajando em excursão para Hakodate, os outros estudantes ainda estavam por ali, então não estávamos sozinhos no prédio.

— Por mais que eu odeie esta escola, sei que tem muita gente que ama ela — continuei. — Eu nunca iria destruir um lugar que significa tanto para alguém.

— J-Já entendi, tá?! — disse Akira. — Era só uma piada, caramba... Você que começou a falar de meteoro e não sei o quê!

— Bom, chegamos.

Depois de subir até o terceiro andar e andar pelo corredor, chegamos à minha sala. Tentei abrir a porta, mas descobri que estava trancada. Akira insistiu, então fui até a sala dos professores pegar a chave, depois voltei correndo e destranquei a porta para entrarmos.

— Este aqui é o meu lugar — falei, indo até minha carteira, que ficava bem no meio da sala. Akira logo se sentou na carteira ao lado.

— Nossa. Até parece que somos colegas de classe, sentados assim, né? — disse ela, sorrindo como se achasse a ideia divertida.

Tentei imaginar um mundo onde ela e eu estivéssemos na mesma turma, na mesma escola. Eu, um antissocial que vivia matando aula, e ela, uma completa encrenqueira. Provavelmente, a gente nunca teria se falado, mesmo estando na mesma sala. A não ser que fôssemos forçados a interagir por um fenômeno sobrenatural como esse, iríamos até a formatura sem trocar uma única palavra. Pensar nisso só reforçava o quão fantasiosa era a nossa situação.

— Ô, Mugino! Vai comprar um pão de yakisoba pra mim, seu banana! — disse Akira, de repente, imaginando um cenário em que eu era o lacaio dela. Na mesma hora, me arrependi de toda aquela nostalgia boba que eu estava sentindo.

— Nem pensar — respondi. — Vai você mesma comprar.

— Tsc. Mão de vaca.

— Nada disso. Só não gosto que mandem em mim.

— Nossa, que mala! Desse jeito você nunca vai fazer sucesso com as garotas, sabia?

— Nem ligo pra isso. E além do mais, agora você é a única garota que sobrou no mundo, então tanto faz.

— Ah, é mesmo... Bom, justo. Não é problema meu se você nunca arrumar uma namorada.

— Tá, falando assim, até dói...

Akira se levantou e foi até a janela. Quando olhou para fora, inclinou a cabeça e soltou um som curioso, como se tivesse visto algo estranho.

— Ei, o pátio da sua escola tá esquisito — comentou. — As cores estão meio malucas.

Esquisito? Como assim? Levantei e fui até a janela ao lado dela. Diretamente abaixo de nós estava o campo de esportes, feito de grama sintética e cercado por uma pista de corrida azul brilhante. Bem diferente dos pátios de terra batida ou dos pátios asfaltados comuns.

— Ah, é porque ele tem uma pintura impermeável para ajudar na drenagem — expliquei. — Muitas escolas por aqui têm esse tipo de piso.

— Puxa... Então deve ser difícil transformar isso num rinque de patinação, né... — disse ela, meio desapontada.

— Acho que não tem nenhuma escola perto de Tóquio que faça isso, pra falar a verdade. Aqui nem faz tanto frio quanto em Hakodate. E quase nunca neva também... Ah, mas isso me lembra: teve uma vez, quando eu estava no ensino fundamental, que nevou, e a gente passou toda a primeira aula brincando na neve. Foi incrível.

— Ué, mas e o conteúdo da aula?

— A gente nem teve aula. Foi só diversão mesmo.

Era uma lembrança muito querida para mim, apesar de eu ter acabado fazendo um boneco de neve sozinho, num cantinho isolado do pátio.

— Imagino que em Hokkaido isso não aconteceria, né? — comentei.

— Tá brincando? Claro que não — respondeu Akira. — Lá neve é coisa de todo dia. Ah, agora você me deixou com inveja... Queria tanto ter nascido em Tóquio também.

— Ah, qual é. Tem coisa boa em morar em Hakodate também, né? Tipo poder patinar na escola, e comer frutos do mar fresquinhos.

— É, pode ser... Mas aqui em Tóquio tem muito mais coisa pra fazer.

— É... até demais, se quer saber. Quando tem opção demais, você acaba ficando paralisado, sem saber o que escolher.

— Hmmm... Parece meio estranho para mim, mas tá bom. Talvez seja aquele lance do "a grama do vizinho é sempre mais verde", né?

Ficamos mais um tempo na sala, conversando sobre assuntos aleatórios relacionados à escola — contando histórias de colegas de classe, discutindo as diferenças entre os eventos escolares de Tóquio e Hokkaido, esse tipo de coisa. Mas depois de um tempo, senti que o papo estava chegando ao fim.

Olhei para a porta.

— Vamos indo?

— É, melhor.

Nos levantamos e saímos da sala.

*

 

Finalmente, chegamos ao prédio de apartamentos do meu tio Kurehiko. Eu me perguntava há quanto tempo, exatamente, estávamos viajando desde que saímos de Hakodate. Parecia meio surreal finalmente ter alcançado nosso destino depois de tanto tempo. Sem perder tempo, subimos pela escada externa e procuramos pela porta de sua unidade: Apartamento 202. Com a respiração presa, coloquei a mão na maçaneta.

— Está trancado — disse.

É claro que está, pensei comigo mesmo. O que você esperava, idiota?

— Onde podemos encontrar a chave? — perguntou Akira.

— Mmm... Provavelmente temos uma reserva na minha casa, mas...

Seria um desvio considerável ir até lá e voltar. Mesmo com o mundo inteiro paralisado, isso pareceria uma enorme perda de tempo. Procurei alternativas em minha mente, até que Akira teve uma ideia.

— Ei, tive uma ideia. Estamos no segundo andar, certo? Por que não subimos até a varanda e entramos pela janela?

Se eu não a conhecesse melhor, pensaria que essa garota estava numa missão para quebrar janelas hoje. Ao mesmo tempo, eu não conseguia pensar em outra opção realista. Além disso, por ser um prédio antigo, eu sabia que provavelmente não contava com medidas de segurança de última geração, então não deveria ser difícil invadir pelo segundo andar. Estávamos apenas criando mais trabalho para o senhorio depois, mas, às vezes, era preciso quebrar alguns ovos para fazer uma omelete.

— Certo, vou subir até a varanda — disse. — Espere aqui.

— Okay, entendido.

Deixei Akira na porta da frente e contornei o prédio até os fundos. Uma vez lá, me apoiei na grade da varanda do primeiro andar, agarrei o cano de chuva com as pernas e consegui escalar até a varanda do meu tio com surpreendente facilidade. Por sorte, a porta de correr estava destrancada, então não precisaríamos quebrar nenhum vidro hoje. Tirei os sapatos e entrei.

Aparentemente, o imóvel ainda não havia sido liquidado, pois tudo estava exatamente como antes. O cheiro de tinta a óleo impregnado nas paredes e no assoalho era profundamente nostálgico para mim. Atravessei a sala de estar e destranquei a porta da frente.

— E-Então é aqui? — disse Akira desconfortavelmente, tirando os sapatos e entrando. Havia uma inquietação em seus passos enquanto caminhava lentamente pela sala, olhando nervosamente para os lados.

O cômodo estava impecável e arrumado, um verdadeiro testemunho da natureza obsessivamente meticulosa do Tio Kurehiko. Não parecia haver nada ali que pudesse servir de pista — restava apenas o cômodo adjacente, um quarto de estilo ocidental que meu tio usava como ateliê, e que me parecia muito mais promissor. Abri a fina porta de papel que o separava da sala principal.

— Nossa... — disse Akira, maravilhada com a visão.

As paredes estavam cobertas de cima a baixo por pinturas a óleo, todas presumivelmente feitas por meu tio. Havia bem mais quadros do que da última vez que estive aqui. No fundo da sala, havia uma única tela — mais que o dobro do tamanho das outras — coberta por um pano. Essa pintura solitária estava embrulhada de forma cuidadosa, como se fosse sagrada demais para ser profanada por olhos mortais. Akira e eu trocamos um olhar e, em seguida, voltamos nosso olhar para a tela. Caminhei até ela e retirei o pano.

Era uma pintura de uma vespa gigantesca — tão colossal e imponente que parecia prestes a saltar da tela e nos devorar vivos. Eu quase podia ouvir o zumbido de suas asas. Parecia ter sido desenhada como se estivesse sendo vista ao entardecer, com todo o corpo tingido de um tom laranja pôr do sol. Observando mais de perto, percebi que não era uma vespa real: era mais como uma colagem composta de incontáveis peças de móveis descartados e lixo — entre eles, uma televisão quebrada, um ventilador elétrico, um letreiro, uma cadeira de escritório — todos se unindo para formar a figura da vespa. Era uma pintura de um realismo impressionante, mas sem ser fotorrealista. Era difícil colocar em palavras: parecia uma recriação incrivelmente detalhada de alguma presença aterradora que o artista realmente tivesse visto. No geral, era uma obra de arte absolutamente impressionante.

Mas também, por alguma razão... quanto mais eu olhava para ela, mais era preenchido por uma estranha sensação de déjà vu. Como se estivesse tentando evocar uma sensação profunda dentro de mim ou despertar uma memória adormecida. Era como se eu estivesse olhando para—

— O Mundo em Amber... — murmurei, sem perceber.

Essas eram as palavras que meu tio havia dito durante nossa última ligação telefônica. Seria essa pintura "O Mundo em Amber" para ele?

— Ei, Mugino — chamou Akira. — Você vai querer dar uma olhada nisso.

Virei-me para vê-la apontando para um pequeno caderno de couro aberto sobre uma escrivaninha num canto da sala. Caminhei até lá e vi a caligrafia característica do meu tio — firme e angulosa — espalhada pelas páginas. Akira e eu nos sentamos de pernas cruzadas no chão e começamos a ler:

Decidi escrever um relato desses acontecimentos para organizar meus pensamentos.

Tudo começou há três dias. Sei disso apenas pelo meu relógio de pulso; todos os outros relógios parecem ter parado, assim como o próprio tempo naquele dia fatídico. Esta é a única maneira que consigo descrever: o tempo, o mundo e tudo nele — congelados num piscar de olhos, pouco depois das cinco da tarde. E então, tudo ficou em silêncio.

Tentei caminhar pelo bairro, mas não encontrei nenhum ser vivo além de mim. Pessoas, objetos, animais — todos estavam rígidos como mármore.

Por um momento, pensei ter morrido e ido parar no purgatório. Talvez tenha sido atropelado por um carro desgovernado e nem tenha percebido. No entanto, se isso é o limbo, ele opera por regras estranhas, pois percebo-me cansado após algumas horas de caminhada, e a fome me visita caso eu negligencie a alimentação. Portanto, estou relativamente certo de que ainda estou vivo. Ainda que não completamente.

— A mesma coisa aconteceu com o Tio Kurehiko... — murmurei.

Então havia pelo menos outra pessoa, além de Akira e eu, que experimentara o timefreeze — e alguém da minha própria família, nada menos. As páginas seguintes do caderno registravam os dias que ele passou nesse mundo congelado, escritas em forma de diário. Ele formulava hipóteses, investigava-as e tirava conclusões sobre as regras do fenômeno: até que distância era possível arremessar objetos antes que eles congelassem no ar, qual o raio de isenção em torno de si, como a lei da conservação de energia se aplicava naquele contexto. Ele até conjecturava sobre o que poderia ter causado o timefreeze e o que poderia encerrá-lo.

O diário se estendia por várias semanas, e praticamente toda a lógica dele coincidia com o que Akira e eu já havíamos deduzido. Essa confirmação foi extremamente reconfortante; parecia que estávamos certos sobre os gatilhos serem desespero e esperança, afinal...

Há uma obra no meu ateliê intitulada "O Mundo em Amber", pintada numa tela F80.

Ela simplesmente apareceu no fundo do quarto um dia, e eu não tenho qualquer memória de tê-la pintado. Tampouco sei como consegui reunir os materiais necessários ou dedicar às centenas de horas exigidas para criar uma peça tão intrincada.

Sempre achei isso estranho e perturbador, mas agora sinto que posso entender o motivo.

Talvez tenha havido uma outra ocasião em que o tempo tenha congelado ao meu redor, e eu tenha pintado "O Mundo em Amber" nesse intervalo.

É uma ideia absurda, eu sei — e não explica por que não me lembro de tê-la feito.

Ainda assim, como explicação, parece estranhamente correta para mim.

E, assumindo que esta seja de fato a segunda vez que experimento esse bizarro fenômeno de parar o tempo, isso também explicaria porque me sinto tão à vontade dentro dele, apesar das circunstâncias.

Então eu estava certo sobre a pintura da vespa ser "O Mundo em Amber", afinal. E embora fosse apenas uma hipótese da parte dele, parecia que ele também havia passado por múltiplos timefreezes em sua vida. E, assim como eu, ele também havia perdido todas as memórias dos eventos anteriores.

O mais estranho para mim, no entanto, é que ainda está claro lá fora. O sol continua tão brilhante quanto antes, e, ao levantar a mão para ele, consigo sentir uma leve sensação de calor. Mas os fótons também não deveriam ser afetados pela parada do tempo? E por que ainda consigo respirar normalmente, se o ar presumivelmente só circula em um raio de alguns centímetros ao meu redor? Eu não deveria morrer sufocado, então, quando todo o oxigênio da minha pequena bolha de ar acabasse, caso eu ficasse muito tempo parado? E, ainda assim, me sinto perfeitamente bem, mesmo depois de uma noite inteira de sono. E essas são apenas algumas das muitas perguntas que tenho. Será que apenas as ondas de luz são imunes a esse fenômeno? A Terra ainda estaria girando, e, se não, quais seriam os efeitos disso? Isso não afetaria também a força gravitacional?

A única coisa da qual posso ter certeza é que considero esse fenômeno bastante favorável para os meus propósitos. É claro que há vários inconvenientes que vêm junto com ele, mas eu tenho tudo de que preciso para viver confortavelmente e focar no meu trabalho. É quase como se alguém tivesse projetado tudo isso especialmente para mim.

Talvez seja um presente — um breve alívio das aflições da vida cotidiana, concedido pelos céus. Ou talvez um tipo de "período de graça", me dando tempo suficiente para me preparar para enfrentar o futuro cruel que me aguarda, para que eu possa sobreviver e contar a história depois.

Com isso em mente, decidi dar a esse fenômeno o nome de "Efeito Moratória".

— Efeito Moratória...? — murmurei.

Era um nome que só um cínico amargurado como meu tio poderia ter inventado. E, no entanto, considerando que Akira e eu também estávamos nos escondendo dentro do timefreeze, esperando o momento certo por medo do futuro, o nome parecia estranhamente apropriado.

Em determinado ponto, as anotações do diário simplesmente cessavam. Só podia assumir que a última havia sido escrita na noite anterior ao ataque cardíaco dele. Afinal, não havia como um homem da idade dele prever algo assim.

Fiquei me perguntando o que o Tio Kurehiko teria pensado em seus momentos finais. Ou talvez a dor tenha sido tão intensa que ele nem tenha conseguido pensar em nada. Provavelmente morreu sofrendo em solidão, completamente sozinho, sem qualquer esperança para o futuro.

— Isso é pesado demais, cara — disse eu, abaixando a cabeça enquanto sentia meu peito prestes a se despedaçar sob o peso esmagador do lamento. Pensar que a vida de um homem que eu tanto admirava acabou valendo tão pouco, tendo sido interrompida de maneira tão trágica. Eu deveria ter conversado mais com ele — deveria ter realmente ouvido o que ele tinha a dizer.

— Mugino — disse Akira. — Olha isso.

Levantei a cabeça. Akira havia virado o caderno para a última página, onde uma única frase estava rabiscada em letras enormes, ocupando toda a margem. Eu não sabia como interpretar aquelas palavras — nem mesmo se deveriam ser vistas de maneira otimista ou pessimista. Mas, de qualquer forma, elas ressoaram profundamente dentro de mim.

QUE OS RELÓGIOS PERMANEÇAM QUEBRADOS

*

 

Depois de passar a noite no apartamento do meu tio, paramos em um parque próximo no distrito de Adachi. Apesar de estar bem no meio da cidade, o lugar era vasto e repleto de natureza. Akira e eu nos sentamos num banco perto de um grande lago.

Estava surpreendentemente quente — o clima perfeito para me deitar na grama e tirar um longo cochilo. Mas, em vez disso, apenas fiquei sentado por um tempo, olhando distraidamente para o lago, permitindo que a serenidade das águas lentamente invadisse meu coração e minha mente.

— Então. O que você quer fazer agora? — perguntou Akira.

— Boa pergunta... — disse eu, coçando o queixo. — Quer invadir o Palácio Imperial ou algo assim?

— Mas que isso, garoto! — exclamou ela. — Até mesmo com o tempo parado, isso seria incrivelmente ousado. Você não tá falando sério, né?

— E por que não? Já estamos aqui, não estamos? Pode ser a melhor oportunidade que vamos ter.

Akira sorriu de forma travessa.

— Tenho que admitir que gosto da audácia, mas o Palácio Imperial? Você é mais rebelde do que eu pensava, Mugino.

Já havíamos roubado mais do que nossa cota de comida e invadido vários lugares. Provavelmente tínhamos quebrado muitas outras leis sem nem perceber — e continuaríamos quebrando enquanto o tempo permanecesse congelado.

— Tá começando a parecer que somos tipo Bonnie e Clyde — comentei.

— Quem? — perguntou Akira, inclinando a cabeça.

— Um casal super famoso de criminosos que, nos anos 1930, saíram pelos Estados Unidos assaltando bancos e tal. Tem até alguns filmes sobre eles. Viviam fugindo, tentando sempre ficar um passo à frente da lei.

— Caramba, que maneiro... Eles conseguiram se safar?

— Na verdade, eles...

Parei no meio da frase.

Pensando bem, talvez não fosse a melhor ideia nos comparar a esse casal em particular, considerando o fim trágico que tiveram. Mas, agora que Akira parecia genuinamente interessada, não dava mais para voltar atrás — e eu também não queria mentir nem suavizar os fatos.

— No fim, a polícia os alcançou, e eles foram mortos a tiros na rua — expliquei. — Naquela altura, eram os criminosos mais procurados do país, então a polícia não quis arriscar tentar capturá-los vivos.

— Poxa... Que droga.

Ela disse isso com total naturalidade, como se não fosse nem esperado nem inesperado. Como se não fosse nada demais. Ouvi um rangido enquanto ela se recostava no banco, semicerrava os olhos e olhava para o céu.

— Acho que não dá pra sair fazendo o que quiser pra sempre — disse ela. — Uma hora a realidade alcança você.

Essa última frase foi tão brutalmente direta que senti meu estômago afundar. E, ao mesmo tempo, Akira tinha razão — ela sabia tão bem quanto eu que essa nossa jornada não poderia durar para sempre. Não era preciso ser um gênio para perceber que nosso modo de vida atual simplesmente não era sustentável. O jeito como estávamos conseguindo nossas refeições, encontrando lugares para passar a noite... tudo que fazíamos para sobreviver exigia, inevitavelmente, que continuássemos quebrando a lei e, provavelmente, causando muitos problemas para quem quer que estivéssemos roubando ou incomodando.

Se tivéssemos certeza de que o mundo continuaria assim para sempre, ou se estivéssemos em um romance de ficção científica pós-apocalíptico onde o tempo na Terra tivesse sido congelado por alguma força maligna, talvez pudéssemos justificar roubar comida de lojas e restaurantes e dormir onde quiséssemos, indefinidamente.

Mas esse não era o caso. Já sabíamos como fazer os ponteiros do relógio voltarem a se mover. Só precisávamos encontrar esperança para o futuro. Não que soubéssemos com absoluta certeza que esse era o método correto, já que nenhum de nós sequer tinha tentado encontrar tal esperança até agora. Muito pelo contrário — estávamos tentando nos agarrar a esse mundo congelado pelo máximo de tempo possível, mesmo que isso significasse prejudicar centenas ou milhares de outras pessoas para sustentar nosso estilo de vida.

É claro que sabíamos que isso era errado. Mas isso não tornava o futuro mais atraente. Por que abandonaríamos essa fantasia? Para quê? Só para voltar à monotonia sem graça da nossa existência diária?  Quando o tempo voltasse a se mover, eu teria que voltar para a escola. Teria que falar com pessoas novamente. Teria que lidar com situações desconfortáveis de novo. Ser uma pilha de nervos outra vez, fingindo ser uma pessoa funcional na sociedade. Teria que pensar sobre minhas perspectivas futuras e escolher uma carreira, gostando ou não. Teria que aprender a superar minha condição ou encontrar algum estilo de vida alternativo em que não precisasse ser tocada por outras pessoas.

Eu precisava me tornar mais forte, ou não conseguiria continuar vivendo. Ou melhor: se eu quisesse continuar vivendo, precisaria ser mais forte. Nenhum pôster motivacional ou palavra vazia de encorajamento mudaria esse simples fato. Nem em um milhão de anos.

Sabendo disso, já estava claro qual era a minha preferência. E ainda assim...

— Ei. Mugino.

Levantei a cabeça, que eu nem tinha percebido que estava caída. Quando olhei para Akira, vi que ela apontava o dedo direto para minha testa.

— Você tá cheia de rugas na testa agora.

— Ah, é... — respondi, tentando massageá-las para sumirem. — Foi mal, acho que me perdi nos pensamentos.

— É, tava pra te falar... Você tava com uma cara super pensativa. O que houve?

Akira se aproximou um pouco e inclinou a cabeça, fazendo seus cabelos dourados balançarem suavemente no ar frio do outono. A mancha preta no topo da cabeça dela tinha crescido bastante desde que nossa viagem começou, à medida que suas raízes cresciam. Me lembrei, com carinho, de quando ela fez uma careta ao se ver no espelho outro dia e, emburrada, insistiu pela milésima vez que ia retocar a tintura logo.

— Sabe — eu disse —, eu tenho me divertido muito com você, Iguma-san.

Akira piscou, surpresa e meio envergonhada.

— S-Sério? Q-Que bom ouvir isso.

— Mas, por mais que eu esteja aproveitando o momento — continuei —, não consigo deixar de ficar um pouco ansioso quando penso no futuro. Em tudo o que vai inevitavelmente acontecer quando o tempo voltar a andar... Ter que voltar pra minha vida chata de sempre, provavelmente acabar me afastando de você, e todas as memórias divertidas que fizemos juntas começarem a parecer coisa de outro mundo ou de outra vida... Isso se não desaparecerem de vez. Quando começo a pensar nessas coisas, só... dói, sabe?

— Mugino...

Ela disse meu nome tão suavemente, como se o estivesse segurando com todo o cuidado do mundo, que pude sentir a preocupação genuína na voz dela — ou pelo menos achei que pude.

— Você tá sendo emo de novo! — declarou ela, sem cerimônia.

— Q-Quê...?

— Nem vem! Tá vendo? É disso que eu falo — você é sensível demais. Precisa parar de se prender em cada coisinha que acontece.

Akira pulou do banco e ficou na minha frente, a poucos passos dos meus joelhos, colocando as mãos na cintura e me encarando de cima. Parecia que eu ia levar um sermão.

— Você pensa demais, meu amigo. Então, a partir de agora, é proibido pensar.

— Co-como é que eu vou fazer isso?

— Problema seu. Ah, e sem mais monólogos dramáticos também!

— Ah, qualé... Me deixa ficar com alguma coisa, pelo menos.

Não pude evitar soltar uma risadinha com essa troca ridícula. Ao ver isso, Akira também suavizou a expressão e abaixou uma das mãos.

— Não me entenda mal — ela disse. — Não é como se eu não pensasse nessas coisas também — no futuro e tal. Mas tudo que isso faz é me deixar ainda mais desesperançosa do que já sou. E, quando você começa a se prender nesses pensamentos, é difícil sair. Tipo, no meu caso, eu nem sei como vou resolver as coisas com os meus pais, nem como parar de me sentir tão deprimida com a escola, nem o que quero fazer da vida depois que me formar... E mesmo que eu achasse soluções perfeitas para todos os meus problemas atuais, tenho certeza que inventaria outros novos pra me estressar depois.

Ouvi atentamente cada palavra dela — a voz de Akira parecia ser o único som existente no mundo.

— Se quer saber, acho que todo mundo carrega suas próprias bagagens. Mas eles ainda assim levantam da cama todo dia e seguem em frente, porque sabem que a única forma de melhorar as coisas é fingir até conseguir de verdade. É isso que eu vou fazer. E acho que você deveria também.

— Então, você tá dizendo pra eu desligar o cérebro e fingir que vai ficar tudo bem?

— Não, seu bobinho. Só tô dizendo: não deixe o amanhã te impedir de viver o hoje.

No fim das contas, para mim, era a mesma mensagem — só que reescrita de um jeito mais otimista. Ainda assim, havia algo na maneira como ela disse aquilo que parecia atravessar as garras da ansiedade que me sufocavam há tanto tempo. Finalmente, eu me sentia livre. Sabia que essa sensação provavelmente seria passageira; medos como esses eram como ervas daninhas resistentes, enraizadas no fundo da mente, prontas para crescer de novo ao menor sinal. Mas, só dessa vez, decidi que cruzaria essa ponte quando chegasse a ela.

— Você é realmente forte, Iguma-san — eu disse.

— Heh. É, eu sei — Akira riu, cheia de orgulho, estufando o peito. — Mas vai em frente — pode continuar me elogiando.

— Quero dizer, você também é esperta e legal... Sem falar que é fofa.

— Qu-quê?! — Akira soltou um gritinho envergonhado, depois fez um biquinho e virou o rosto. — Cala a boca. Eu não sou fofa, e você sabe disso…

— Claro que é. Com esses caninos que aparecem quando você sorri, o cabelo parecendo que você pendurou um girassol enorme na cabeça, ou quando fica emburrada por qualquer coisinha... Ah, e também quando seus olhos brilham com aquele ar de curiosidade inocente de vez em quando, tipo quando a gente—

— Gaaaaah! Tá bom, tá bom, eu entendi! Chega! — ela me interrompeu, agitando as mãos desesperadamente. Seu rosto estava vermelho até as orelhas. — Caramba, você realmente não tem vergonha nenhuma de sair falando essas coisas, né...? Vou ter que ficar esperta perto de você, ou vou acabar me metendo em apuros…

Akira se sentou de novo no banco ao meu lado, balançando a cabeça enquanto se abanava com a mão. Eu peguei uma garrafinha d'água da mochila e terminei os últimos goles. Depois de um tempo se acalmando, Akira retomou a conversa.

— Enfim, como eu tava dizendo antes de você mudar de assunto... — ela começou. — Então, é... Acredite se quiser, mas eu nunca fui para o oeste de Tóquio.

— Ué, sério? — falei, mais surpreso do que pretendia.

— Nunca comentei porque não queria parecer uma caipira sem cultura nem nada — ela continuou, claramente envergonhada. — Mas é isso. Praticamente todos os meus amigos já foram pra Osaka ou Nagoya pelo menos uma vez. Só que a gente nunca teve muito dinheiro sobrando, então eu nunca pude ir junto, e meus pais também nunca levaram a gente pra viajar... Então eu tava pensando…

Akira se virou para mim.

— Se não se importar, que tal a gente ir pra Kansai.

Por um momento, achei que até senti o vento soprar. Na minha cabeça, a cena já se formava. Uma nova aventura, esperando para começar. A empolgação invadiu meu peito. Eu nunca quis tanto algo na vida.

— Vamos nessa — eu disse. — Podemos ir pra Kansai, pra Kyushu, pra qualquer lugar — pra onde nossos pés nos levarem.

— Sério? — disse Akira.

— Claro. Se a gente quiser, podemos dar a volta no Japão inteiro.

O rosto de Akira se iluminou como o primeiro raio de sol depois de um mês de neve.

— Isso seria muito incrível, né?

Mesmo com todos os desvios, tínhamos levado quase dois meses para chegar de Hakodate até Tóquio. Quanto tempo será que levaria pra rodar o Japão todo? Mais de um ano, talvez? Mas isso nem importava, já que o tempo estava parado; podíamos aproveitar como quiséssemos, sem pressa. Podíamos nos perder nesse instante eterno de felicidade — esse paraíso só nosso — o quanto quiséssemos, e ninguém poderia nos impedir. Então, que se dane o futuro. Tudo que precisávamos era do agora.

— Mmmnnngh... — Akira respirou fundo, esticando as costas e todos os membros, e depois desabou de novo quando soltou o ar.

— Nossa, tô ficando super cansada de repente — ela disse, tentando esconder um bocejo. Talvez o cansaço estivesse finalmente batendo agora que a adrenalina da nossa conquista do dia anterior tinha passado.

— Quer procurar um lugar pra ficar? — perguntei.

— Mmm, não. Acho que vou tirar um cochilo aqui mesmo. O tempo tá bom, e eu tô com vontade de deitar na grama. Além disso, não preciso nem me preocupar com insetos me escalando, né? Vantagens de viver num mundo congelado, hehe. 

Atrás do banco tinha um gramado denso, com uma leve inclinação. Parecia bem confortável, na verdade.

— Você vai tirar um cochilo também, Mugino? — perguntou Akira.

— É, acho que sim... Ah, mas antes que eu esqueça — falei, puxando meu caderno e uma caneta da mochila — deixa eu só anotar rapidinho o que aconteceu na casa do meu tio. Já já eu te alcanço.

— Entendido.

Akira pegou a mochila, usou-a de travesseiro e se deitou na grama. Enquanto isso, eu apoiei o caderno no colo e comecei a escrever.

Por mais longa que fosse nossa jornada, eu queria continuar registrando tudo em forma de diário. Seria bom ter essas anotações para o caso de algo inesperado acontecer. Enquanto rabiscava um resumo do dia anterior, percebi que a tinta da minha caneta estava acabando. As letras iam ficando mais fracas, cada traço mais difícil. Acho que estava na hora de aposentar essa velha caneta.

— Ei, Iguma-san? — Chamei.

— Mmwha? — Akira respondeu, ainda deitada, olhos fechados.

— Minha caneta ficou sem tinta, vou procurar uma nova.

— Mmmnnn, beleza... Ah, espera — ela murmurou sonolenta, se levantando um pouco. — Você pode pegar um pouco d'água pra mim também? A minha acabou agora.

— Sim, claro. Vou pegar algumas coisas.

— Valeu, obrigada. Te vejo daqui a pouco — disse ela, se jogando de volta no banco.

Certo, uma caneta esferográfica e algumas garrafas de água... Talvez eu devesse pegar uns lanches também enquanto estivesse lá.

Eu não tinha certeza de quanto acabaria comprando, então fechei meu caderno e o deixei sobre o banco, depois esvaziei algumas coisas da mochila para abrir espaço para essa pequena viagem de compras improvisada. Levantei-me, saí do parque e procurei por lojas de conveniência nas proximidades. Eu tinha quase certeza de que haveria uma por aqui... Aha.

Ali estava. Bem na esquina.

Atravessei a rua na faixa de pedestres, forcei a abertura das portas automáticas e entrei na loja. Comecei a me dirigir para a seção de bebidas — quando, de repente, meu olhar foi atraído pela capa de uma revista no expositor. Era uma publicação semanal de mangás — uma que eu já havia visto inúmeras vezes ao longo da nossa viagem. Sempre achei curioso, mas nunca o bastante para realmente pegá-la e dar uma olhada. Agora que eu tinha um pouco de tempo sozinho, pensei que poderia dar uma espiada rápida. Não queria fazer a Akira esperar muito, então certamente não pretendia ficar ali lendo tudo.

Peguei a revista da prateleira e, imediatamente, fui lançado ao primeiro capítulo totalmente colorido de uma nova série em destaque na capa daquela semana. Eu só pretendia folhear, mas a ilustração de abertura era tão impressionante que não consegui evitar me envolver. E assim que terminei o capítulo, devolvi a revista ao expositor e fiquei parado ali, maravilhado.

...Caramba. Aquilo foi bom. Muito bom.

Se eu tivesse que definir um gênero, diria que era algo próximo da fantasia. A história girava em torno de dois garotos — soldados de países inimigos em guerra — que acabavam naufragando juntos numa ilha desabitada. Eles decidem deixar suas rivalidades nacionais de lado e trabalhar juntos para sobreviver, ao menos até serem resgatados. No começo, tinham dificuldades de convivência por conta das grandes diferenças culturais, mas, conforme começavam a se conhecer melhor, criavam um vínculo genuíno. Eventualmente, conseguiam sair da ilha, apenas para descobrir que, durante sua ausência, a guerra tinha piorado ainda mais... E foi aí que o primeiro capítulo terminou.

Apesar de não ser o mangá mais cheio de ação de todos os tempos, nem o conceito mais original, fiquei completamente cativado. A arte era belíssima, e os personagens pareciam tão vivos e reais que eu não conseguia nem imaginar para onde a história seguiria.

Eu queria que Akira lesse também. Assim poderíamos trocar ideias — comentar sobre nossas cenas e personagens favoritos, ou sobre quais falas talvez fossem prenúncios de futuros acontecimentos. Eu só queria alguém com quem pudesse compartilhar aquele entusiasmo, sabe? Poder conversar, teorizar e pirar juntos, do jeito que tantas pessoas fazem nas redes sociais, analisando cada pequeno detalhe de suas séries favoritas.

Talvez fosse a primeira vez que eu sentia algo assim. Até então, sempre encerrava minhas impressões sobre qualquer obra assim que terminava de consumi-la, sem necessidade de discutir ou aprofundar. E nunca antes tinha sentido vontade de recomendar uma história a alguém. Que sensação maravilhosa era ter um amigo com quem dividir sua paixão e empolgação por algo.

Agora eu entendia: no fim das contas, não era exatamente sobre a obra em si. Era sobre dividir algo especial com alguém que era especial para você. Eu simplesmente nunca tinha tido alguém assim até agora.

Mas, poxa... Que começo incrível. Mal posso esperar para ver o que vai acontecer a seguir... Embora, é claro… Vou ter que esperar até a próxima semana para descobrir, não é?

Aconteceu num instante.

O chão tremeu e o ar vibrou quando um som grave e ressonante ecoou como o toque de um sino monumental. Foi tão repentino e assustador que meu estômago quase se virou do avesso, e tudo que eu havia acabado de ler sumiu da minha mente num piscar de olhos.

O que é isso? Que som é esse?

O toque não parava. Comecei a entrar em pânico.

O que está acontecendo? É um sino? Mas como? Quem tocou? Quem poderia ter tocado? Akira? Mas não havia nenhum templo com um sino gigante no parque, certo? E mesmo que houvesse, não seria tão alto. Não soaria como se estivesse tocando diretamente no meu ouvido.

Então... qual outra explicação poderia haver?

Ah, não. Não me diga...

Uma sensação súbita correu de sinapse em sinapse, passando da suspeita para a certeza, antes de disparar uma conclusão aterradora para todos os nervos do meu corpo.

O sino estava tocando. Era um sinal. O tempo estava prestes a voltar a andar.

O que só podia significar uma coisa:

Eu... eu acabei de desejar viver no futuro...?! Por causa de quê? De um mangá idiota?!

Você só pode estar brincando, né?! Não podia ter sido tão bom assim!

Isso não é motivo para viver! Isso é... isso é ridículo!

Saí correndo da loja de conveniência. Isso era ruim — muito ruim.

Preciso me apressar! Preciso voltar para a Akira, e rápido, ou então—

Um vento frio uivou.

As folhas de outono farfalharam nas árvores à beira da estrada. Um pombo empoleirado num galho próximo alçou voo. Olhei para o céu e ouvi o motor estrondoso de uma aeronave subindo cada vez mais alto. Atrás de mim, ouvi a voz abafada do atendente da loja dando seu "obrigado" padrão, seguida pelo toque característico das portas automáticas se abrindo. Um homem de terno saiu apressado, claramente incomodado por eu estar bloqueando a entrada.

Uma van de campanha eleitoral passou lentamente, com a voz de uma mulher ecoando nos alto-falantes.

— Contamos com seu apoio!

Um entregador impaciente, com uma caixa presa à motocicleta, acelerou ruidosamente para ultrapassar a van, e o ronco do motor ecoou pela avenida.

E eu... eu apenas fiquei parado ali, atordoado.

— O que... onde é que eu estou?

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