Volume 1 – Arco 1

Capítulo 22: E se For Tarde Demais?

Pela tarde ainda do dia 19 de março, o clima na escola se tornava mais tranquilo, com uma brisa morna entrando pelas janelas abertas e espalhando o cheiro de grama e folhas secas pelos corredores. O refeitório fervilhava naquele fim de tarde, cheio de vozes misturadas ao cheiro pesado de comida quente e suor adolescente, mas naquele canto específico onde Marry se encolhia, dobrada sobre a própria bandeja como se quisesse desaparecer dentro do uniforme amarrotado. O barulho parecia morrer antes de tocar nela. A bandeja diante dela estava quase intacta, o arroz frio formando pequenos montes que ela empurrava sem propósito com a ponta da colher.

Ártemis caminhava entre as mesas com um pudim nas mãos, um pequeno presente, sentindo olhares esquisitos seguirem cada passo, mas sem desviar; o coração dela batia rápido demais, e havia algo incômodo queimando embaixo da língua, uma urgência que não deixava ela adiar essa conversa nem mais um minuto. Quando parou diante da mesa, pousou o pudim suavemente, observando a expressão de alerta atravessar o rosto de Marry — um tremor rápido, o olhar desviando para baixo, o corpo encolhendo mais ainda, como um gato acuado esperando o pior.

— Eu não vim aqui pra fazer cena, nem pra entrar na onda desses idiotas que tão te atormentando desde o festival — disse Ártemis enquanto se sentava devagar, deixando o corpo afundar no banco como quem tenta parecer o mais inofensiva possível. Cruzou as pernas, apoiou os cotovelos nas coxas e inclinou o tronco pra frente, respirando fundo, tentando mostrar que não tava ali pra intimidar ninguém.  — Só… me escuta por uns segundos, tá? Não tô aqui pra te ferrar, nem pra apontar dedo, nem pra repetir essas merdas que tão falando de você. 

Ela passou a mão no cabelo, prendendo uma mecha atrás da orelha, o olhar fixo no rosto abatido de Marry.

— É porque tem uma pessoa muito fodida que tá sonhando com você, vendo umas paradas que não devia — continuou, a voz baixa, quase um pedido. — Vendo coisas que não devia ver. Coisas que tão deixando ele mal de verdade. E tudo começou exatamente do mesmo jeito que você caiu no festival da colheita. Igualzinho. Os mesmos sinais, o mesmo terror estampado no rosto, aquela sensação de que alguma coisa enorme e errada tá chegando... e você, Marry, você também tá no centro desse bagulho todo, queira ou não.

Ártemis apoiou as mãos entre as pernas, fechando e abrindo os dedos, inquieta, como se tentar manter o corpo parado fosse impossível com tanta coisa rodando na cabeça. O olhar dela tremia um pouco, não de medo, mas de preocupação verdadeira, daquela que pesa no estômago.

— Se você não quiser olhar pra mim agora, beleza... eu entendo, de verdade — disse ela, a voz ficando mais suave, quase quebrada. — Mas me escuta. Só isso. Me escuta, por favor. Porque tem gente que tá se ferrando feio por causa do que aconteceu com você e com um amigo meu... e se você não falar nada, se continuar nesse silêncio, eu tenho medo real do que pode acontecer com ele... e com você também.

Ela respirou fundo, puxando o ar devagar, tentando segurar o próprio desespero, mas nada no corpo dela colaborava. Os ombros estavam tensos, a perna balançava sem ela perceber, a boca comprimida num esforço de não deixar tudo sair de uma vez.

— Marry... — ela murmurou, olhando diretamente pra menina, sem piscar. — Eu sei que parece absurdo, mas eu tô achando que tem alguma coisa aqui dentro da escola. Algo que tá matando crianças e possuindo adolescentes, como se usasse a gente de hospedeiro. Eu não tô falando isso pra te assustar, eu tô falando porque… porque tudo aponta pra isso. O que aconteceu com você no festival não foi normal. O que tá rolando com o meu amigo também não. Não é coincidência. Tem alguma coisa errada de verdade.

Ela passou a mão no próprio rosto, exausta, mas firme.

— Eu não tô aqui pra te acusar, nem pra fingir que sei tudo — continuou. — Eu tô aqui porque você viu, você sentiu... e eu preciso entender. Porque se eu estiver certa… se algo tá entrando na cabeça das pessoas... não vai parar. Não vai escolher quem merece ou não. Vai continuar. E você pode ser a única pessoa que consegue explicar como isso começou.

Ártemis respirou fundo outra vez e deixou o corpo cair um pouco pra frente, como se estivesse entregando a verdade mais pesada que já disse na vida.

— Então, por favor… me ajuda a entender isso antes que alguém desapareça de novo.

Marry permaneceu imóvel por alguns segundos depois de ouvir cada palavra de Ártemis, como se o mundo tivesse ficado pesado demais para se mexer. O corpo dela ficou tenso, rígido, quase dolorido, e os olhos piscavam devagar, tentando afastar imagens que voltavam sem sua permissão. Ela sabia que era verdade. Sabia que aquilo a perseguia todas as noites, que a voz de Ártemis não estava inventando nada, mas ouvir em voz alta — ouvir alguém nomear aquilo — parecia arrancar uma ferida de dentro dela com a unha. A respiração ficou presa, curta, como se o ar tivesse grudado no fundo da garganta, e a boca dela tremia enquanto tentava empurrar tudo para longe. Mas não dava. Não dava mais. O peso estava ali, agarrado na pele, e o silêncio só apertava mais.

— Eu... eu não quero falar disso, não quero... — começou baixinho, as mãos apertando o uniforme com tanta força que os nós dos dedos ficaram brancos. — Eu não quero falar de você, não quero falar dele, eu não quero... — A frase quebrou no meio, e ela fechou os olhos com força, como se pudesse impedir que algo escapasse. Mas quando ergueu o rosto, finalmente, o choro já vinha sozinho, correndo pelo queixo, molhando o pescoço, descendo sem controle. — O Gumer... — sussurrou Marry, e o nome saiu leve, quase sem som, como se tivesse escorregado para fora contra a vontade dela. Mas ele saiu, e isso bastou para que o corpo inteiro dela quebrasse de vez. Ela pressionou ambas as mãos contra a boca como se quisesse empurrar o nome de volta, como se fosse perigoso demais existir do lado de fora, e o choro se tornou um tremor convulsivo, quente, desesperado, incapaz de parar. — Eu... eu não queria... — deixou escapar, a voz quebrada, a pele manchada pelas lágrimas. — Eu juro que eu não queria... eu... eu não sabia o que fazer…

O choro tomou o corpo inteiro, sacudindo os ombros enquanto ela tentava respirar e falhava miseravelmente. A mão subiu para cobrir a boca, mas os dedos tremiam demais, e a outra mão agarrou a borda da mesa como se precisasse se segurar no mundo físico antes de cair. O rosto dela já estava contorcido num desespero cru, um medo tão grande que parecia vivo, instalado dentro dela.

Ártemis congelou por um segundo quando viu Marry desabar daquele jeito, como se alguém tivesse puxado o chão debaixo dela. O peito de Ártemis deu um tranco tão forte que doeu, e a respiração saiu num soluço abafado antes que ela percebesse. Os olhos dela arderam de imediato, e em poucos segundos já estavam cheios d’água, borrando a visão da menina que tremia na frente dela. Ártemis se inclinou sem pensar, o corpo inteiro reagindo antes da cabeça, as mãos trêmulas estendidas como se tivesse medo de encostar, medo de machucar, medo de fazer qualquer coisa errada. A garganta dela se fechou, um nó bruto que rasgava cada tentativa de falar, e quando conseguiu soltar a voz, foi quase um choro preso.

— Marry… ei, por favor… — murmurou ela, a voz falhando no meio da frase enquanto ela piscava rápido demais, tentando manter o próprio rosto firme, mas falhando miseravelmente. — Não faz isso sozinha, não. Não… não assim.

— Eu não aguento mais isso… — murmurou Marry, mas era quase um soluço. — É horrível… eu morro todas as noites, você entende? — Os olhos dela procuraram os de Ártemis, mas não era pedido de ajuda; era confissão. Era desespero. — Eu morro afogada no meu próprio sangue, eu sinto tudo... eu acordo engasgada, eu acordo suando, eu acordo querendo vomitar, porque eu sinto que... — outra lágrima caiu, pesada, quente — eu sinto que morrer não é tão ruim assim depois de tantas vezes.

Ela passou a mão pelo rosto, mas era inútil — as lágrimas voltavam, insistentes, como se viessem de um lugar que não tinha mais fundo.

— Eu acordo querendo morrer de verdade, porque é como se eu estivesse me acostumando... — a voz falhou, sumiu, depois voltou num fio fino. — Me acostumando com a ideia de que não faz diferença. Que dói menos do que estar acordada. Que dói menos do que lembrar dele... Eu só queria... parar... — disse finalmente, olhando para o vazio. — Só parar de sentir isso. Só parar de morrer. Todos. Os. Dias.

Ártemis chegou mais perto, encostando as mãos nos braços de Marry, a respiração curta, rápida, como se estivesse se afogando junto naquele sofrimento.

— Ei... Marry... Eu tô aqui… eu tô aqui, caralho… — disse, a voz trêmula, e cada palavra parecia raspar por dentro — Olha pra mim, por favor. Eu tô aqui. Você não tá sozinha nisso, eu juro. Eu juro.

E naquele momento, não havia refeitório, nem alunos cochichando, nem bandejas, nem professor algum no mundo que pudesse fingir que aquilo era normal. Marry estava se quebrando por dentro, sem conseguir mais esconder que algo estava matando ela — do lado de dentro — um pouco mais a cada noite.

Ártemis ficou ali por alguns segundos, tentando ajudar Marry a não desmoronar, mas algo dentro dela começou a se abrir como uma porta velha que ela evitava encostar. Um pensamento entrou sem pedir permissão — rápido, violento, atravessando o peito — e quando ela percebeu, já estava respirando pela metade. E se o Gumer passou por isso também? A imagem dele, sozinho naquela clínica, tremendo ao falar dos sonhos, da dor, do sangue, voltou como uma pancada na cabeça. O rosto escuro dele, sempre tão vivo, tão cheio de luz, agora misturado com a mesma expressão quebrada de Marry... o mesmo medo. E se ele também pensou em morrer? Marry morria todas as noites. Gumer morria todas as noites. E os dois carregaram isso sozinhos enquanto ela brincava de ser a esperta, a sarcástica, a que não se abala. Agora o chão dela estava rachando e ela sentiu isso de verdade, sentiu nos ossos. A imagem de Firefy tremendo ao falar dele, e Glomme escondendo um desespero que só quem olha com carinho percebe, voltou tão forte que queimou. O medo de perder qualquer um deles — perder de verdade — subiu pela espinha dela como gelo. Ártemis largou o ombro de Marry sem perceber, as mãos escorregando pelo ar até cair no próprio colo, e desabou sentada no banco com um baque surdo, como se as pernas não sustentassem mais.

Ela abriu os braços, deixando-os cair ao lado do corpo, soltos, derrotados, como se tivessem desistido junto com ela. A expressão travou inteira — olhos arregalados, respiração curta, a boca entreaberta num pânico silencioso — e as lágrimas simplesmente começaram a descer. Não eram lágrimas bonitas, nem contidas. Eram pesadas, quentes, correndo pelo rosto com força, acumulando no queixo antes de despencar como pequenas quedas-d’água na calça que vestia. Era um choro mudo, mas devastador, como se tudo que ela tinha segurado até ali estivesse escapando de uma vez.

Na cabeça dela, um único pensamento martelava, repetindo sem parar, sufocante: E se algum deles não aguentar? E se a próxima vez que eu olhar pra Firefy, ela estiver quebrada como a Marry? E se o Glomme desaparecer? E se o Gumer... e se ele... Ela apertou os olhos com força, mas não adiantou — ver Gumer morto dentro da própria mente dela doeu como uma facada. E se um deles se matar? E se eu perder todo mundo? E se isso nunca acabar? E se essa merda me seguir também?

O mundo parecia pequeno, apertado, como se o ar tivesse ficado grosso demais para respirar. O coração batia rápido, doído, como se quisesse sair correndo antes dela. Ela não conseguia olhar para Marry, nem para a mesa, nem para as próprias mãos. Só sentia o peso: o peso de saber que tudo aquilo podia alcançar qualquer um deles. Que podia tirar um deles dela para sempre. Que ela podia ser forçada a viver com isso — com a ausência de alguém que ela amava, carregando a culpa como um fantasma grudado na pele.

E ali, sentada naquele canto do refeitório lotado, com lágrimas caindo sem pausa, Ártemis percebeu o quanto estava com medo. Um medo cru, profundo, desesperado — medo de ver outro rosto familiar quebrado, medo de perder alguém de novo, medo de não conseguir impedir nada. Medo de amar pessoas que estavam sendo caçadas por algo que ela nem sequer entendia.

E, pior de tudo… o medo de ser obrigada a viver com essas perdas pelo resto da vida.

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