Volume 1
Capítulo 3: Reconhecimento
Arremessado no pequeno abismo que beirava a floresta, o homem-cão se esforçou para alcançar o paredão rochoso a sua frente, atuando com afinco para frear sua queda fatal.
Executou braçadas, estiramentos e rosnados de vigor, até que chegou próximo a margem, onde uma parte mais saliente do penhasco o atinge diretamente em sua testa, o que interferiu no símbolo luminoso que ornamentava sua fronte.
Interrompido pelo acaso, o símbolo desaparece, e com ele os olhares vazios que dominavam as expressões do homem-cão, agora inflamado pelo despertar da sua própria consciência.
Com uma expressão de confusão e motivado pelo pavor repentino da descoberta de sua queda, o homem-cão se esforçava desconcertado para alcançar a extremidade do pequeno abismo em que caia.
Seus dedos tateavam mais e mais sua última esperança de vida, até que finalmente o arrastar de seus membros se tornou suficiente para o início do seu resgate.
O máximo que pôde, ele se firmou.
Feridas e pancadas secas sustentavam o arrastar de seu corpo rente as rochas. E abraçado ao declive com seus olhos fechados, o homem-cão conseguia impedir sua iminente queda.
Ao chegar no chão de maneira mais segura que uma queda livre, ele se viu exausto, ferido e sem sequer saber onde estava.
Suas pernas tremiam e se curvavam pouco a pouco enquanto se esforçavam para manter seu dono ainda em pé.
Já quase de joelhos, o homem-cão cedia à exaustão. Seus os olhos esgotados já não mais demonstravam sincronia e nem mesmo simetria, e quase já desfalecido, ele se sentou à beira do abismo, para tentar não morrer um pouco.
O descanso forçado era inevitável. Sua mente oca de dor não atuava e nem opinava. E por alguns lentos minutos, ele só observou, vazio.
Dois quartos de hora foram suficientes, e no vácuo de seus pensamentos uma pergunta surge.
"Quem é você?"
Sem demora, a lucidez do homem-cão pulsa. E olhar seus arredores para entender sua situação era a única opção.
Mas cego pelo cansaço e confuso pelo susto, tudo que conseguia entender era que estava em frente a uma pequena estrada de chão, seguida por um grande rio de águas turvas e espelhadas mais à frente.
Sua visão estava realmente embasada, suas pálpebras pesadas como chumbo e seu corpo ardia em dor e febre. Mesmo assim o homem-cão tentava se levantar
Se escorando no abismo, ele se vigorava com sua vontade, e usando todas as forças que ainda lhe restavam, o homem-cão levantava em sua imaginação, mas seu corpo não respondia de acordo. O que o obrigou a voltar a sua posição de total exaustão anterior.
De pé, a visão debilitada poderia lhe ajudar com um pouco mais de alcance, contudo sua posição atual era tudo o que a fraqueza poderia lhe oferecer .
Então olhou dali mesmo. E para surpresa de sua desatenção, avistou um machado ligeiramente adornado próximo a sua mão direita.
A visão daquele objeto se soma com estranheza ao entendimento do homem-cão.
–...Mas…Afinal…De quem é isso? – questionou o Homem-cão.
Com tudo, não fazer nada além de pensar e olhar se provou como algo útil. E contemplativo por imposição, logo observou que, nessa circunstância de desmaio iminente, o mais importante não era entender a precedência desse objeto, mas sim conservar a manutenção de sua posse.
E como única ação possível a essa altura, o homem-cão se esforçou ao máximo para alcançar a arma, que até o momento o pertencia. Empenho esse que extinguiu todo seu vigor.
Sinais de dormência em seus membros gelavam seus sentidos, e a angústia da presença do fim dominava sua mente. Apertar cada vez mais o cabo do machado era o mais próximo de uma mão amiga que o homem-cão poderia ter naquele instante. E enquanto seus olhos se fechavam para esse mundo, à noite chegava suave com seu manto para cobrir assim sua síncope.
Inconsciente, ele estava à mercê de tudo. Sombras refletidas nos arbustos precederam ruídos vindos de todos os lados. Contudo, essas figuras que circundam, se mostravam como pequenos animais noturnos que cheiravam e mordiscavam a novidade da floresta. Tudo para, quem sabe, saciar sua fome com o futuro cadáver.
Tantas pequenas visitas só cessam ao amanhecer, quando um homem de idade avançada, que passava por ali, avistou o ente sentado na beira do barranco, imóvel e cheio de machucados pelo corpo.
Como primeira impressão, essa visão já o impressionou, pois não tinha características humanas. E por essa região criaturas assim não eram nada comuns.
Contudo, observou com mais atenção, e viu que a criatura segurava um machado de batalha médio em sua mão direita.
O que o deixou ainda mais assustado, afinal, ninguém carrega esse tipo de machado para cortar lenha.
Muito receoso, o idoso evitou passar próximo a criatura.
Passos lentos e cautelosos concederam ao velho algum tempo de observação, tempo suficiente para dar uma maior atenção ao machado de valor tentador.
Tal item parecia ser de uma qualidade bem alta para os padrões dessa região. E se equiparava às armas empunhadas por soldados de razoável patente.
Assim, devido ao lucro que poderia ganhar, o idoso se fixou em sua posição atual e buscou em cada espasmo raso de dor, motivos para convencer sua coragem de que essa criatura seria somente um ladrão que encontrou seu destino nas mãos da guarda real que patrulhava a floresta.
Já convencido, e munido de um ímpeto de dois minutos, o idoso tentava tirar a valiosa arma da criatura sem consciência.
Com cuidado, o idoso se preocupou até mesmo com o barulho de sua saliva enquanto passava por sua garganta, e enquanto começava a puxar o machado da mão da criatura, ele ouve uma voz.
– Água… Por favor… Água…
O velho saltou para trás com o susto, e mesmo sem poder dizer de qual direção se originou essa voz, tinha certeza, em seus instintos, de quem se originava esse pedido.
– Água... Me ajuda… Águia…
Com o coração que saía pela boca, o idoso olhou apavorado para a criatura, e confirmou o que seu medo já dizia, a criatura estava pedindo sua ajuda.
O ancião observava já paralisado pelo ataque pendente a vir, segundos duravam horas para a mente aflita. Com tudo, o silêncio era o único agressivo ali.
Os olhos da besta eram os únicos a se mover neste momento. Ela estava indefesa.
Era agora ou nunca. Com uma expressão de puro pavor, ele junta coragem, força e indiferença muito além de seus limites, e puxa o valioso machado das garras da besta.
– Hã!? Não, não! É meu!... É só o que eu tenho!! Larga! Cof… Cof… Lar… ga… Cof.
E após resistir pouco, a criatura, já degradada, solta seu machado. Que é rapidamente escondido pelo idoso em sua bolsa, enquanto ele corre floresta adentro, sem nem mesmo olhar uma vez para trás.
– Filha da mãe!! – exclama o homem-cão com uma lágrima quente em seu rosto – Mas que droga!!! cof! cof! Me devolve… Cof!! Poxa isso é meu!!... Olha senhor!!!... Eu estou muito mal!!... Cof!!… Me ajuda por favor senhor!!... Cof!!...
Cada vez mais o pesar invocava lamentos e prantos, e já prestes a perder para exaustão outra vez, ele vê seu machado, única pista de seu passado, se afastando cada vez mais, até que suma de uma vez no horizonte.
– Argh!! Desgraçadoooo!! Velho filha da mãe!! Cof! Cof! – grita o homem-cão dominado pela revolta.
Sozinho na floresta, e sem entender o porquê acordou tão desventurado, o homem-cão olhou com aflição ao seu redor, na esperança de encontrar outro andarilho com o mínimo de empatia que o anterior não possuía. Mas depois que muito procurou em vão, as suas forças começaram a lhe faltar outra vez.
Sede e fome competiam com a febre e a dor, e nada poderia ser feito senão esperar o próximo que passaria por ali.
Inusitadamente, por coincidência ou não, ao aceitar sua condição de total dependência, o homem-cão percebeu que não mais era dominado pelos gritos de pavor em sua mente. E que se estava com sede, era só rastejar até o rio que havia visto próximo a ele.
E com um sorriso doloroso de esperança, ele desmaiou novamente na beira do pequeno abismo.
Ao início do entardecer daquele mesmo dia, o homem-cão retomou a sua consciência com fervor, seus olhos arregalados e suas sobrancelhas cerradas emanavam determinação.
Sua mente espremida pelo esforço só tinha espaço para dois objetivos; Alcançar a margem do rio para matar a sede e lavar esses ferimentos, e acertar as contas com aquele velho desgraçado para pegar de volta o que me pertencia.
Assim, o homem-cão iniciava a primeira etapa de suas tarefas auto impostas. Onde ele, em um grande esforço, começava a se arrastar pouco a pouco em direção ao rio que estava próximo.
No entanto, ao chegar à margem do rio e se preparar para tomar seu gole de água tão esperado, o homem-cão se depara com sua imagem espelhada o encarando.
Um grande susto o fez saltar para trás de medo, onde no primeiro momento pensou ser uma criatura do rio, disposta a atacá-lo no momento derradeiro em que se aproximasse do rio.
Porém, logo o homem-cão se tornou consciente de uma verdade aterrorizante. Aquela criatura que o encarava, era ele mesmo.
Ainda cauteloso e desejando de todo coração estar errado, ele voltava para as margem do rio e observa sua imagem de perto, entendendo finalmente o porquê do idoso, que o roubara, se assustou tanto ao vê-lo.
Confusão e preocupação tomavam a mente do homem-cão. Contudo, a sede, a dor e a febre mediante a infecção se sobressaem aos seus sentimentos.
Então ele se abaixou na margem do rio e bebeu da água turva para saciar a sede intensa que o assolava.
E por fim se jogou dentro do rio, para lavar seus ferimentos cheios de terra e sujeira derivados de sua descida dramática.
Esfregando ferimentos ardidos e arrancando pedaços de pele que não mas lhe pertenciam, o homem-cão conseguia amenizar um pouco aquela situação perigosa que sua saúde flertava.
Com tudo que poderia ser feito para se curar já finalizado, o homem-cão se deitou perto das árvores que beiravam o rio, e dormiu, para tentar deixar seu corpo agir em pró do restante de sua melhora.
No dia seguinte, logo ao amanhecer, o homem-cão desperta de seu sono, ainda com febre alta, fome intensa e muitas dores por todo corpo. Mas no entanto, já conseguia ficar de pé e andar sem perder as forças. O que lhe deu a oportunidade de iniciar a segunda etapa de suas tarefas: Cobrar o que o velho que lhe roubou o devia.
Andava cambaleante pela floresta, e se escorava em árvores e pedras ao seu alcance, sem conseguir pensar com clareza em uma rota sensata para sua meta.
Este comportamento mediante tal situação só demonstrava que a lógica ainda não o havia alcançado por completo. O que forçou seus instintos a tomarem seu destino na mesma direção em que o velho havia corrido pela floresta.
Após algum tempo de caminhada, ele via ao longe da estrada uma pequena casa rústica e judiada pelo tempo, que poderia lhe servir de abrigo até que se recuperasse totalmente dos ferimentos. Dessa forma, o homem-cão chegou até a casa referida e verificou que a porta estava, por conveniência, destrancada.
Com cautela, ele olhou, tímido e receoso, escondido na porta semi-fechada, pronto para correr ao mínimo sinal de perigo visto naquele lugar.
Entrando, ele se surpreendeu ao ver aquele velho sentado à mesa do café, cheia de frutas.
Era o ladrão. O mesmo idoso que o roubou não faz muito tempo atrás.
"FILHA DA MÃE DESGRAÇAO!!!" grita o homem-cão em sua mente. "ME DEIXOU PRA MORRER E TÁ AQUI TRANQUILO SE FARTANDO!!! VOCÊ ME DEVE UM MACHADO SEU VELHO FILHA DA MÃE!!!
E mesmo cambaleando, o homem-cão não pensa duas vezes, indo rapidamente em direção ao idoso, que fica tão apavorado que cai de medo da cadeira onde estava sentado.
Dessa forma o homem-cão ficou de pé em frente ao idoso e perguntou a plenos pulmões.
– CADÊ O MEU MACHADO!? VOCÊ ME VIU CHORANDO DESESPERADO E MESMO ASSIM ME ROUBOU!!! E AGORA TÁ AQUI COMO SE NADA TIVESSE ACONTECIDO!!
E ele completa sua bronca para tentar aplacar a revolta que tomava seu íntimo.
– Eu devia fazer a mesma coisa que você fez e roubar tudo que você tem!!... Cof! ...Cof!... aaargh!!... Mas não sou filha da mãe igual você!!
Então o homem-cão pega uma sacola de pano que estava próxima e apanha várias das frutas que estavam sobre a mesa. Ao mesmo tempo, ele percebeu que havia outro cômodo na casa, e logo ele fala para o velho.
– Eu só quero o que é meu! então fica quieto aí enquanto eu busco meu machado, ouviu!?
O idoso apavorado mal conseguia ouvir as palavras raivosas do homem-cão, que se deslocava com dificuldade para este tal cômodo mencionado antes.
Ao entrar, ele se deparou de primeiro com uma cama comum e um simples criado mudo empoeirado.
Eram só dois lugares para procurar, e o homem-cão sem demora começa a vasculhar um após o outro, uma primeira vez. E então uma segunda vez. E agora, quem sabe, uma terceira seria a solução.
Mas nada mais havia ali.
Somente a decepção do homem-cão tinha algum valor naquele lugar.
" …Nada?" Se perguntou em pensamento.
Um suspiro profundo era o que lhe restava.
E enquanto olhava contemplativo para o teto, sentia que não adiantava esperar conveniências em uma vida tão curta e desafortunada assim.
Já pronto para sair, ele se virou manco e cansado em direção da porta em que entrou. Contudo ao olhar a parede referente a saída dali, ele vê diversas armas de diferentes formatos e tamanhos penduradas de fora a fora.
Como não havia visto essas extravagâncias antes, se perguntava o homem-cão em sentimento.
Com presteza, se animou a buscar seu machado importante. E uma a uma, ele observou, buscando a aparência desejada.
Formas exóticas pareciam ser regra neste mostruário.
Como tantas armas nunca vistas poderiam estar todas juntas em um mesmo lugar. Era a pergunta que surgia sem palavras dentro do homem-cão.
Porém, tudo já havia sido observado. E de novo, nada foi encontrado.
Decepcionado e tomado pela frustração, ele lançou um soco contra a parede das armas estranhas, o que machucou sua mão já tão fragilizada pelos ferimentos. Derrubando várias das armas que estavam à sua frente.
A dor era tão intensa que o fez se ajoelhar enquanto segurava seu punho machucado pelo golpe. Seus olhos quase se fechavam em uma reação natural de seu corpo, o impedindo de ver a bagunça que se espalhou pelo chão.
Espadas de duas mãos com dentes serrilhados, punhais com lâminas ocas para armazenar todo tipo de veneno, par de foices curtas que poderiam se unir por seu cabo. Todas essas ferramentas de batalha estavam caídas ao alcance da visão do homem-cão.
No entanto, enquanto abria seus olhos, algo diferente chamava sua atenção.
Esse item estava escondido no topo da parede, fora de seu ângulo de visão devido a luz ambiente que não o alcançava, e entre tantas novidades, só está foi capaz de o fazer esquecer a dor.
Era uma espada dentro de uma bainha. Porém, tanto a bainha quanto a espada pareciam uma só quando juntas.
Ao início da bainha havia algo que se assemelha a um soco inglês embutido e ligeiramente adornado com detalhes que auxiliavam a empunhadura do usuário.
Sua cor era de escuro metálico, igual ao resto da bainha e do punho, mas diferente da lâmina, que era de uma cor prata comum nos metais.
Ao desembainhar a espada, uma pequena parte desse soco inglês embutido se tornava uma meia salva guarda da espada, isso sem fazer o tal soco inglês perder nenhuma parte importante de sua estrutura.
A arma enchia os olhos do homem-cão. E era provável, no entender dele, que seu valor poderia exceder até mesmo o de seu machado.
Consistia na conveniência que ele duvidou até alguns minutos atrás, e a decisão era clara.
O homem-cão pegou a espada e, mais satisfeito do que podia imaginar, saiu do quarto, voltando para onde o idoso tinha sido deixado ao chão.
Ele acreditava que o velho já havia fugido a muito tempo dali e que logo chamaria ajuda.
Sua saída teria que ser breve e discreta, mas logo ele ouviu uma respiração profunda e forçada.
Os passos largos e desengonçados de dor em direção à saída se tornaram lentos e curiosos, e a fonte dos barulhos incitava a atenção do homem-cão.
Escondido embaixo da mesa estava o idoso, com a mão no peito e dificuldade de respirar. Ele se arrastava pelo solo de sua casa, aterrorizado só com a presença da criatura raivosa em sua casa.
Enquanto via isso, o homem-cão se enfraquecia na empatia e remorso. Onde suas pernas que o sustentavam com fúria, agora cediam lugar à preocupação da incerteza de seus atos.
Ainda assim não era suficiente.
E antes que seu andar ficasse mais comprometido, ele vai em direção a cadeira próxima ao idoso, se senta, e o pega pelo antebraço, o levantando até a outra cadeira ao seu lado.
– Fica tranquilo senhor! – fala o homem-cão, mais calmo. – Eu só peguei isso aqui e essas frutas, e já vou embora! Cof!! Mas da próxima vez…Melhor não me roubar!! Cof!!
Os ombros relaxam e o ar voltava a entrar em seus pulmões com mais normalidade, o velho estava calmo, e o homem-cão entendia que esta era a hora de ir embora.
Mordendo uma das frutas como conclusão, ele escorou na mesa e levantou, na esperança de suas pernas se firmarem novamente. E com o teste bem sucedido, vai assim em direção a saída.
Fora da casa, o caminho que trouxe até aqui continuava pela floresta, e como a estrada, o homem-cão também seguia, e continuava pela via sem destino, onde mais a frente terminou de comer suas frutas, e enrolou a sua nova espada na sacola de pano delas.
Bem mais a frente do caminho a saída da floresta se fazia visível, e uma cidade ao longe dali surgia em um horizonte de planícies verdes e floridas com as mais variadas cores da imaginação.
Paisagem encontrada com esperança pelo homem-cão, pois poderia ser um refúgio de descanso e cura para ele, além de um comércio de troca para seu novo item adquirido.
De qualquer maneira, uma cidade próxima a seu surgimento recente no abismo, com certeza traria algum esclarecimento de seu passado, ou pelo menos uma direção para o mesmo.
E com esse pensamento, o homem-cão se vai, em direção a cidade após a floresta, em busca de seu passado insólito.