Volume 2
Capítulo 54: Aquele que Desconheço
GRIS
Agora percebo quão tola foi a pergunta que fiz a Valefar. É impossível confundir um demônio com uma besta.
Assim como o wyvern de fogo, a abominação lupina possui um corpo projetado para matar. Todas as suas características demonstram isso.
— Use o frasco! — grita Verônica.
— Não podemos! Ela disse para...
Antes que os aventureiros consigam decidir o que fazer, a abominação deixa o anão caído para trás, no buraco repleto de sangue que se formou depois dos inúmeros golpes sofridos.
A criatura avança em uma investida quadrupede contra a loira que está perto de mim. Filemon lança um orbe de energia, mas o demônio nada sente.
Verônica tenta conjurar algo, mas o lupino a agarra e a retira do solo antes dela completar o feitiço. A loira o esmurra em uma tentativa inútil de escapar.
A criatura a levanta na altura de seus olhos com cores de rubis e solta um grunhido grotesco. A maga de vida se desespera e se debate, ao lançar inúteis flechas de água contra a face da abominação, as quais não atravessam o couro grosso do inimigo.
É quando a loira perde suas forças e desfalece nas mãos do ser demoníaco. Ela morreu?
— Verônica! — grita o homem das terras áridas. — Que se foda!
Filemon pega uma esfera de cristal, com algo verde dentro dela, parecido com uma semente, e a joga contra o corpo da criatura. A esfera se rompe, então vinhas e folhas saem de dentro dela e crescem, as quais dão forma a um ser um pouco maior que a Abominação Lupina.
O ser se assemelha a um golem, porém não é formado de pedra, mas de uma estrutura parecida com galhos e cipós, mesclada com folhas e algumas flores brancas por todo corpo.
Na altura de seu coração, há uma espécie de pedra de energia que brilha em um tom verde claro pulsante. Sei o que é: Um Entir, uma poderosa besta que vive em florestas de fluxo positivo.
O Entir agarra a Abominação e a envolve em seus cipós. Ambos entram em luta corporal e rolam pelo chão, enquanto trocam socos e aranhões, que fazem o solo tremer. Verônica cai das mãos da Abominação, mas permanece inerte no chão.
— Ignis Hasta — pronuncia Alienor. Uma lança flamejamente viaja e acerta o braço de Filemon.
Sangue coagulado respinga em gotas esféricas do corpo do homem de túnica, ele olha em direção a Verônica e diz com uma voz sofrida: — Fumus Harena... — Depois caminha em direção à companheira para socorrê-la, enquanto outra cortina de fumaça surge ao nosso redor. — Ruiva irritante...
É verdade, ela é, mas com o tempo você se acostuma.
Olho para o anão caído, e vejo o braço dele mexer. Uma sensação ruim toma conta de mim. Minha intuição me diz que algo péssimo está para acontecer.
— Urgh! Aaaaaah! — O anão se levanta e urra, ao passo que pega seu martelo de guerra.
Seus olhos estão vidrados. Seu corpo está repleto de ferimentos e sangue, e sua armadura; parcialmente destruída. Eu não acreditaria que ele pudesse ficar em pé nesse estado, se não visse com meus próprios olhos.
— Tsk! Frenesi... — reclama Filemon, então ele socorre a loira no chão. — Acorde, Verônica, acorde! Barathun precisa de você.
O anão me encara com seus olhos de besta, completamente fora de si, irracional. Barathun volta sua atenção em direção à Alienor e corre até ela, ao passo que atravessa a cortina de fumaça preta e sai do meu campo de visão.
Droga, ele a matará. Perdeu completamente o discernimento.
Minhas mãos continuam amarradas acima da minha cabeça, enquanto sigo caído e imobilizado no chão, com as algemas de promítia. Não conseguirei ajudá-la, sou um inútil.
Deveria ter cravado a espada na cabeça daquele anão quando tive chance.
— Hmm! Hmmm! — Não adianta, não consigo me soltar.
É quando algo toca minha mão esquerda, uma sensação gelada e úmida. Ao olhar, vislumbro uma loba prateada de olhos verdes me tocar com seu focinho.
Os olhos da loba brilham em um tom esverdeado, ao passo que as algemas derretem em meus pulsos. Em resposta, ativo o dom da visão para impedir o descontrole da magia e vejo o alinhamento da loba, é verde claro, igual a... Kali?
Ela pula em meu peito e aproxima seu rosto do meu, ao passo que rosna, mas não sinto hostilidade alguma vinda dela. É como se quisesse dizer algo, mas não entendo.
Escuto explosões da Alienor, ela precisa da minha ajuda.
Entretanto, antes que eu consiga me desvencilhar de Kali, um fluxo branco surge do corpo dela, na medida em que sons de sinos ecoam até meus ouvidos. A luz se intensifica mais e mais, em um formato de cilindro que nos envolve.
O poder da magia é tão forte que dispersa também a cortina de fumaça ao nosso redor, mas a luz é tão intensa que vejo apenas a silhueta de Alienor combater o anão, eles estão muito perto um do outro.
O som dos sinos desaparece, e a luz diminui, enquanto a loba toma a forma de uma garota de cabelos brancos e sardas no rosto, com vestes verdes. Ela desmaia em meus braços, usou muito fluxo.
Quanto me dou por conta, estou com a lumen em meus braços. Ela é mais leve do que eu imaginava. Deixo-a no chão com cuidado e só então percebo que algo mudou em mim: Meu braço direito está curado, assim como todos os outros ferimentos da luta.
Ela consegue usar magia de cura desse nível? Mas por que só agora?
O chão ainda treme enquanto o Entir e a Abominação trocam golpes. A onda de impacto da explosão da ruiva toca meu corpo, seguida da poeira.
Não tenho tempo para pensar nisso, preciso ajudar...
Ao olhar em direção à ruiva, vejo e escuto suas explosões sobre o anão, mas Barathun está tão tomado pela raiva que já não se importa com os ferimentos e balança seu martelo contra o corpo de Alienor. Ele a atingirá.
— Não, Barathun! — grita Verônica, já acordada.
Eu disparo em direção a eles a toda velocidade, mas percebo que não dará tempo.
Alienor olha em meus olhos uma última vez, ao passo que o martelo do anão a golpeia na altura da costela. Seu corpo se torce com o impacto, ela é lançada a dezenas de metros de distância, como se fosse um brinquedo arremessado por uma criança, e impacta contra uma das árvores, depois cai no solo, imóvel.
O anão percebe o corpo inerte da ruiva e encerra sua investida. Em contrapartida, ele volta sua atenção a mim e brada: — Aaahhh! — Ele vem ao meu encontro, sedento por mais.
Um pouco antes de entrar no alcance de seu martelo, desacelero meu corpo com o impetus, assim como fiz antes. Ele cai no mesmo truque e erra, perdeu a capacidade de raciocinar.
Saldo por cima do martelo e do corpo de meu inimigo, dou três socos na face de Barathun em pleno ar, uma rápida sucessão de golpes.
Tum! Tum! Tum! Isso deveria nocauteá-lo, mas ele segue de pé. O anão solta a arma tenta me agarrar, mas dou uma cambalhota sobre ele e caio em suas costas.
Desfiro outros três socos na região do rim, sua armadura termina de rachar, os pedaços dela caem no chão e produzem um som seco e metálico. Seria impossível alguém usar uma armadura tão pesada sem a vontade do guerreiro.
O anão já se vira balançando seu martelo de guerra na horizontal. Entretanto desta vez seu movimento é desengonçado, pois perdeu a tração de seu corpo, o martelo é mais pesado do que ele próprio agora.
Eu me abaixo, enquanto a arma passa sobre minha cabeça. Golpeio mais três vezes no estômago desprotegido do anão.
Tum! Tum! Tum! Ele solta o martelo e coloca a mão na barriga, depois em seu rosto, enquanto se afasta de mim.
— Urgh! Blergh! — Ele vomita sangue, na medida em que se apoia sobre os joelhos. Assim, ele volta seus olhos para mim: Não parece mais fora de si agora. — Que merda, seu demônio esquisito... Se você se entregasse, seus amigos não precisariam morrer.
Olho aos meus arredores. Kali segue desmaiada pela falta de fluxo. Alienor continua caída no chão, está pálida e sua aura está fraca, ao passo que um fluxo esverdeado e tênue envolve seu corpo.
A criatura lupina arranca o núcleo do peito do Entir com os dentes, a esmaga com a força da mandíbula. O núcleo se quebra em vários pedaços pelo ar e produz um som de vidro estilhaçado, na medida que lança um último brilho esverdeado.
O corpo do Entir para de se mover e perde sua cor verde para um tom cada vez mais marrom escuro. Ao fim, a criatura se esfarela e se desfaz em terra.
A abominação tenta se levantar, mas já está toda ferida e sangrando. Filemon e Verônica combinam uma torrente de água e um orbe de energia contra a criatura, a qual finalmente sucumbe e desaba pelo chão.
O corpo da abominação diminui de tamanho e toma a forma de um rapaz musculoso, alto e de pele bronzeada, de cabelos negros, muito diferente de um lumen.
— Está tudo bem, eu me entrego. — digo ao anão, enquanto levanto minhas mãos. — Só não matem meus amigos, por favor.
O anão limpa o pigarro da garganta e cospe um sangue viscoso no chão, depois grita: — Verônica, dê uma olhada na ruiva! Filemon, jogue a segunda maleta aqui!
O homem das terras áridas pega uma maleta dos pertences dos aventureiros e joga aos pés de Barathun.
— Por Dara, você não a matou, não é Barathun?! — Verônica corre em direção à Alienor para atendê-la.
A ruiva ainda possui uma fina aura, então sei que está viva ainda. Se ela conseguir se salvar, nem tudo estará perdido.
Estendo meus punhos em direção ao anão. Novamente, serei preso por algemas de promítia.
Entretanto, um brilho esverdeado capta minha atenção, ao passo que o anão se aproxima de mim com as algemas. A luz vem dos olhos do rapaz de pele bronzeada caído pelo chão, e ele estende seu braço em direção ao meio da clareira, enquanto pronuncia algumas palavras em baixo som.
— Uhm? — resmunga o anão, ao olhar para trás.
No centro da clareira, um forte fluxo de cor esmeralda surge, dele uma protuberância se eleva e dá forma a um ovo de madeira com um metro e meio de altura. O ovo se rompe e revela um homem agachado, com seu punho direito e joelho esquerdo a tocar o solo.
O homem se levanta devagar e me encara nos olhos. Ele tem mais de dois metros de altura, cabelos e barba longos e pretos. Poderia ser dito que é de boa aparência, mas o desleixo o deixa com um aspecto de um andarilho.
Suas vestes são verdes e marrons, mas estão todas rasgadas e cheias de sangue já coagulado. Atrás dos rasgos em sua roupa, existe sangue, porém não há qualquer ferimento em seu peito.
Ele saca de uma adaga, mas não diz nada.
Qualquer leigo concluiria que é um caçador, mas a verdade é que eu já não sei mais quem ele é.
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esse é o melhor presente que um escritor pode receber.
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