Aelum Brasileira

Autor(a): Marin


Volume 2

Capítulo 43: A Vontade de Nila

GRIS

 

É o segundo mês de treinamento agora, e estou às margens do Rio Reluzente para aprender o segundo dom. Alienor resolveu correr pela plantação de trigo, está quase na época de colheita.

Não sou especialista, mas acho que os camponeses ficarão furiosos se ela estragar os grãos.

— Pois bem — diz o professor —, você já domina os conceitos sobre a resistência a ferimentos, agora treinará para ativá-lo em um conflito real.

— Como farei?

— Tenho planejado que Alienor use magia contra você, para que possa aprender a visualizar o fluxo se reunir e defender no momento apropriado. Entretanto...

Valefar olha para a plantação de trigo, a qual esconde a infame raposa, cuja presença só é delatada pela movimentação das plantas e o som das risadas.

— Alienor! — eu grito. — Precisamos da sua ajuda!

— Você acha que eu cairei em uma mentira tão deslavada?! — ela esbraveja de longe.

Só nos resta esperar. Eventualmente, ela voltará por vontade própria.

— Mas por que com ela? O professor não conseguiria me treinar também?

— Até certo ponto, sim, mas a maioria dos seus inimigos mais fortes serão usuários de magia; sejam eles humanos, bestas ou demônios. Não há muitos guerreiros que saibam usar a vontade do guerreiro, além disso, demônios e bestas também não usam. Portanto, será mais eficiente que você se prepare para confrontar magos.

— Professor, já faz um bom tempo que eu gostaria de saber... Como conseguimos diferenciar demônios de bestas?

— Como eu já te ensinei, Gris. Demônios surgem do contato de animais com o fluxo negativo; já as bestas, com o fluxo positivo. Uma besta normalmente é semelhante ao animal que lhe deu origem, mas quanto mais poderosa ela for, mais características novas ela desenvolverá. Entretanto, é um processo lento e sutil. Demorariam várias gerações para um animal se transformar em besta.

— E demônios?

— O fluxo negativo... — O professor olha para a plantação de trigo, mexe em sua barba e continua: — Ele corrompe a alma dos animais e deturpa seus corpos. Eventualmente, os funde com os de outros seres. Portanto, você verá características de muitas feras diferentes em um único demônio, como mandíbula de crocodilo em um animal com asas, por exemplo.

— Além disso, não são necessárias várias gerações para que o fluxo afete um animal, como é o caso das bestas. Cerca de uma década já seria suficiente para transformá-lo totalmente em demônio. Mas, como é uma transformação agressiva, nem sempre essas mutações são boas. Alguns demônios acabam como seres disformes e disfuncionais.

— Se assim for, professor, creio que as bestas sejam mais poderosas. Os efeitos do fluxo positivo apenas as beneficia, já os demônios, eles podem conseguir características boas ou ruins.

— Seu raciocínio é plausível. Entretanto, a verdade é que demônios normalmente são mais fortes e perigosos que bestas.

— Não faz sentido... Por quê?

— Demônios são territorialistas. Estão em luta constante para ter mais contato com as fontes de fluxo. Mesmo assim, depois de conquistar seu domínio e mesmo de barriga cheia, eles continuarão mantando. Farão isso por capricho, para ganhar mais território ainda, por diversão ou insanidade. Não importa o motivo: Um demônio sempre buscará a morte e a destruição de tudo o que encontrar pelo seu caminho.

— Só por isso? O fato do comportamento deles ser mais agressivo já os tornam mais fortes?

O professor dá um singelo sorriso, leva sua mão à barba novamente e diz:

— A resposta é não. Não é só por isso. Os demônios normalmente são mais fortes porque eles matam os seus mais fracos. Somente aqueles mais poderosos e eficientes sobrevivem e têm recursos suficientes para procriarem. Com o tempo e o sacrifício dos mais débeis, seus corpos se moldam a serem perfeitos para sobreviver, matar e procriar em determinado ambiente. É um ciclo sem fim que os tornam cada vez mais poderosos.

— É uma forma cruel de se viver... — comento.

— De fato é, mas a maioria dos demônios não compreendem o conceito de crueldade ou bondade, isso só faz sentido para nós, humanos. Nós analisamos fatos e comportamentos, depois categorizamos dentro desses dois conceitos: Bom e mau.

O Professor olha para meu rosto e percebe que não compreendi completamente o que ele quis dizer, então volta a explicar de outra maneira:

— Imagine que um menino misturou feijões brancos e pretos e os espalhou sobre uma mesa. A mãe do garoto ficou furiosa e, como punição, o obrigou a separá-los em dois potes, um branco, outro preto. Seria uma tarefa simples, verdade?

— Demoraria um tempo, mas é simples de se fazer.

— Agora imagine que esse mesmo garoto seja cego. Ainda seria fácil para ele?

— Não...

— Assim também são os demônios. Eles não conseguem ver diferença da bondade ou maldade. Tudo o que conseguem ver são os três princípios: Sobreviver, matar e procriar. Inclusive, a esse conceito é dado um nome específico em um continente repleto de demônios. Lá você o conhecerá por um termo bem recorrente.

— Qual termo, professor?

— A vontade de Nila.

Criaaahhh! É como um hibrido entre uma salamandra e morcego-vampiro, mas com cinco metros de comprimento desde a cauda até a cabeça e deve pesar uns seiscentos quilos. É uma monstruosidade, com espinhos na cabeça que se estendem pela espinha dorsal até o fim da cauda pontiaguda que lembra a de um escorpião.

Seu corpo, repleto de escamas pontiagudas, é vermelho e preto; suas garras são curvadas em formatos de anzóis; seus dentes são aparentes e pungentes, feitos para rasgar carne.

Sua louca, você invocou um demônio para o campo de batalha?!

Ele dá alguns passos, sua movimentação é semelhante a um morcego-vampiro. O demônio salta em nossa direção, com um pulo de uns cinquenta metros ele reduz nossa distância em um piscar de olhos. Essa coisa não vai me atacar também, vai?

Jamal lança outro conjuro e, em reposta, uma espada-bumerangue surge a partir do chão, idêntica àquela que o wyvern quebrou, a qual o rapaz joga para sua companheira e diz: — Aisha, manterei aquilo ocupado, cuide do cabelo cinza.

Sinto-me sortudo por ser ele a enfrentar aquilo. Só espero que Alienor não exagere novamente. Não quero parar na prisão de novo.

— Certo! — ela responde, pega a espada bumerangue, gira duas vezes de maneira graciosa e lança a arma em minha direção. — Ventus deserti.

Com o vendaval conjurado, a espada ganha ainda mais velocidade.

Katchim! Faíscas voam para todos os lados ao defendê-la minha espada. Desvio a trajetória da arma inimiga, e ela voa em direção ao céu.

O vento criado por Aisha pouco efeito faz em mim.

Esta é minha chance de entrar no círculo e pegar a bandeira. Corro em direção ao objetivo, enquanto que Jamal se direciona ao demônio, seguido por uma dezena de lâminas voadoras.

Aisha aponta o dedo indicador de sua mão esquerda para mim. Um fluxo branco se forma na ponta de seu dedo.

— Aqua salitas — pronuncia Aisha.

Um projetil de água semelhante a uma flecha é disparado. Reforço minhas defesas com a vontade do guerreiro.

O disparo acerta minha barriga, mas o ferimento é superficial. É rápido, mas não é tão poderoso quanto os ataques da Srta. Raposa. Precisarei manter as defesas o tempo todo, portanto não quero prolongar esta luta por muito tempo.

Parto em direção à bandeira protegida por Aisha com o dom da velocidade ativo.

Ela recita outro conjuro e uma corrente de vento passa por mim sem qualquer efeito. Aisha arregala os olhos, sem entender, ela se desespera.

Assim que adentro ao círculo verde, a combatente levanta sua mão esquerda e lança outra flecha de água em meu rosto.

Defendo com a espada e continuo minha investida. Porém, a silhueta de Aisha muda: É medo.

Entretanto, ela não olha em meus olhos, mas na direção de meu ombro esquerdo. É quando um grito vindo de minhas costas surge: — Aaah! — É Jamal.

Ao virar meu rosto, vislumbro o combatente caído no chão com o ombro perfurado pela cauda do wyvern. O demônio se prepara para finalizá-lo com uma mordida.

Algumas espadas voadoras estão fincadas pelo corpo do demônio, o qual ignora os ferimentos, outras estão despedaçadas e espalhadas pelo chão.

A plateia fica em silêncio, os soldados fora do campo de batalha olham para a direção do mezanino e aguardam a ordem de intervenção da árbitra. Não posso deixá-lo morrer.

Ele possui características de vários animais, não é mesmo, professor?

O demônio que eu vejo possui orelhas semelhantes às de um morcego. Solto minha espada, e ela cai no chão. Levo os dedos da mão direita à minha boca, ao passo que reforço meus pulmões com a vontade do guerreiro.

— Fiiiuuu! — Lanço um assovio agudo. O wyvern agoniza e libera o rapaz de seu ferrão.

Quando me dou por conta, meu corpo já se moveu sozinho em direção ao demônio. O chão aos meus pés racha na medida em que avanço.

Só então percebo que soltei minha arma para assoviar. A espada negra ficou para trás, perto de Aisha.

O wyvern se recompõe, vira seu rosto de lado, e um de seus olhos se fixa em mim. O demônio se abaixa para pegar impulso e salta em minha direção. Sua boca se abre, e vejo a infinidade de dentes serrilhados se aproximarem cada vez mais.

 Em resposta, aumento minha força e resistência ao máximo, ao passo que me preparo para golpeá-lo com a mão esquerda. No último instante, aumento também o peso de meu corpo.

Bam! O golpeio acima do focinho e a cabeça do demônio afunda pelo chão.

A poeira se levanta ao meu redor. Um alvoroço começa na plateia.

— Tá fazendo o quê, Gris? Ele estava do nosso lado! — grita Alienor.

Uma hora ou outra, ela acabará me matando.

O wyvern ainda se mexe, mas seu corpo se desfaz como fuligens de brasas, as quais se transformam em um fluxo negro ao passo que desaparece. Quanto ao competidor, ele está ferido e precisa de atendimento médico.

Eu me aproximo de Jamal, o qual mal tem forças para reagir e estendo minha mão para ele. O garoto dá um sorriso amigável, aceita meu gesto e diz: — Obrigado, cara. Achei que eu fosse morrer. Hum?!

Ele arregala os olhos ao sentir o aperto em sua mão. Ele puxa seu braço, mas eu não o solto. É quando eu o giro e o arremesso.

Ai! Ai! Meu braço, que dor! — reclama Jamal, na medida em que desliza pelo chão e sai da área do campo de batalha.

Não foi a maneira mais leal de se vencer, mas ele receberá o atendimento que precisa.

— Ahm? — Aisha solta sua cimitarra no chão e inclina sua cabeça para o lado, apática e sem entender o que ocorreu.

Sua espada voadora, enfim, cai contra o solo e produz um som metálico, enquanto quica até perder o movimento.

O público faz um estranho silêncio, o qual é quebrado por um dos lumens da plateia, o qual está a poucos metros de mim na primeira fileira: — Você viu, que canhota forte ele tem?

Alguns médicos finalmente aparecem e começam a atender Jamal, um deles o examina, olha na direção do mezanino e faz um sinal positivo com a mão.

— Vencedores: Gris e Alienor de Vermilion — anuncia Vi Kari.

— Aê! Boa, canhoto! — grita alguém.

— Poxa, Gris. Não precisava arrebentar a cara da minha invocação. Você tem ideia de como é difícil fazer um ritual durante uma luta? — choraminga Alienor, com a cabeça baixa e fazendo beiço, ao passo que pega uma das cinzas da criatura e a esfrega entre os dedos. — Ah! Mas tá bom...

Se continuar assim, eventualmente serei eu o atendido por médicos.

Mas não há problema, fico feliz que ela tenha se esticado um pouco. Acho que deixei escapar um sorriso, só espero que ela não tenha visto.

 

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