Aelum Brasileira

Autor(a): Marin


Volume 2

Capítulo 37: O Garoto de Roupas Estranhas

GRIS

 

O professor e eu usamos um daqueles elevadores para baixar aproximadamente vinte andares do palácio, então nós subimos pela ponte por um andar e caminhamos até aqui.

O local em que estamos é o interior de uma das árvores. Aqui não há casas, mas diversos comércios espalhados em tendas, além de algumas portas que dão acesso às lojas.

Em sua maioria, o local vende ervas e poções, mas aparenta ter algumas pedras mágicas também. Grande parte dos vendedores possuem cabelos brancos, são lumens.

Não vejo muitas crianças, porém todos eles são muito jovens, com aspecto de terem aproximadamente vinte e cinco anos. Entretanto sei que eles devem ser bem mais velhos do que aparentam.

— Aqui é o comércio da cidade? — pergunto ao professor.

— Sim, é o andar vinte e cinco, exatamente no meio do palácio. Nesta ala, se encontram a maioria dos profissionais e utensílios médicos. Átrios é o segundo melhor usuário de magia de vida deste país e tem uma clínica aqui. — O professor aponta para a porta de uma das lojas.

— Lembro que, o Sr. Khan havia dito que Átrios não estava na cidade.

— Sim, mas preciso confirmar com meus próprios olhos.

Creio que o professor tenha razão, pois poderia ser um artifício do líder lumen para aceitarmos sua proposta.

Ah! Entendi o motivo de estarmos aqui — digo isso e olho para o meu braço. O professor me devolve um sorriso discreto e abre a porta do consultório.

— Entre você também, Gris.

Bom dia. — Escuto uma voz feminina falar em linguagem lumen. — Ah! Senhor Monstro da Floresta de Prata, seja bem-vin...

Ai! — Sinto uma fisgada na minha cabeça. Quando me dou por conta, estou de joelhos no chão.

— Gris, está tudo bem? — O professor se ajoelha também e me analisa para ver se há algo de errado com meu corpo. — Srta. Miril, poderia falar na linguagem de Thar e me chamar somente de caçador, por gentileza?  Creio que tenham usado nele a magia avançada: Transferir Conhecimentos. Fizeram sem seu consentimento. Receio que o Gris aprendeu a linguagem lumen à força.

Ah! Pobrezinho. Reprimir conhecimentos implantados pode causar espasmos ou desmaios. Você não deve negá-los, jovenzinho, ou sofrerá com isso, apenas aceite as informações que você ficará melhor.

Miril volta sua atenção ao professor e continua: — Você disse transferir conhecimentos, avançada, correto? Deixe-me confirmar algo aqui, por gentileza.

Eu me levanto do chão com a ajuda do professor. A Srta. Miril é uma lumen com aparência jovem, ela veste um jaleco todo branco, com uns óculos em seu rosto, e está com seu cabelo amarrado.

O local que estamos é um consultório, e o único até o momento que está repleto de utensílios, frascos e equipamentos.

A lumen se dirige a uma estante e pega um dos diversos livros que ali estão. Miril o foleia por um instante até que para em uma página e diz:

— Aqui! Magia avançada de transferir conhecimento, potência mágica nível oito. É uma magia acima das minhas capacidades. Esperem... Isso é uma magia que somente pode ser usada por santos e algumas bestas muito poderosas. — Ela olha para o professor e franze a testa.

— Não se preocupe. Isso não será um problema para você ou para o Dr. Clépio, prometo — diz Valefar.

— Certo, certo. — Ela volta seus olhos para o livro e arruma seus óculos. — Enfim, não conseguirei...

Miril relê algumas vezes a mesma página, com um olhar de preocupação. Então ela pergunta: — Você disse que a magia foi feita sem o consentimento dele?

— Foi — responde o professor.

A lumen olha para mim e espera uma resposta, como se não acreditasse nas palavras do meu mentor.

— É verdade, eu não havia aceitado tal magia.

— Vocês estão de brincadeira, não é? Essa magia de vida é de oitavo ciclo, mas se for feita sem o consentimento do alvo, então a dificuldade a torna uma magia de décimo segundo ciclo. Creio que o Dr. Clépio poderia remover os efeitos, mas ele não está aqui agora.

— Professor, o que é uma magia de ciclo doze?

O professor leva sua mão ao queixo. Parece meditar se deve ou não me ensinar isso. Então junta forças para responder:

— A magia de explosão da Alienor, em sua forma de raposa, era uma magia de terceiro ciclo, mas com poder destrutivo equiparável a uma de quarto.

— Mas se uma de nível quatro faz aquele estrago, então uma de nível doze...

O professor suspira, mexe em sua barba e, um pouco relutante, diz: — Poderia destruir toda Lumínia de uma só vez.

Engulo em seco. A dríade pode usar uma magia desse nível? De fato, as vinhas que ela usou para me arrastar eram tão resistentes que mesmo com o dom da força, eu não consegui rompê-las. Mas não imaginava que ela...

Volto meus olhos para o professor. Ela é tão poderosa e tem medo dele?

— Na verdade, não é por isso que viemos. Apesar que seria bom também analisarmos essa magia, por precaução.

— Sr. Caçador, espero que não esteja aqui para trazer problemas novamente.

O professor se aproxima de mim, arregaça a manga da minha blusa e mostra a cicatriz do meu braço direito. É quando ele diz: — Trouxe o Gris para que seja curado. Ele possui um ferimento sério em seu braço.

Miril arregala os olhos, se aproxima de mim e examina meu braço. Depois conclui: — É bem sério mesmo. Vejo que o braço dele foi arrancado por algum objeto cortante, e em um único golpe. Então foi curado por magia de vida? Não... Poção de cura... este padrão de cicatrização. Poções comuns não regenerariam tão bem assim. — Ela olha para o professor e estala os dentes. — Tsk!

— Gris, olhe para lá, por favor. — Miril aponta para uma parede, mas não há nada nela para ser visto.

— Diga-me, você sente algo?

— Não — Eu tento virar meu rosto para responder, mas ela me impede com sua mão gelada na minha bochecha.

— Continue a olhar para a parede, mocinho... Toque com o polegar cada um dos seus dedos — ela diz. Eu obedeço. — Agora faça força para fechar a mão. Se doer, pare e me diga.

Faço conforme dito, mas não sinto dor. A verdade é que meu braço está dormente.

— Nervos e tendões comprometidos. Parece que você recebeu um bom atendimento preliminar, o que salvou seu braço de ser condenado, mas curá-lo está acima das minhas capacidades. É bem possível que somente piore o estado atual. Creio que somente o doutor possa fazê-lo também. Sinto muito.

— Será necessária uma restauração avançada? — pergunta o professor.

— Sim, dada a gravidade, será necessário o uso da restauração avançada ou da magia de restauração verdadeira.

— Por ritual não poderia ser feito? — questiona o professor.

— Até poderia, mas eu não conheço tantos magos dispostos a fazê-lo. Talvez a Madame Karine de Vitari, mas não sei se ela aceitaria. Em todo caso, se conseguir mais quatro, além de mim, com potência mágica de vida de nível seis ou superior, isso já seria suficiente.

— Se for necessário, tentarei encontrar.

— Não se mexa, Gris — aduz Miril, então ela leva sua mão à minha cabeça e recita as seguintes palavras: — Deprendere Morboros.

Uma aflição toma conta de mim, um desejo insaciável de fugir, aliado a uma sensação de arrependimento, caso eu o faça.

Quando abro meus olhos e levanto minha cabeça, já não estou mais no consultório. Estou preso.

As paredes são montadas com pedras escuras e grandes, empilhadas. À minha frente, há grades de metal. É a cela de um castelo.

Olho para as minhas mãos. Em meus pulsos estão um par de algemas pretas e brancas. É promítia.

Algo me chama, eu sei que ele me chama, mas não o compreendo. Olho para frente e vejo do lado de fora das grades um garoto com aproximadamente oito anos, de pele pálida e cabelos pretos.

Suas vestes são estranhas, pois são negras e foscas, grudadas ao corpo, como se fizessem parte dele.

Ele não possui olhos, nem nariz, mas somente uma boca em sua face. Ele sorri, mas não é um sorriso comum, é simulado, é falso.

Ele diz algo. Não entendo.

— O quê? — pergunto.

Ele aponta seu dedo na direção das minhas algemas e fala novamente, mas não o escuto. Não compreendo. Sinto que perdi algo...

— ...is!

— ...is! Gris! — Escuto a voz do professor me chamar.

Aquele garoto, eu sinto que já o vi antes. Mas onde?

Quando me dou por conta, estou caído no chão e nos braços de Miril. Ela cheira a ervas medicinais. A luz do consultório faz meus olhos arderem.

— Por Kaz Aragon, o que você fez com ele, caçador?! — exclama Miril, a qual olha para o professor com raiva: — A mente dele será destruída se isso continuar. Você sabia que removeram memórias dele e não me disse?

O professor vira o rosto e não diz nada.

— O que aconteceu, Srta. Miril? — pergunto.

Ela suspira, então toma forças para explicar: — Usei uma magia para detectar enfermidades. É o procedimento padrão. Porém o que eu encontrei foram os efeitos de uma magia de morte para remover memórias. Uma magia poderosíssima. Tsk! Venha cá, sente-se aqui.

Miril me ajuda a sentar em uma cadeira. Estou suando frio ainda e sinto vontade de vomitar.

Com as mãos na cintura e uma postura ereta, Miril confronta o professor: — Memórias removidas, outras implantadas. Um garoto com o corpo cheio de cicatrizes e com a mente por um fio. É melhor você se explicar, e agora!

— Não tive escolha. — O professor não a olha nos olhos. — Se fosse de outro modo, ele já estaria morto.

Então é verdade, o professor sabe mesmo algo e não me contou.

Tsk! De todo modo, você precisa parar de brincar com a mente desse garoto. Se isso acontecer de novo, ele ficará louco, no mínimo.

— Eu garantirei que nada assim ocorra novamente — diz Valefar.

Alienor tinha razão. Minhas memórias de antes de conhecer o professor foram mesmo levadas por alguma magia poderosa.

— Eu consigo recuperar essas memórias, Srta. Miril?

Ela olha para o professor. Então reluta um tempo para dizer: — Se for um mago de vida talentoso, é possível, sim. Caso contrário, será melhor que você fique como está, ou sua mente poderá não suportar.

— Entendo, obrigado.

— Por falar em um mago de vida poderoso, onde está o Dr. Átrios? — questiona o professor.

— Ele foi chamado para uma missão de emergência e saiu ontem.

— Ontem? Que azar... — respondo.

— Há mais algum mago de vida que possa tratar do Gris? — pergunta Valefar.

— Creio que não... — Miril cruza seus braços, leva uma de suas mãos ao queixo e, pensativa, ela responde: — Digo, não um lumen, mas pode ser que algum dos visitantes possa. Muitos magos poderosos vêm para cá durante o festival. Além disso, há alguém que pode fazê-lo sozinho, mas não sei se ele aceitaria, é o Grande Ancião, Khan.

— Creio que estamos com azar mesmo, Gris — diz o professor, já a demonstrar sinal de que quer partir. Todavia, ele franze a testa e pergunta: — Pensei que Átrios tivesse se aposentado como aventureiro.

— De fato, se aposentou — responde Miril. — Entretanto, ofertaram um montante em dinheiro que ele não pôde recusar.

— Você sabe qual o tipo de missão que ele foi chamado?

— Não exatamente, pois eu estava em atendimento enquanto eles conversavam. Mas... — Miril senta em uma das macas, cruza seus braços e, relutante, diz: — Algo estranho me chamou a atenção, pois eles disseram que avistaram alguns demônios na Floresta de Prata. O doutor disse, antes de sair, que a Guilda de Aventureiros ofereceu trezentas moedas de ouro para resolver o problema.

— Demônios? Aqui? — eu pergunto.

O professor leva sua mão ao queixo e diz: — Também acho estranho, Gris. Demônios não se formam aqui, como eu já te ensinei. Entretanto há algo que eu ainda não mencionei a você: Existem algumas estruturas que surgem pelo mundo aleatoriamente e delas podem surgir demônios, mesmo em áreas de fluxo positivo. Teorizo que seja esse o caso.

O professor olha para a lumen e pergunta: — Responda-me algo, Srta. Miril, você saberia dizer qual a força desses aventureiros?

— Não entendo muito bem os termos da guilda, porém acho que ouvi o Dr. se referir a eles como de Classe “D”.

— Classe desastre?

— Sim! Acho que é isso.

— Se é o caso, eles morrerão.

 

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