Volume 1
Prólogo: O Contrato
O CAÇADOR
Há corpos jogados pelos corredores e salões, e eu preciso desviar de alguns deles para passar. Não há marcas de lutas, tampouco manchas de sangue no chão ou nas roupas das pessoas.
A maioria deles nem sequer percebeu o que aconteceu, tampouco tiveram chance de reagir. Eles simplesmente morreram e são milhares, talvez dezenas de milhares espalhados pela cidade.
O cheiro de putrefação já surge, e me sinto um pouco enjoado, afinal faleceram há uma semana. Mas ninguém se dará ao trabalho de enterrá-los, e tampouco eu me preocupo com isso. Já os poucos que sobreviveram devem ter medo de retornar agora. Creio que com o tempo seus esqueletos farão parte da paisagem.
Não consegui evitar tudo isso. Falhei em coletar as informações necessárias a tempo.
— Sinto muito, Srta. Cintia. Você me ensinou certo, e eu fiz tudo errado.
Na verdade, parece que todo esse mal me persegue, e tudo o que posso fazer é lutar contra ele o tempo todo. Porém, não é fácil se manter firme e eventualmente cometo um deslize, mas tenho a impressão de que sempre que cometo um erro o meu mundo desaba. Creio que esse seja o motivo de eu desistir de fazer o certo.
Tive certa sorte, meu pai me ensinou diversas coisas para que eu não repetisse os seus erros. Até determinado ponto, o conhecimento que ele passou me ajudou, e eu o agradeço por isso.
— Abençoado o que aprende sem errar — lanço minhas palavras destinadas aos escombros.
Ah! Pensei em voz alta novamente. Porém, não faz diferença, já que ninguém ouve além de você, não é mesmo, Sr. Coelho?
Hum... Não é tão fácil aprender sem cometer erros, verdade? O que meu pai queria dizer, hoje entendo, é que possui sabedoria aquele que aprende ao observar os erros dos outros. Perdão, estou aqui prestes a cometer o que é, talvez, o pior erro da minha vida e de forma voluntária.
Entretanto, é o caminho que resolvi trilhar. O fato é que eu já tomei a decisão, escolhi o plano, iniciei a execução, agora irei até fim. Igual você me ensinou, professor.
— Sim, professor! — grito em voz alta. Esta plateia não pode me ouvir mesmo.
Que nostalgia. Ops! Digo, quase ninguém pode ouvir...
— Perdão, te assustei, Sr. Coelho? Receio que esqueci novamente de você.
Creio que o Sr. Coelho não se importa, pois em breve não fará diferença alguma. Sobre o que eu pensava mesmo?
Ah, sim! De uns tempos para cá, começo a cogitar que o que as pessoas pensam sobre fazer o certo e o errado está muito ligado ao bem e o mal. Entretanto, o que é o bem e o que é o mal, e quem decidiu esses conceitos? Não fui consultado quando definiram isso.
Os sacerdotes de Dara têm uma definição sobre bondade. Vi em seus manuscritos: A bondade pode ser reconhecida nas atitudes que, se virtualmente praticadas por todos, em média acarretam em uma melhor qualidade de vida para a maioria.
Desnecessariamente complicado, verdade? Também acho, Sr. Coelho. Os seguidores de Dara costumam dificultar os conceitos para que o conhecimento não chegue àqueles fora do círculo. Todavia, explicarei a ideia anterior da forma que meu professor faria a alguém:
Por exemplo, o que vou fazer agora beneficiará apenas duas pessoas. Eu sou uma delas, mas milhares de outras poderão sofrer por consequência disso. Logo, o que farei é maldade, segundo os Dara.
— Não é irônico que exista utilidade até na sabedoria dos corruptos, Sr. Coelho?
Porém, a verdade é que todos esses conceitos não passam de um monte de bosta. O que eu penso sobre o bem e mal atualmente? Hoje penso que somos somente marionetes em um palco que não escolhemos estar.
— Hum... — Droga, perdi-me em pensamentos. Não tenho tempo a perder. Preciso terminar o que comecei.
Caminho por um longo corredor de um castelo, em direção ao último quarto. Por lembrar do motivo de estar aqui, apresso os meus passos.
Atravesso a porta e entro no grande salão. É um local enorme, com uma cama de casal improvisada no centro. As paredes estão repletas de pinturas e, meticulosamente distribuídas, estão várias esculturas. São todas belíssimas obras de artes, tão belas que até o mais humilde dos plebeus perceberia valor nelas.
Reconheço as obras, porque fui eu quem as roubou. São extremamente valiosas para o comprador certo. Mas, não é do meu feitio fazer esse tipo de coisas, em que pese minhas habilidades serem bem propícias para tal.
Na minha mão há uma gaiola, e dentro dela habita um coelho branco. Sim, ele mesmo, o Sr. Coelho. Ao depositar o animal sobre a cama, observo ao lado dele uma garota ruiva, que já estava ali deitada quando entrei.
— Gostou do passeio, Sr. Coelho?
Ele não pode me responder... Então observo a garota deitada.
Eu gostava de vê-la dormindo, era como se uma tempestade se acalmasse. Porque, enquanto dormia, não me atormentava. Dizer isso a irritava e era engraçado. Na realidade, ela era engraçada de qualquer forma.
A conheço há oito anos, e é um tempo considerável, pois em três eu já considerava o professor como minha família. Ela é importante para mim, e agora percebo que traz cor ao meu mundo. O meu oposto: Eu penso demais, já ela é impulsiva.
Quase me escapa um sorriso, que rapidamente é consumido por tristeza. Se continuasse assim, talvez uma lágrima escapasse. Pressiono meus lábios e viro o rosto para o lado.
Desta vez é diferente, você não vai simplesmente acordar, verdade? Pois está morta. Espero que me perdoe pelo que vou... pelo que fiz.
— Às vezes, meus olhos ficam irritados aqui também e lacrimejam um pouco. Creio que seja por conta da poeira do castelo — diz o Homem Magro que está do outro lado da cama. — A propósito, boa noite.
Ele surge de repente, assim que viro meu rosto para frente, e é como se sempre estivesse ali presente. Mas tenho certeza que não estava quando eu entrei, e não é a primeira vez que ele faz isso.
Não sei seu nome e não me surpreenderia saber que não possui um. Mas sua aparência é inconfundível e é de um homem extremamente magro, como se estivesse à beira da morte por inanição, cadavérico.
Todavia, sua aparência esguia é a única coisa que dá a impressão de se tratar de alguém fraco. Porque seu tom de voz é imponente, sua postura indica que até mesmo se o castelo ruísse, ele ficaria de pé.
Seu cabelo é branco, já seus olhos são negros como a noite, inclusive a esclera dos olhos é escura, e parecem dois globos pretos que impossibilitariam saber para onde ele olha. Ao menos seria assim, se sua pupila não fosse vermelha e brilhasse na penumbra deste salão.
Ele está vestido formalmente, como um nobre, como se este fosse um momento importante, e de fato é, ao menos para mim.
O comentário do anfitrião foi tão somente para atestar que percebeu um momento de fraqueza. Toda essa retórica não passa de um jogo para esse ser e parece que ele joga isso há uma eternidade. Mas o pior de tudo é que não sei exatamente quais são suas reais intenções, desta forma, sinto que sempre estou em desvantagem ao tratar com ele.
E agora, passo a barganhar com esse ser.
— Fico realmente feliz que você tenha cumprido sua parte no acordo — complementa o Homem Magro.
Ele não parece feliz, não esboçou qualquer reação em seu rosto.
— Sim, conclui os trabalhos inúteis que combinamos. Agora, pare de enrolar e traga-a de volta.
— O trabalho que você fez é pouco para pagar por trazê-la de volta. Não existe ninguém além de mim que possa fazê-lo. Portanto, a situação me deixa em uma posição bem confortável para avaliar este serviço como... inestimável. Entretanto eu abrirei uma exceção e farei o que você deseja. A verdade é que a única coisa que você tem que pode servir como pagamento são os seus próprios serviços, mas por um pouco mais de tempo, eu diria.
Estou certo que as tarefas foram para comprovar a minha determinação ou para me distrair.
— Dez anos? — digo.
— E nem um segundo mais, como tenho dito. Entretanto, antes de mais nada, as regras determinam que eu preciso lhe alertar dos termos do nosso pacto. Meras formalidades, e creio que o Sr. entenda.
A pouca luz da lua, que entra pela janela, reflete em vermelho nos olhos do homem esguio e, como não digo nada, ele prossegue:
— Dito isso, você prestará seus serviços durante dez anos, e estará sempre disponível a mim nos momentos que eu reivindicar, sem questionar e sem poder recusar qualquer ordem. Darei a ti sempre três opções, bem distintas entre si, e você escolherá uma delas. Após isso, parará imediatamente o que faz e todos os seus esforços serão direcionados a cumprir com a tarefa que você escolheu entre as três, até que o serviço termine.
— Sobre o contrato, quero incluir algo mais da minha parte. Quanto a ruiva e os demais que estiverem com um item com esse símbolo, você, seus procuradores, servos ou eu, ninguém fará mal a eles, direta ou indiretamente.
O símbolo em questão contém uma raposa sobre uma lua minguante, e está no pingente do colar da garota deitada. Aponto para ele enquanto falo.
— Uma cláusula interessante, mas muito subjetiva. Vejo que você aprende rápido Sr. Zoemors. Todavia, não posso aceitar uma cláusula tão genérica. Você poderia pôr um item desses em alguém que eu preciso me desfazer no futuro e isso me atrapalharia. Porém, posso aceitar se forem os que possuem esse item até o presente momento. Sei quem são, e não ganharia nada ao fazer mal a eles. Além disso, tenho uma reputação a zelar e ninguém firmará contratos comigo, se houvessem boatos que eu sou injusto.
— Não me chame de Zoemors. Meu sobrenome é Caçador. Em todo caso, apesar de eu acreditar que estou sendo enganado, aceito seus termos.
— Devo admitir que tanta desconfiança parte meu coração. Nada mais a acrescentar?
Há poucas coisas que eu tenho certeza sobre o Homem Magro. Entretanto, uma delas é que ele cumpre rigorosamente com seus contratos. A outra, é que ele é cruel, porém justo.
— Nada mais a acrescentar. Aceito os termos.
— E eu aceito os seus. Com isso, o contrato está feito.
Sinto uma brisa suave, ou melhor, a verdade é que o fluxo ao nosso redor que se deslocou.
— Não preciso assinar nada com sangue? — digo em deboche.
— Desnecessário. Não há valor em algo tão efêmero quanto uma folha de papel. A folha, a tinta e o sangue têm o mesmo valor se juntos ou separados. O fluxo é testemunha do nosso contrato e isso é suficiente. A solenidade foi respeitada; mas, se preferir, posso providenciar uma assinatura. Será teatral.
— Creio que não seja necessário.
O homem esguio posiciona suas mãos sobre a cama, a direita sobre Alienor e outra sobre o coelho. Sinto da mão esquerda do Homem Magro um fluxo de morte e da mão direita um de vida.
O coelho desmaiou? Não, morreu.
— Eu lhe proíbo, Alienor de Vermilion — diz o Homem Magro, que depois olha para mim e completa: — Daqui por diante, pelos próximos dez anos, seu codinome será Mors, o meu Procurador, ao passo que você me chamará de Patrão.
Simultaneamente, a pele de Alienor recupera seu tom rosado, e ela começa a se mexer. Mas, quando está prestes a abrir os olhos, o homem esguio toca sua testa, e ela desmaia.
— Lumínia — diz o Homem Magro, enquanto posiciona seu punho direito cerrado sobre a barriga de Alienor e com a mão esquerda estala seus dedos.
A ruiva some ao instante, tão rápido quanto ele próprio surgiu.
— Para aonde ela foi?!
— Cuidado com o tom. A partir de agora, eu sou o seu senhor e você é meu servo, logo não tolerarei esse tipo de comportamento. Em todo caso, não se preocupe. Ela está em Lumínia e segura. Não queremos que ela acorde aqui, não é mesmo? A garota te odiará ao perceber o que você fez. Ela é barulhenta e só atrapalharia os negócios.
— Sim, eu tenho certeza que ela me odiará, já havia calculado, mas sentirá algo ao invés de nada.
— Como ato de boa-fé, eu te enviarei até ela depois de concluir seu primeiro trabalho. Preciso que se mantenha motivado.
Para minha surpresa, o Homem Magro demonstrou pouco esforço para fazer o impossível, mas pude entender um pouco do que fez. Ele também manipula o fluxo de vida e morte ao mesmo tempo.
— Curioso sobre o que acabou de testemunhar, Procurador? Talvez eu te ensine, se você for competente em seus serviços. Por falar nisso, a primeira opção das três é coletar um determinado cajado, mas ele está em um labirinto...
Eu me sinto melhor.
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