Aelum Brasileira

Autor(a): Marin


Volume 1

Capítulo 1: A Floresta de Prata

GRIS

 

Imerso na completa escuridão, eu mal consigo me mover. Estou preso. Desejo sair, mas também sinto que me arrependerei se tentar. Do lado de fora, percebo que há alguém que me observa, mas não consigo ver seu rosto. Ele diz algo. Não o escuto. É quando eu acordo.

— Pesadelos? — pergunta um homem que toma café a poucos metros: é meu professor.

Um homem muito alto que aparenta uns trinta anos de idade. O professor é forte, atlético, de cabelos e barba negros, ambos com uns quinze centímetros. É de boa aparência, apesar de não se dedicar para isso.

— Não sei ao certo, professor. Eu me sinto mal, como se tivesse perdido algo importante, mas não lembro do que sonhei.

— Sei como é a sensação. Digo, de sonhar e logo esquecer. É normal. Não de muita atenção — diz o professor enquanto come um pedaço de pão intercalado com carne-seca e bebe um copo d’água. — Levante-se, garoto, coma algo e pegue seu equipamento. Hoje é o dia de atravessaremos a floresta até Lumínia.

Passamos seis dias na floresta caçando e no sétimo vamos à Lumínia. Essa é nossa rotina, salvo quando o tempo está ruim ou há sinais de bestas por perto. Nesses casos, adiamos um dia ou dois para sairmos, mas, fora isso, normalmente respeitamos a rotina com rigor.

— Posso comprar uma espada para mim, Sr. Valefar? Acho que o Sr. havia dito que seria hoje.

Valefar para de comer e, pensativo, ele responde: — Você guiará o caminho e, se seu desempenho for bom, eu comprarei.

— Oba, finalmente!

Quando nos conhecemos, o professor era bem mau. Entretanto, hoje em dia, ele é bom para mim e é divertido viver aqui com ele na floresta. Por isso, não posso cometer erros e preciso ficar atento e me lembrar de tudo que o Sr. Valefar me ensinou. Hoje eu guiarei o caminho e dará tudo certo.

Levanto-me da cama. O local que estamos é uma cabana pequena, feita com uma madeira muito escura, extremamente resistente e muito bem-feita. Ela possui um quarto com duas camas, uma cozinha, uma despensa e um banheiro.

Vou em direção à janela e o observo os arredores. A cabana está muito alta, é como uma casa na árvore, mas a árvore deve ter uns cem metros de altura, já a casa está a uns oitenta metros do chão.

— O dia parece bom para irmos ao vilarejo. Parece que não choverá e escuto o som de insetos.

O professor me ensinou que os insetos costumam ficar em silêncio quando animais e bestas ferozes se aproximam. Sendo assim, quando fazem barulho, significa que não há estes perigos por perto.

— De fato. — Valefar não dá muita importância e continua a comer.

Devo me juntar ao professor, caso contrário, ele ficará irritado se eu nos atrasar. Sento na segunda cadeira, pego um pedaço de pão e outro de carne-seca.

O Sr. Valefar me ensinou como se faz a carne. Depois que abatemos o animal, o deixamos sangrar, fazemos os cortes e a penduramos por um tempo, depois acrescentamos sal e a deixamos em um armário vedado.

Ali ela seca totalmente e dura vários meses. Aparentemente, sem o sal não seria possível fazer isto aqui, pois o clima da floresta é muito quente e úmido. Um dos motivos que vamos à Lumínia é para vender a carne. Apesar que esta deve ser a última vez que fazemos isso.

A verdade é que, apesar do professor me ensinar coisas para me tornar um caçador, muito do que ele me ensina não seria necessário para tal. O professor também me ensinou no último ano a ler e escrever a língua comum, e não é algo necessário para um caçador aprender. Também não é normal que ele, como caçador, o saiba fazer. Entretanto, apesar de muita coisa não fazer sentido, eu confio nele. Ele é bom.

— Está bem pensativo hoje, Gris — diz Valefar, após terminar de comer.

— Estou lembrando de algumas coisas que o professor me ensinou esses anos.

— Você faz bem. Hoje conduzirá o caminho, e eu te avaliarei. Precisará se lembrar de tudo. Hoje é um dia importante e, se bem-sucedido, significará que pode sobreviver sozinho na orla exterior da floresta.

A Floresta de Prata é dividida em duas, a interior e a exterior. Na parte interna o fluxo é muito denso, isso deforma os animais e os transforma em bestas, portanto a parte interior é extremamente perigosa. Porém seria um erro pensar que a parte de fora, a que estamos agora, é inofensiva. Ou seja, conduzir o caminho não é uma tarefa fácil.

A Floresta de Prata possui quinhentos quilômetros de uma ponta a outra, mas o percurso da cabana até o Vilarejo de Lumínia possui apenas trinta quilômetros. Aproximadamente nove horas de caminhada, o que inclui uma margem de tempo para qualquer imprevisto.

Não seria bom anoitecer durante o trajeto. Por isso, normalmente saímos cedo, caminhamos até lá, vendemos, compramos e trocamos o que precisamos, passamos uma noite na estalagem da Srta. Cintia e depois retornamos no dia seguinte, no primeiro horário.

— Acabe de comer. Precisamos sair logo — diz o professor.

— Sim, professor — respondo com a boca cheia de carne.

Ele tem razão: Não podemos demorar mais. Se anoitecer enquanto estamos na floresta pode ser perigoso. Nos arredores da Floresta de Prata existem animais predadores que são oportunistas e se aproveitam da escuridão.

Termino de comer, visto minhas roupas de caça, parecidas com as de Valefar. São roupas leves, feitas para não emitirem barulho e me locomover bem, com cores que se confundem com a mata.

Não devemos fazer barulho durante o percurso, se possível, pois podemos chamar a atenção de algum predador. O fato é que nos orgulhamos de sermos caçadores, mas, a depender da criatura que surgir, podemos virar a presa.

Digo isso, principalmente se surgir uma besta. Apesar de não serem comuns na borda da floresta, ainda pode ocorrer e o som pode as atrair até nós.

Coloco um cinto com uma aljava presa ao lado esquerdo da cintura, com aproximadamente vinte flechas e pego meu arco curto. Valefar coleta um arco curto também, porém maior que o meu.

Eu gosto de ir ao vilarejo, entretanto o professor me proibiu de conversar com as pessoas lá. Mas é legal vê-las e escutar o que dizem, digo, é bom viver com o professor, porém ver e poder escutar as outras pessoas, sem a preocupação de que uma fera possa aparecer, é muito bom, é um alívio.

— Temos que mascarar o cheiro das carnes, não é mesmo, professor? — Uma fera pode ser atraída pelo cheiro até nós.

— Isso mesmo, e como faremos?

Ahm... folhas de ceconte. Enrolaremos a carne com panos limpos, e acomodá-las dentro das mochilas com folhas de ceconte em volta.

— Excelente. Vá à despensa e pegue as folhas para fazermos.

Ceconte é um tipo de arbusto muito comum e bem abundante em Aelum. Suas folhas possuem um cheiro forte, mas não é desagradável, ao menos para humanos, e não afetará a qualidade da carne.

Porém, a maioria dos animais odeiam esse cheiro. Lobos têm ataques de espirros quando chegam perto delas, por exemplo, é engraçado. Assim, embrulhamos e acomodamos a carne.

— Creio que estejamos prontos. Vamos partir?

— Sim, vamos — responde o professor.

Eu saio primeiro da cabana com muita atenção aos arredores, pois pode haver alguma fera próxima a espreitar, mas felizmente não há nada estranho.

Estamos a vários metros de altura e aqui a maioria dos potenciais predadores não conseguem chegar. Além disso, dos que conseguiriam, não são tão efetivos nas alturas, porém isso não permite que baixemos a guarda em momento algum, fora da magia que protege a cabana.

Pouco depois de deixar o nosso abrigo, o professor também sai e, após constatar que o exterior é seguro, ele remove duas pedras roxas que estavam fixadas atrás da porta.

São itens mágicos e foram comprados dos anões. Um dos itens fornece magia de proteção, fortaleza de aço, já a outra possui a magia de silêncio. Ou seja, a combinação das duas permite que os sons não saiam da cabana e também que suas paredes, portas e janelas sejam resistentes como o aço dos anões.

Valefar diz que tais itens mágicos são muito caros, o preço suficiente para comprar uma casa dentro dos muros da capital.

A forma que utilizamos para descer e subir na cabana é um elevador. Ele é barulhento e lento, mas é seguro e cabe até três pessoas. A estrutura segue quatro correntes metálicas grossas como guia, é toda de metal e possui um tipo de revestimento que a protege contra oxidação. Nela há contrapesos e o mecanismo é acionado por um motor, movido pela energia gerada por uma pedra azul, parecida com as pedras mágicas.

O aparato é diferente de tudo o que eu já vi antes, mas parece ser bem comum na terra dos anões.

— Segure-se e preste atenção. Como você já sabe, o barulho pode atrair algum predador — diz Valefar, em voz baixa.

— Certo, professor.

Seguro com uma das mãos um suporte que há no elevador, para manter o meu equilíbrio, e com a outra mão sustento o meu arco curto e confiro a aljava. Se algo estranho surgir, precisarei reagir rápido.

Felizmente nada acontece. A descida é o ponto mais perigoso, porém se o barulho atrair algum inimigo forte, temos a opção de subir e nos proteger. Em todo caso, não posso relaxar, não até sair da floresta. Qualquer descuido aqui pode ser fatal.

Observo a mata e escuto com atenção em busca de perigos, entretanto não há nada. Faço um sinal para o professor. Valefar me ensinou uma serie de sinais para utilizarmos e indicar a existência ou ausência de perigo, a presença de água, o avistamento de uma presa, solicitar ou ordenar o ataque ao inimigo ou retirada, dentre outras muitas coisas.

Como sou eu quem guiará o caminho, olho para a direção que o sol está para me orientar. A floresta é densa, mas ainda é possível saber a direção da luz. Pego também a bússola da mochila e igualmente confiro a direção. É importante verificar o máximo de fontes de orientação, tendo em vista que uma delas pode falhar.

Lumínia fica a nordeste da nossa posição, porém a forma mais rápida de sair da floresta é investir para leste. Decido ir para essa direção, quanto menos ficarmos expostos ao perigo, melhor. Ainda que signifique demorar duas horas a mais. Mesmo que seja necessário passar a noite fora da Floresta de Prata, é muito melhor que passar o dia dentro.

Faço o sinal e indico a direção. O professor devolve um sinal de aprovação. Creio que a minha decisão é a correta.

Eu vou na frente, afinal sou o guia. Olho para o chão para ter cuidado de não pisar em folhas secas ou galhos que possam alertar a minha posição, ao passo que avanço sem fazer qualquer ruído. Também intercalo a atenção para verificar se podem haver predadores ou presas aos arredores.

Eventualmente, verifico a posição de Valefar. Não podemos nos distanciar mais que o alcance de um braço, pois não podemos nos comunicar por palavras, então um toque pode ser a única forma de chamar a atenção um do outro.

Evito pontos cegos. Não podemos nos aproximar de árvores ou pedras grandes. Atrás delas pode haver algum predador escondido. Alguns animais ou bestas são muito astutos a esse ponto e não quero depender de sorte.

Enquanto penso nisso, algo preocupante acontece. Não escuto o som de insetos, o que pode significar a presença de um predador. Olho para o professor e indico que pode haver um inimigo, depois indico que subirei em um local alto para melhorar meu campo de visão.

Dessa forma, sem fazer barulho, subo a uns dez metros de altura do chão em um galho da árvore e olho mais adiante. Vejo um... uma pantera espreitadora. É idêntica a uma normal, mas a exposição ao fluxo a deixou maior e mais inteligente.

Não se tornou uma besta ainda, mas é muito mais forte que um animal comum. Deve pesar uns seiscentos quilos, uma caçadora de emboscada. Esse animal costuma se esconder em arbustos e esperar que alguma presa se aproxime o suficiente para matá-la ao instante e com o menor gasto de energia possível.

Mas agora ela apenas caminha despreocupadamente. Os insetos ficaram quietos. Por outro lado, se ela estivesse escondida, nem os insetos a perceberiam. Por isso, não podemos confiar em apenas um sinal.

Indico ao professor a situação. Valefar me devolve outro sinal, logo a decisão será minha. O animal caminha em nossa direção. Se tentarmos desviar dele, pode ser que entremos em confronto. A melhor medida é abatê-lo. Sinto muito, Sra. Pantera.

Elas são territoriais e já entramos em seu território. Se ela nos vir, será problemático. O professor me ensinou a evitar matar até mesmo esses predadores, se possível for. Precisamos valorizar a vida, a morte e o equilíbrio, entretanto dadas as circunstâncias é a única opção.

Colho uma flecha da aljava à medida em que não tiro os olhos dos movimentos do animal. Ela ainda não me percebeu. Tenciono o arco, miro no centro da silhueta e solto a corda.

A flecha viaja e emite um fraco zunido. Siiiip! Acerto a barriga. Não deveria ser um ferimento fatal.

O animal sabe da minha presença, mas não percebe minha posição ainda. Colho uma segunda flecha e com ela tenciono o arco de novo. Entretanto, ao retornar os olhos ao felino, ele cambaleia e cai.

Tum! O som seco e forte da queda reforça o quão robusta é a fera. Em um confronto direto, ela me rasgaria ao meio em segundos. É de se esperar que tenha desmaiado, já que usei uma flecha com veneno paralisante. O compramos na Botelha Púrpura, uma loja de poções de Lumínia.

Não usamos em caças, o veneno condena a carne. Entretanto, em casos que precisamos apenas abater o alvo, elas são extremamente úteis.

Indico que o animal caiu, e o professor manda eu manter a posição, portanto eu cuido dos arredores.

Valefar pega sua faca e caminha até animal, ao passo que diz em baixo som algumas palavras que não consigo ouvir daqui. Logo, perfura duas vezes o ser, uma no coração e outra na garganta, com isso ele morrerá sem nos causar ameaça e de forma indolor.

Se fosse uma caça, evitaríamos perfurar o coração. Somente cortaríamos a garganta do animal. O coração precisa terminar de bombear o sangue para fora, tendo em vista que o sangue em excesso na carcaça faria a carne estragar muito mais rápido.

Vida, morte e o equilíbrio. Eu gostaria de explicar melhor para o professor o porquê precisei abater o animal. Mas temos que sair da floresta antes. Agora não falta muito, e a presença da pantera aqui é forte indício de que não há outros predadores por perto. Quero aproveitar esta janela.

Faço um sinal e indico para leste. Seguimos dali sem mais nenhum imprevisto, até sairmos da Floresta de Prata.

 

A Floresta de Prata possui árvores muito altas, com aproximados cem metros de altura. O tronco na base das árvores mais altas é tão grosso que precisariam dez homens adultos para as abraçarem. A copa das árvores é muito densa, de modo que quase esconde totalmente a luz do sol.

É possível ver alguns vaga-lumes prateados, mas não produzem tanta luz para fazerem uma diferença significativa na iluminação local, a qual pode ser definida como uma forte penumbra.

A sensação que a floresta passa é de morte. Ela é opressora, sufocante, e parte disso por conta de uma neblina que é mais presente durante a noite, mas que não se dissipa completamente durante o dia. Não é um fenômeno comum, é sobrenatural. Quiçá feita pelos lumens? Não saberia dizer e, neste ponto, já nem quero mais saber.

Algumas aves carniceiras nos seguem o tempo todo do alto das árvores. Elas não fazem qualquer barulho, porém estão atentas à possibilidade de que morramos a qualquer momento. Creio que seja este o motivo de eu sentir que somos observados a todo instante.

Não deveria ter entrado aqui e, se eu conseguir sair, juro por Dara que não regressarei.

Se alguém encontrar este diário peço que, por gentileza, o leve junto de alguma prova da minha morte para minha filha. Seu nome é Clarisse, ela é costureira e vive nos subúrbios de Thar.

(Trecho do diário de Bernardi, o explorador.)

 

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