Volume 1
Capítulo 14: Os Santos
GRIS
Já é o terceiro dia desde que o professor saiu da cidade.
Agora não chove mais, portanto abro a janela para ventilar um pouco e sinto o cheiro da terra molhada: é agradável. Além disso, ao final, sinto um pouco de outro aroma que gosto também, e é do café. Creio que a Srta. Cintia prepara o café da manhã para os hóspedes.
— Está com fome?
— Ah! Estou morrendo de fome — responde a Raposa.
Cintia concordou em deixá-la no meu quarto, desde que não façamos muita algazarra, pois o local é grande. Ele é para duas pessoas, afinal.
Não tenho certeza quanto a Srta. Raposa, mas acho que consigo ficar quieto e, em algum caso específico, eu ainda posso usar a pedra de silêncio que o professor deixou comigo. Mas não quero gastar o fluxo de forma despreocupada, pois fora da floresta ela deve demorar uns três dias para carregar novamente.
— Vou pegar o café e trazer aqui, então comeremos juntos.
— Faça isso por mim, por favor. Caso contrário, eu morrerei de fraqueza — responde a Raposa de forma exagerada, enquanto se joga na almofada, a qual colocamos para ela na cama que era antes do professor.
Com isso, eu saio do quarto, tranco a porta, passo pelo corredor e chego à cozinha. Desta vez, eu vejo que há soldados de vermelho tomando café. Será que eles sabem que a Raposa está aqui? Acho que se soubessem, estariam mais eufóricos, mas eles apenas estão se alimentando calmamente.
Olho para Cintia e ela faz um sinal para eu me aproximar.
— Não consegui avisar vocês. Eles acabaram de chegar. Aja naturalmente e avise a nossa convidada para ela não fazer nada estúpido. — Enquanto fala, Cintia me entrega uma bandeja com uma vasilha com água, uma caneca de café e duas porções de comida. — Agora vá.
Eu pego a bandeja e deixo o local, vou até a porta do quarto e, enquanto equilibro tudo, pego a chave no bolso para abrir a porta.
Porém, isso faz eu me desequilibrar e, por muito pouco, as coisas não despencam pelo chão, o que só evitado por uma mão, a qual me empurra para frente.
Creio que seja a Srta. Cintia quem me ajudou, e ela evitou uma sujeira.
Assim, me viro para agradecer e percebo que é um homem que veste vermelho, ele é quem me ajudou. Sua roupa está bordada com um símbolo de uma raposa e um gavião, já ao fundo, duas montanhas e uma chama: é um soldado de Galantur!
— Essa foi por pouco, não é garoto?
— Ahm... Obrigado Sr.
Olhando melhor, esse soldado parece diferente, digo, suas roupas possuem algumas marcações, que o diferencia dos demais. Será que é algum oficial?
— Não há de que. Entretanto, estou curioso, você não é o menino que se envolveu em uma briga aqui na cidade? Falaram-me que era um garoto de cabelos cinzas, e só pode ser você.
— Na verdade, foi um mal-entendido, Senhor. Eu não briguei com ninguém, pois o filho do barão desmaiou na frente da estalagem, e eu fui ajudá-lo, já os moradores só entenderam tudo errado.
— Compreendo, até porque seria muita estupidez espancar o filho do barão na própria cidade dele. Eu deveria imaginar que foi um mal-entendido mesmo.
— Sim, seria muita estupidez.
— Em todo caso, foi um prazer te conhecer.
— Igualmente, Sr.
Felizmente, Cintia já havia me preparado para responder esse tipo de pergunta. Tudo de acordo com a versão que o Barão nos havia contado.
O homem de vermelho prepara para se retirar, mas ele pensa melhor, volta e complementa: — Agora me ocorreu, eu também falei com uma mulher loira outra hora, creio que seja Lorena o seu nome, e ela me disse que viu você surrar o filho do barão, você não acha estranho?
Lorena? Será que ela falou para esse homem o que viu?
— Não, não acho estranho.
— Ah é?
— Sim, as pessoas costumam mentir e inventar coisas como estas.
— Posso ajudá-lo, Sr.? Como é seu nome mesmo? — indaga Cintia ao soldado, a qual percebeu a movimentação estranha e se aproximou.
— Ah! Sim, prazer, sou Fineas Rondam, Tenente Fineas Rondam, e a Srta. deve ser Cintia. Ouvi falar muito bem da Srta., aquela que cooperou com a investigação, nas buscas e afins — diz Fineas, de forma bem-educada.
Fineas é um homem ruivo, de barba feita, limpo e que se porta muito bem. Ele parece ser muito culto e ter vindo de uma família nobre. Porém, a sua maneira educada de falar não esconde o visível fato de que ele é ardiloso.
— O prazer é todo meu, Sr. Rondam, entretanto o Gris está lhe incomodando? — pergunta Cintia, enquanto mantém as mãos no quadril, a cabeça inclinada e os olhares fixos em Fineas.
Cintia o observa cautelosamente, como se nenhum movimento dele escapasse de sua vista. O que estranhamente se assemelha à imagem de uma gata, que cruza o caminho de uma cobra.
— Não, em verdade, seu filho é um garoto muito gentil. — Filho?
— Nem tanto, meu filho é bem arteiro e está de castigo, o que me lembra que você ainda não pode sair do quarto. Então volte lá para dentro, agora! — diz Cintia, enquanto aponta para mim e depois para meu quarto.
— Sim, mãe! — Que medo!
Entro e fecho a porta, também a tranco. Olho para trás e faço um sinal para a Raposa ficar em silêncio. Este é um problema que eu consigo resolver.
Sei que a Raposa é inconsequente. Ela acabará falando em voz alta e chamará a atenção. Também sei que é possível ouvir os sons de dentro do quarto, pois Cintia me ouviu falar ontem.
Corro para pegar a pedra mágica de silêncio, depois a trago para exatamente o meio do quarto, posiciono a pedra sobre minha cabeça e aperto dois botões ao mesmo tempo.
Gradativamente, vejo um cubo verde de luz se projetar em volta da pedra e se expandir. No momento exato que ele toca a parede do quarto, eu solto os botões. Guardo a pedra na mochila e a posiciono embaixo da cama novamente.
A Raposa fica curiosa e me observa em silêncio, com seu rabo abanando, mas ela não está surpresa em ver a magia. Creio que por ela também ser uma manipuladora de fluxo.
Como apertei dois botões, significa que nenhum som sairá do quarto, mas podemos ouvir o que vem de fora, igual fazemos na cabana.
— Ótimo, agora podemos conversar. Há soldados de Galantur ali fora, um deles me abordou na porta, pode ser que eles saibam que você está por aqui, Srta. Raposa.
— Tsk! É, eu ouvi a conversa. Que droga, eles não cansam de me perseguir. Eu só quero paz, mas eles não param de vir atrás de mim.
— Você só precisa aguentar por mais alguns dias, pois o professor logo vai voltar e poderemos deixar Lumínia. Assim que estivermos na floresta, dificilmente eles nos seguirão. Você só precisa se comportar durante esse tempo.
— Hey! Quem você pensa que é, seu fedelho. Saiba que eu sou mais velha que você! Se comportar você diz! Falou o delinquente juvenil, espancador de meninos e assediador de DONZELAS!
Bom, existe um fundo de verdade no que ela falou, mas está distorcendo um pouquinho as coisas.
— Tá! Que seja. Este item mágico precisa ser poupado, por isso, assim que eu perceber que os soldados saíram, desativarei ele. Depois, nós não poderemos mais fazer barulho, ok?
— Humpf! Como se eu fosse uma tagarela.
— Srta. Raposa!
— Tá bom! Eu vou me comportar. Também não quero que eles me encontrem. Principalmente o Fineas, ele é perigoso.
Assim, permanecemos por mais um bom tempo no quarto. Fico de vigia na janela e vejo o momento que vários soldados de vermelho saem da estalagem.
— Eles saíram e já não escuto mais conversas dentro do salão.
— Creio que se foram, afinal não iriam ficar ali para sempre — responde a Raposa.
— Vou verificar, fique aqui e se esconda.
— Humpf! — resmunga a Raposa, na medida em que vira o rosto. Creio que seja a forma dela dizer que escutou.
Em todo caso, me dirijo para abrir a porta, mas antes escuto.
Toc! Toc! Alguém bate à porta. Portanto eu pergunto: — Quem é?
Ninguém responde.
Toc! Toc!
— Quem está aí? — pergunto novamente.
— É muito burrinho. Você mesmo ativou a magia de silêncio. Ninguém pode ouvir você do lado de fora — diz a Raposa.
— É verdade. Eu esqueci disso!
Corro para debaixo da cama, pego a pedra e desativo a magia.
— Gris, abra logo. Eu sei que você está aí. Abra a porta senão eu vou derrubá-la aos chutes! — grita Cintia.
Ela vai me matar!
— Já vou abrir. Só um minuto!
Corro pela minha vida e abro a porta, logo percebo um punho fechado, que vem em minha direção. Não vai dar tempo de desviar!
Pow! Levo um cascudo de Cintia. Essa doeu. Ela é mais forte e rápida do que aparenta!
— Por que demorou tanto?
— Desculpe, Srta. Cintia, eu havia perguntado quem batia à porta, mas a Srta. não podia me ouvir.
Cintia entra no quarto, depois encosta a porta, por fim, olha para mim um tanto desconfiada e:
Pow! — Ai! — Não dá tempo de desviar.
— Não minta para mim!
Então eu explico e mostro para Cintia a pedra mágica e como ela funciona.
— Você deveria ter me dito antes — diz Cintia.
Eu tentei. Eu juro!
— Em todo caso, hoje é perigoso. Creio que nenhum de vocês poderá sair da estalagem até o dia de deixarem Lumínia. Sinto muito, trarei água e comida para vocês o tempo todo. Se precisarem ir ao banheiro necessitará ser as escondidas, e será assim até o dia do V. voltar, eu imagino.
— É uma pena, mas eu entendi, Srta. Cintia.
Cintia pôe sua mão sobre minha cabeça, de início eu me assusto, por achar que seria outra pancada.
— E isso é especialmente para a Srta. encrenqueira aí, não saia do quarto em hipótese alguma!
— Entendi — responde a Raposa.
— Certo, voltarei ao trabalho. Qualquer coisa é só me chamar, Gris.
Passei a tarde toda olhando pela janela e vi as crianças brincarem lá fora. Eu as invejei daqui. Estou preso.
Pensei que estaria acostumado com isso, pois viver na cabana da floresta também é assim, uma prisão, às vezes.
Porém, desta vez é mais difícil, pois a janela da cabana expõe os perigos do lado de fora, já a daqui, eu vejo muitas coisas das quais eu quero conhecer, mas não posso.
Antes, eu tentei sair e o garoto grande me impediu. Agora, eu quero sair, porém os homens de vermelho me impedem.
Talvez, se fosse somente por mim, eu já teria pulado esta janela. Mas fazer isso trará problemas tanto para a Srta. Cintia, quanto para a Srta. Raposa. Sim, principalmente para a Raposa.
A verdade é que menti para mim mesmo, agora eu percebo. Depois de refletir todo este tempo aqui, sem fazer nada, entendo que eu não bati no menino grande pelo fato de que queria afastá-lo da estalagem por cinco dias.
Confesso agora que, apesar da explicação ser plausível, eu menti para mim. O fato é que eu queria andar a cavalo com a Srta. Cintia, por isso espanquei o garoto até que ele entendesse que não poderia mais ficar no meu caminho. O problema é que ele só entendeu quando desmaiou.
A verdade é que, no final, eu gostei da escolha que fiz e não contei para ninguém isso.
Eu me senti bem. Mas tenho vergonha disso e também tenho medo que a Srta. Cintia perceba.
Claro, depois da conversa com a Srta. Cintia, eu percebi que se eu fosse mais cuidadoso, mais atento aos detalhes, talvez eu pudesse ter feito escolhas melhores, evitado a briga e andado a cavalo, antes da chuva cair.
Teria feito o que eu queria e sem precisar bater no menino, assim como faz a Srta. Cintia. Se fosse ela no meu lugar, tudo teria dado certo.
O barão disse que eu sou incrível, mas eu sei que não sou, quem é incrível é a Srta. Cintia. Ela é a pessoa mais incrível que conheço, pois não tem muita força, mas, mesmo assim, consegue entender as pessoas e guiá-las para um bom caminho.
E não somente por isso, ela o faz sem que ninguém perceba que são guiados. Fica atenta aos detalhes mais minuciosos e os interpreta com maestria.
Porém, também o faz sem pedir nada em troca, ou pede algo que beneficiará a outro e não a ela.
O professor me ensinou, certa vez, sobre pessoas que os Sacerdotes de Dara chamam de santos. Ele me disse que essas pessoas precisam ser protegidas, pois elas são raríssimas e, por serem tão boas, morrem cedo.
Eu acho que é por isso que o professor protege a Srta. Cintia: É porque ela é uma santa. É por isso que eu a deixo me guiar, sem questionar.
Não quero o mal para elas. Sendo assim, continuo aqui e observo as crianças se divertirem lá fora sem mim, sem sair.
Já é noite agora, e as pessoas acenderam as velas. Aquelas que andam pelas ruas, o fazem guiadas por lampiões.
Vejo a uns cinquenta metros de distância, há dois homens conversando. Um deles para de falar, olha na minha direção e finge que não me viu.
Conheço um dos dois, pois eu o vi na estalagem, e ele vestia vermelho. Eles estão nos vigiando, pois já devem saber que a Raposa está aqui. Eu queria coletar mais informações, mas Cintia me proibiu de deixar a estalagem.
— Srta. Raposa, estão nos vigiando. Eu acho que já sabem que você está aqui.
— Ah, é? Deixe eu ver.
— Não, eles podem te ver! — Afasto o focinho da Raposa e impeço que ela olhe para o lado de fora.
— Isso está cada vez pior. Agora estou encurralada neste quarto.
— Só precisamos aguentar até o professor voltar. Ele vai consertar tudo, como sempre faz.
— Você deposita muita fé nele. Já parou para pensar que talvez ele esteja envolvido tanto na sua falta de memória, quanto no bracelete em seu pulso?
— Sim, creio que seja possível, é uma possibilidade que eu já tinha em mente há algum tempo. Afinal eu não lembro de ter sido resgatado pelo professor no meio da floresta. Isso foi ele quem me contou. Mas não tem problema se ele mentiu, se foi ele que colocou este bracelete, ou se ele sabe quem colocou e não me diz. Não muda nada, pois eu escolhi acreditar nele. É minha decisão e vou executar o plano até o final. É assim que um caçador faz.
— Você é estupido! — grita a Raposa, que se levanta para falar e arrepia os próprios pelos. — Acreditar incondicionalmente em alguém assim? e sem motivo nenhum? Sabe o que eu vi, quando olhei para ele pela primeira vez, naquele dia que vocês saíram da Floresta de Prata? Eu vi morte e destruição e esse é seu futuro, se ficar perto dele!
— Tudo o que eu preciso é chegar em Ticandar e só pretendo me aliar a ele até lá, por necessidade. Depois disso, pode dizer tchau. Eu nunca mais quero vê-lo na minha frente e você deveria fazer o mesmo!
— Você é sábia, Srta. Raposa, e tem razão em tudo o que diz. O professor é mesmo muito perigoso, tanto quanto as bestas mais fortes da floresta. Todo mundo tem medo do professor, e é por isso que as pessoas o deixam sozinho.
— Mas esse é o motivo dele precisar da minha ajuda, e é também por isso que ele precisa da Srta. Cintia, e não é porque somos fortes ou vamos fazer toda a diferença, mas porque não temos medo dele, assim como não tenho de você, Srta. Raposa.
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