Volume 1 – Parte 1
Capítulo 18: Cruzeiro do Sul
— Grande Irmã Lídia! Grande Irmã Lídia!!
A garota chamou pela mulher, rodeada de três outras crianças, conforme corria pela área relvada.
— Oh, pequena Judith. — A freira se virou e logo abriu um sorriso gentil. — O que é isso em suas mãos?
— Flores... que eu achei... ali!
Entre as pausas ofegantes, a jovem de cachos ruivos indicou a direção ao esboçar um sorriso ainda mais alegre.
Ofereceu as pequenas plantas de hastes eretas. As três possuíam seis pétalas cada, de tonalidade rosa.
Ao aceitar as flores, a grande freira ficou surpresa por reconhecer o respectivo gênero.
— Tulipas? Você disse que encontrou onde?
Judith apontou de novo, então Lídia deixou o trio que a acompanhava até então, a fim de segui-la ao local.
Ao chegar no pequeno campo aberto, encontrou as pequenas tulipas que ali nasciam.
— Vou pegar mais algumas para levar!
Enquanto a mulher observava a bonita paisagem sem dizer uma palavra, a garota andou pelo espaço multicolorido em busca de novas plantas.
Escolheu as duas maiores sem muita demora, então as arrancou da estrutura maior no solo e as trouxe até ela.
— E para quem são essas? — Lídia inclinou o corpo à frente.
— Karenzinha e Sarah!
— Hm...— Acariciou o cabelo da menina. — As outras crianças vão ficar com inveja.
— Eu sei. Mas a Karenzinha e a Sarah são as mais importantes. — Mostrou os dentes ao sorrir. — Não que as outras não sejam! Um dia eu acho uma florzinha para elas!
— Adoro essa sua personalidade forte. Vamos voltar então, elas devem estar nos esperando. — Deu mãos à jovem.
As duas caminharam pela trilha de terra.
Orgulhosa por ter encontrado bonitas flores, imaginava qual seria a reação de suas duas irmãs mais novas.
Por outro lado, a freira ainda demonstrava certa admiração por tamanha descoberta.
E como havia previsto, a chegada no orfanato religioso foi de alvoroço por conta da preferência dada às escolhidas.
Karen e Sarah receberam os presentes felizes da vida, em contrapartida com as demais crianças que rodearam o trio pedindo por flores iguais.
Perante as respostas fortes de Judith, ordenando que elas fossem buscar caso desejassem, Lídia não resistiu a soltar fracas risadas.
Ainda que cercada por protestos e lamúrias das demais, a felicidade das duas noviças declaradas como as mais importantes provava-se suficiente.
— Obrigada, irmã Judith... — murmurou Sarah, um pouco tímida ao desviar o rosto corado.
— Eu... amei! — Pelo contrário, Karen fechou os olhos ao projetar um sorriso gentil.
— Sim! Irei levá-las até o campo florido da próxima vez!
Quando a mais velha enunciou as palavras recheadas de ânimo, as outras crianças retomaram as súplicas por um tratamento igualitário.
A garota mostrava-se irredutível quanto as próprias decisões, no entanto não deixava de se divertir junta a toda a confusão diária ocasionada pelas órfãs.
No cair da noite, o clima animado era substituído pelo silêncio completo.
Após a última luz de vela ser apagada, todas as crianças recolhiam-se em suas camas.
Graças à quantidade não muito elevada de conjuntos formados por estrados de madeira antigos e colchões bem desgastados, muitas acabavam dormindo em pares.
Havia algumas exceções, como por exemplo a própria Judith.
Para que suas irmãs descansassem com um pouco mais de conforto, escolhia forrar as cobertas no chão ao lado dos estrados quebrados, alguns apoiados com tijolos por baixo do móvel.
Não era muito aprazível, mas dava para o gasto.
Entretanto...
— Irmã Judith... — O cochicho levemente pávido chamou o olhar ainda ativo da garota.
— Karenzinha?
— Não... consigo...
A caçula nem precisava completar.
Judith assentiu com a cabeça e abriu espaço para que ela se deitasse ao seu lado.
Bom para Sarah, que ficou com todo o espaço no colchão que, apesar de desgastado, era bem mais confortável que o piso.
Apesar de renunciar à comodidade, não podia evitar essas pequenas ocorrências.
— Está tendo pesadelos de novo? — À pergunta da protetora, Karen assentiu cabisbaixa. — Não se preocupe. A irmãzona está aqui do seu lado.
Se ajeitou no chão coberto com cuidado em prol de envolver a caçula num abraço.
Ela afundou o rosto enrubescido no peito da irmã, a respiração de ambas ganhava destaque em meio à quietude.
Por situarem-se em frente a uma janela, podiam enxergar parte do céu estrelado no exterior.
Ao fitar a abóbada escura recheada de pontos brilhantes, a garota se lembrou de algo.
— Ah, eu aprendi uma nova música! A Grande Irmã Lídia disse que é uma canção de ninar infantil, então posso cantar para você, se quiser.
— Sério?...
Karen levantou o rosto e Judith admitiu sorridente.
Limpou a garganta e, com bastante cuidado para não acordar as outras crianças, começou a entoar:
— Brilha, brilha, estrelinha... eu queria ser você! Lá no alto, cintilante... uma estrela eu quero ser... ♫
Conforme a suave voz encantava a amedrontada companheira, a mão esquerda acariciava o cabelo curto dela repetidas vezes até que o sono começasse a surgir.
Prosseguiu com a cantoria baixa até os olhos de íris diferentes se fecharem. Sua respiração tornou-se mais branda sem muita demora.
Depois de alguns segundos, encerrou a canção de ninar espantada com a velocidade na qual a caçula apagou.
Suspirou contente por ter sido capaz de ajudá-la a dormir de novo.
Ao menos também serviu para lhe trazer o sono que faltava, corroborado pelo bocejo extenso que executou em seguida.
“Acho que também me vou...”, fechou os olhos castanhos com serenidade. “Boa noite, Karenzinha.”
Sob o brilho das estrelas, as duas permitiram à consciência esvair naquela noite silenciosa.
Layla recarregou o tambor do revólver com seis balas.
Expressou um fraco lamento ao observar os soldados que jaziam no asfalto ao redor; alguns imóveis, outros ainda buscando alguma salvação.
— Gastei mais de metade das balas que tinha... Preciso poupar um pouco.
O pensamento em voz alta soou num timbre cansado, ermo. Mesmo assim, a marcada demonstrava confiança pelo que se construía naquele momento.
Também portava a faca de sempre, um pouco suja com o sangue dos adversários abatidos no início.
Após ajeitar os detalhes nas armas utilizadas, passou por cima dos soldados esparramados no chão.
Não havia qualquer indício sobre algum reforço estar a caminho, portanto viu margem para prosseguir sem precisar se preocupar tanto pelo resto do caminho.
Verificava os arredores com calma, ao passo que atravessava as largas ruas dos quarteirões conectados.
Não demorou a alcançar a área em que o Marcado de Rígel tinha sido morto há alguns dias.
“Me pergunto se algum deles já chegou na mansão...”, ponderou uma nova forma de avaliação sobre a ausência de novos inimigos armados durante o trajeto.
Ainda assim, sabia que eles tinham diminuído drasticamente desde o evento na universidade, então acreditava de maneira veemente que um dos dois já poderia ter chegado.
Só pensava nisso por um momento, até que o alerta natural do ressoar espalhou-se de seu peito ao resto do corpo.
Mesmo ofuscado pela camisa social escura de gola alta no pescoço, ela pôde ver um breve resquício do fulgor azulado surgir de sua marca.
Tal efeito trazia somente um significado...
“Novos Marcados?...”, estreitou as vistas já ciente sobre a regra básica do alerta causado pelo símbolo místico.
Ficou um pouco aflita como raramente ficava, afinal tal sinal não deveria ocorrer naquele instante. Tentou manter a calma ao arriar as sobrancelhas.
Então, depois que o brilho da marca da constelação da Lira cessou — demorou mais do que o normal, inclusive —, a garota voltou a avançar.
Sem ter muito o que fazer, visto que não sabia sobre a localização dos novos marcados com rigor, preferiu manter o curso planejado de antemão.
Cedo ou tarde seus destinos se cruzariam, pensava de maneira inquieta. Contudo foi mais rápido do que esperava.
Nem precisou conferir com tanta atenção, tão logo um relance foi suficiente para determinar a identidade do novo oponente... ou melhor, das novas oponentes.
As três garotas trajadas em hábitos religiosos corriam pelas calçadas no mesmo itinerário traçado por Layla.
Espantada ao pensar no provável objetivo delas, engoliu em seco e contorceu o semblante pior ainda do que já tinha feito há pouco.
“Essas três...”, os olhos azul-escuros estremeceram. Escalou dentro de si o peso da aflição. “Elas são... do Cruzeiro do Sul. Mas para aparecerem aqui e agora...”
Cerrou os punhos também trêmulos, como um mecanismo involuntário na tentativa de se controlar.
— O que mudou!?...
Sequer percebeu o pensamento colocado em voz alta, diante das inesperadas circunstâncias.
As emoções transpareceram a um nível que fez os fios do cabelo branco levitarem por um breve intervalo de tempo.
Em contrapartida...
“Brilhou de novo. Aquele garoto está por perto!?”, Judith varria os arredores com os globos oculares sem parar de correr à frente das irmãs mais novas, porém não encontrava nada de relevante.
Deveria permanecer alerta. Conforme nada surgisse, prosseguiriam da mesma forma.
— Irmã Judith, aquela garota deve ter vindo por aqui... — Sarah apontou à curva da esquina e assim continuaram.
No entanto ao contornarem a virada...
— Ué!? — A mais velha ergueu as sobrancelhas.
— Desapareceu... Os rastros dela sumiram?...
Enquanto recuperavam o fôlego perdido por conta da nova maratona, as irmãs procuravam superar o obstáculo da surpresa.
Não importava o quanto se esforçassem, viam-se incapazes de encontrar alguma resposta para o paradeiro da marcada que perseguiam.
— O que... fazemos? — murmurou Karen, um dos olhos fechados.
“Deve ter algo... alguma pista”, Judith procurou desesperada por qualquer indicativo daquela garota. “Respire... mantenha a calma...”
Executou o exercício repetido na própria cabeça em busca da placidez. Perder o controle naquele momento crucial seria contraproducente.
Além de retomar o padrão respiratório, a freira expandiu o campo de visão sobre o local.
Foi capaz de enxergar nuances, antes bloqueadas pelo nervosismo, com mais clareza.
Logo obteve sucesso em encontrar um fio de esperança na caçada à jovem bestial.
Ainda que não estivesse mais ao alcance da visão, seus rastros foram deixados no caminho.
Alguns metros adiante, pôde observar a presença de dois soldados idênticos aos que as atacaram mais cedo, ambos imóveis no chão.
— Acho que podemos ir por ali... — Apontou na direção dos indivíduos.
Sarah e Karen assentiram em silêncio e, dotadas de boa cautela, acompanharam a protetora pelo acesso que passava pelos derrubados.
O trajeto levava a um atalho entre duas grandes casas, onde podia-se avistar uma área mais extensa até chegar à grande mansão antiga.
“Deve ser ali”, Judith observou o poste caído em frente à entrada, as chamas da explosão do transformador já tinham diminuído.
Engoliu em seco, o nervosismo a atacou novamente.
A batalha de suas vidas encontrava-se logo ali, a poucos passos de separação entre a realidade atual e a grande conquista que apenas a vitória traria.
No entanto um imprevisto literalmente puxou a perna das garotas.
Primeiro foi a de Karen, que de repente sentiu as solas serem arrancadas do solo.
Foi derrubada com força e soltou um grito angustiante, responsável por chamar a atenção da dupla mais velha.
Antes que pudessem responder, Sarah e Judith também foram pegas de surpresa por outros dois soldados.
A primeira teve um dos braços interceptados atrás das costas ao tentar fugir, sendo forçadamente empurrada contra o chão com violência.
O choque foi tão forte que pôde sentir os ossos do tórax estremecerem de dor.
A segunda foi envolvida pelo braço pesado do outro homem na altura do pescoço, também tendo um dos braços agarrado pelo inimigo.
“Droga! Fui descuidada!”, a freira quis se debater, não por estar presa, mas por conta de as protegidas também estarem em perigo.
Conforme Karen gritava por ajuda ao ser arrastada por um dos agressores derrubados, Sarah tinha o rosto prensado contra o asfalto.
Nenhuma delas conseguia reunir concentração suficiente a fim de utilizarem os próprios Áster.
Restava suplicar à entidade maior que louvavam para obterem o livramento do perigo.
Com o avanço do tempo, a situação não aparentava angariar algum tipo de milagre divino em prol da salvação.
Enforcada até perder todo o ar estocado no pulmão, incapaz de puxar mais oxigênio, Judith começou a ver a escuridão tomar forma no fim da linha.
As palpitações cardíacas pareciam prestes a rasgar seu peito, tamanha a força que batiam em busca de bombear mais sangue por todo o corpo arrepiado.
“Karenzinha... Sarah... não vou deixar...”, ela não se importava com a própria vida desde que suas irmãs pudessem sobreviver. “Não vou... não posso deixar...”
A mão inerte apresentava tremulações intensas, a expressão sobre o rosto avermelhado pela ausência de oxigênio se contorceu.
“Me perdoe, meu Senhor... eu tenho...!”, os olhos quase apagados retomaram a chama da vida no momento que um brilho branco-azulado irradiou de seu pescoço.
Eu tenho que matá-los...
Antes de qualquer resposta do agressor, uma nova luz surgiu sobre a palma livre da menina.
Em poucos segundos os dedos se fecharam sobre a empunhadura da adaga em formato de cruz, que foi levada a perfurar a garganta dele.
Sem nenhum receio, arrancou a arma branca e deixou bastante sangue espirrar pelo espaço.
Os dois homens à frente sequer reagiram.
Sarah não conseguiu observar o ocorrido com precisão, mas o bastante para arregalar as sobrancelhas a exemplo da caçula.
Respingos do líquido quente atingiram o rosto da mais velha e escorreram até o queixo na mesma velocidade que o soldado atrás dela caiu no chão.
A garota tentou empalar o segundo inimigo à frente da mesma maneira, porém foi bloqueada pelo braço coberto deslocado no puro reflexo defensivo.
As vistas tremularam, o homem largou a outra menina no chão e tentou contra-atacar a marcada.
Um som poderoso irrompeu o ar.
O impacto violento atingiu a retaguarda do soldado sem o permitir tocar a freira.
Carregando o fardo da necessidade de matar outrem para sobreviver, a menina contemplou a nova queda inimiga que liberou a linha de visão adiante.
Apontando o revólver prateado, Layla disparou contra o adversário e obteve sucesso em abatê-lo.
Na sequência, caminhou a passos apressados até se aproximar da passagem entre as casas onde o confronto ocorria.
Passado o baque inicial do novo companheiro derrubado, o terceiro indivíduo tentou implorar por sua vida.
A garota de cabelo branco não demonstrou piedade ao se agachar, apoiar a mão armada em suas costas e sacar a faca para perfurá-lo no pescoço.
Depois de se debater por alguns segundos, todas as funções vitais desapareceram como fumaça ao vento.
Sem palavras pelo ocorrido, as três órfãs encararam a bela jovem alva erguer a postura.
Ela também manteve o silêncio, a cabeça levemente abaixada fazia a franja cobrir um pouco dos olhos.
A tensão, ao invés de esvanecer, cresceu ainda mais...
“Eu... o que eu...?”, Judith reconheceu a consequência das próprias ações.
Embora tivesse sobrevivido junto às irmãs, precisou matar uma pessoa.
Tal atitude a fez largar a adaga de cruz criada pela própria habilidade, os joelhos oscilantes por pouco não sucumbiram na mesma medida.
— Irmã...
— Judith...
O fraco ressoar das vozes deturpadas de Karen e Sarah, respectivamente, foi sobreposto pelos passos pesados de Layla.
— Você fez bem em se livrar do primeiro — disse com frieza à menina abalada. — Facilitou meu trabalho. Por isso, preciso lhe agradecer apropriadamente.
— Hã?...
Ao levantar o rosto pálido, Judith arregalou as sobrancelhas ao enxergar o brilho da faca portada pela garota ser apontada a sua direção.
Sem que qualquer uma das três pudesse pensar, a Marcada de Vega desferiu o golpe derradeiro contra a freira.
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