A Voz da Névoa Brasileira

Autor(a): Saber Hero


Volume 1 – Arco 4

A Heliogábalo, meu desespero.

A Heliogábalo, meu desespero.

     Carlos Andrade acordou do santo porre, em lençóis que fediam a mulher e um travesseiro leve de penas. Não havia ninguém ao seu lado, o que pesou em seu peito — apesar duma carta no travesseiro, dizendo que o dever sempre chama.

     Observando o quarto, os móveis desarrumados e os uniformes jogados, sentiu que era apenas uma graça, apenas uma piada.

     Foi até a janela, a vendo sentada no banco da praça, com sacolas de pão e frios. Junto dela, a mãe de Carlos, vestida em roupas novas, com a pele branca iluminando o meio-fio.

     Ele se sentou à penteadeira, com um sorriso ébrio, se vendo no espelho como um fantasma ébrio. Sua aparência querendo dizer algo, querendo lembrar-lhe do que é ou do que já foi — os pelos que crescem no pescoço, os olhos de ressaca.

     Notícias por dentro da cabeça se manifestam no campo da visão. Oliver-Pine conquistou, o que havia pra conquistar, e expandiu os limites territoriais dos países Eclesiásticos.

     No dia anterior, recebeu a notícia que Enrique Mazzale gostaria de se reunir com ele, para conversar sobre uma proposta boa demais para recusar.

     Pensou, Carlos, que finalmente conseguiu conquistar, o que lhe era devido conquistar.

     Natalie Biancucchi, sua amante, entra no quarto. Ela diz:

     — Abre essa janela pelo amor de Deus! Esse quarto fede.

     Ela não sabia do quanto o satisfaz o odor, esse sentimento que sobe as narinas — o odor de sexo, de calor humano, de suor. Se ela soubesse, não abriria a janela, não deixava aquele ar gelado entrar, e tomar a ressaca junto da brisa.

     — Eu preciso de um café. — Carlos responde — Acho que preciso correr também. Sinto que esse dia vai ser uma merda...

     Natalie colheu os uniformes do chão, catou os lixos, enquanto Carlos imergia nas notícias que surgem em sua mente.

     — Sua mãe está na cozinha — ela comenta — não fica enrolando, toma logo uma ducha e melhora essa cara.

     Carlos entendeu a mensagem. Ele entendia bem, indo ao banheiro, à ducha glacial que toma seu corpo. Uma curiosidade é que, apesar de estar no 11º andar, no meio do centro de Ibérica, a pressão da água ainda é arrebatadora, lavando toda merda que se agarrou em sua carne.

     Escovando os dentes, sentiu que não lavara tudo, só metade.

     Vestiu suas roupas de civil — o quarto arrumado — e saiu da suíte, se dirigindo ao corredor de artes sacras — Jesus caminhando sob as águas, José do Egito, Davi. Na cozinha, viu Maria — não a Santa, mas sua mãe, bebendo com apreço o café, mordiscando biscoitos.

     — Pensei que não quisesse me ver — ao vê Carlos com cara de ressaca, em voz severa, comenta — já estava quase indo embora.

     Foi com um sorriso que Carlos se sentou ao seu lado, pegando naquelas mãos plastificadas, tocando no rosto da mulher que deveria amar acima de todas as outras.

     — Eu só estava com ressaca. Ontem foi um grande dia. — respondeu, se levantando do lugar que tomou, indo em direção ao saco de pão e frios.

     — Eu sei... — A voz de sua mãe embarga — há louros no nome do seu pai...

     Carlos, de costas, sentiu suas pernas tremer. Ele sabe que sua mãe segura lágrimas, ele sabe que deveria estar atormentado também, que deveria desabar em lágrima quando pudesse, ser fraco. Pois sustentar uma mentira é terrível, o que igualmente Carlos sabia. Mas se esforçou, e como ele se esforçou — se esforçou em aparecer abatido, em aparecer desolado. Teve dentro de si a verdade, e reflexões infinitas. Em outra vida, poderia ter se tornado ator.

     — Eu pedi para o artista. — Sua voz embargada, seu corpo trêmulo — Senti que combinaria com ele. — respondeu.

     Sua mãe segura firmemente a xícara, olha para as ondas que se formam no centro do copo.

     — Eu sinto que deveria estar ao lado dele. — ela diz — eu não deveria ter ido embora... — seus olhos se mergulham na xícara, roubando da negra e carmesim bebida, todas as forças que necessita — seu pai, apesar de tudo, foi um homem maravilhoso. Eu queria ser dele, inteiramente e apenas. Mas ele não me queria, apenas. Vezes, parecia me amar mais do que tudo. Vezes, parecia que éramos mais que homem e mulher. Me doeu mais saber que ele se foi, sem eu estar ao seu lado, do que o fato dele ter ido. Pensei também ter te perdido. Quando Genoa caiu, eu fui todo o caminho até o sul. Um conhecido me reconheceu, no meio dessa jornada, e me disse que você foi ao Norte, aos católicos. Saber que você estava vivo, me permitiu viver.

     Carlos sentiu vergonha. Ele não queria olhar nos olhos de sua mãe. Ele era uma mentira, ele se sentia uma mentira. Uma mentira que desaba por dentro.

     — Levante sua cabeça! — Sua mãe grita, entretanto — me olhe na porra dos meus olhos. Seja homem... você foi homem, não foi, para matar tanta gente... meu Deus! Homem para se tornar um herói! Encara sua mãe, seja forte... por mim... eu não aguento mais... eu quero o meu filho, minha família... sabe...

     Carlos se tornou lágrimas, lágrimas de verdade. Ele foi até aquela mulher, aquela mãe — uma mulher que não precisou se prostituir para viver, que nunca afundou um revólver em sua bochecha — uma mãe viva, que não se matou — e a abraçou, com seus olhos de piscina derramando sobre o vestido negro, e a apertando como se fosse parte do seu corpo, e a abraçando e se deixando cair sobre os seus braços.

     Natalie, que saía do quarto, viu ajoelhada, Maria Luzia, com seu amado Carlos Andrade, deitado em seus braços, do outro lado do corredor. Acariciando o cabelo de seu filho, o apertando firme em seu corpo, Natalie percebia seus olhos se encherem de lágrimas.

Uma cena íntima demais, ela pensou consigo — o que estou fazendo aqui? voltando para o quarto, com o peito pulsante em dor.

     Com o computador móvel em mãos, sentiu-se adormecer parte da razão, respondendo sua própria mãe com um e-mail. Uma ideia em Natalie veio, e ela sabia que não podia voltar atrás.

     Com o corpo ainda em tremor, retornou para a sala. Mãe e filho tomavam café com um sorriso. Carlos preparando ovos mexidos, com um sorriso bobo no rosto e olhos inchados. Sua mãe, rindo, dizia que ele nunca foi bom em cozinhar.

     — Tive que aprender. A comida do exército consegue ser pior.

     — E não aprendeu fazer nada melhor do que ovos?

     Eles riam, como mãe e filho.

     Natalie, que apesar de se sentir incomodada em se enfiar no meio da reunião, sentou ao lado daquela mulher, sorrindo para ela.

     — E você? — A mãe de Carlos disse — Você é uma mulher tão linda. Me pergunto, onde você a conheceu?

     Carlos pôs os ovos num prato e se sentou.

     — Ela era do meu esquadrão. Limpou a minha bunda algumas vezes. Acho que foi aí que ela se apaixonou — ele responde.

     Natalie ri, sem querer. Maria Luzia ao lado, observando-a bem de perto.

     — Quer dizer que você cuidou dele? — A mão de Maria sobre as de Natalie — Então tenho muito mais que agradecer a você.

     Repentinamente, Natalie se sentiu envergonhada. Com um sorriso, tomou o café e respondeu:

     — Ele me salvou muitas vezes também...

     Mais vezes do que ela gostaria de admitir. Pesadelos com uma Hellas alagada ainda a toma, vez ou outra, e entrar numa nave lhe causa gatilhos infinitos. Nunca mais confiaria numa inteligência artificial para nada que não fosse trabalho analítico.

     — Vencemos essa guerra! — A mãe de Carlos comenta — E, particularmente, gostaria de voltar o quanto antes para Roma.

     Carlos quase deixou o pão cair sobre a mesa.

     — O que a senhora quer dizer com isso?

     — Eu fugi de Eden duas vezes já. Não quero voltar para esse buraco. Você nem era nascido na época. Mas bem, já que fiz o favor de comentar, me responde: você planeja ficar nesse buraco?

     Carlos tomou um gole da xícara.

     — Não porque eu quero, mas sinto que só se livram de mim se eu morrer...

     A mãe de Carlos tinha uma expressão estranha. Estava incrédula, como também se sentia triste pela declaração.

     — Eu entendo. Mas espero que não seja por dever. Quer dizer, há uma responsabilidade, não há? Algo que você deve fazer, acima de tudo.

     Carlos sentiu uma pontada no peito, uma emoção que poderia fazê-lo derreter.

     — O que a senhora vai fazer?

     A mãe de Carlos tirou de dentro da sua bolsa, um cigarro. Mesmo dentro de casa, ela acendeu, como se não se importasse com a fumaça ou com a sujeira.

     — Recebi uma proposta em Alexandria. — ela responde — Meu estilo de vida não combina com a eclese. Se eu ficar por aqui, devem me executar ou me prender em pouco tempo. E, mesmo que você seja importante, você sabe: eu sempre fui de oposição. Seu pai também. Nossa vida política pode acabar estourando, depois que tudo isso terminar.

     Carlos entendia as implicações. Sua mãe sempre foi uma leoa, metida com diversos sindicatos e acadêmicos, além de grupos feministas. Eden não era lugar para ela. Aliás, também não era lugar para ele.

     — Vocês querem conversar em privado? — Natalie que simplesmente foi pega no meio de todo esse revés, disse, tímida.

     Há entonações das quais ela bem entende, e qual a incomoda saber.

     — Ela confia em você — Carlos disse — e se você sair agora, ela vai deixar de confiar.

     — Você ficou mais inteligente. — A mãe dele responde — A guerra te fez bem, apesar de ser horrível da minha parte comentar.

     Natalie não entendeu a mudança dos rumos da conversa e da atmosfera. Parecia como se Carlos e sua mãe já tivessem superado a ausência e o sentimento agora fosse de um conflito velado entre eles.

     — Não irá me afetar — Carlos finalmente disse — e eu sei o que a senhora vai dizer: “era o que seu pai sempre dizia”. Enrico Mazzale já sabe de tudo, mas vem ignorando. Ele sente que minhas antigas conexões me deixam na linha, pela consciência de que sou descartável. E não, não posso fugir com você.   

     Ela bebeu seu café, apreciando cada gota.

     — Não sei com o que você se meteu — ela comenta — mas por favor... — seus lábios se movendo em câmera lenta — não some.

     Dois Meia olhou no fundo dos olhos daquela suposição de mãe, o corpo ondulando, o sorriso bobo que se escancara.

     — Sobrevivi a coisa pior — ele diz — não vão ser um bando de políticos que vão me matar.

     Maria Luiza riu.

     — Tal Júlio César — o cigarro foi apagado dentro da xícara — mas não estou diante de nenhum imperador!

     E eles riram.

     A conversa continuou pelas horas da manhã. Natalie, no meio desse fogo cruzado, teve pouco o que dizer. Algo sobre pensar em não ter filhos agora, sobre estar seguindo uma carreira e que precisa visitar sua mãe em breve, foram alguns dos tópicos abordados e trabalhados, quando ela participava. Mas além de algumas piadas, e um bom humor geral, ela não podia dizer que não se sentia incomodada.

     O fato é que, Maria Luzia tocou num ponto muito sensível: o que eles se tornarão agora? Natalie sabe que conjecturas políticas se abrangem de tal forma, que aqueles que entram, se perdem — e na conjectura que eles se veem enfiados, não há opção além de jogar as cartas.

     Heróis é o caralho, ela pensou, quando, junto de Carlos, pegou o elevador e desceram andar por andar. O táxi esperando na fachada do prédio, o sol por cima do véu nebuloso que se forma em meio aos edifícios.

     Natalie reflete sobre a necessidade, isso é, o motivo da tropa técnica auxiliar ainda existir, além de fatores publicitários nos esforços de guerra — que aliás, são nulos, visto o sigilo na identidade, e ausência de entrevistas públicas. Jantares, comemorações, postos de honra, além de conversas com figuras excepcionais, por outro lado, vinham acontecendo com certa frequência, numa promoção internalizada dos membros desse esquadrão.

     Um segredo que não é segredo... ela pensa, quase algo místico. E veja, religião combina bem com Eden, o que pode significar muito, ou que pode significar pouco. Quer dizer, a mãe de Carlos está certa, uma feminista sendo mãe de um oficial condecorado é digno de escárnio, uma brecha na imagem pública de Carlos, que pode afetá-los, quando tudo estiver dando errado.

     E bem, apesar de ter se passado quase mil anos desde o início da modernidade, em Marte, as pessoas continuam morrendo de pneumonia, aids e tendo derrames que surpreendem a ciência.

     — O que foi? — Carlos pergunta, quando de dentro do táxi, viu as ruas de Ibérica, as cinzentas ruas, sem árvores, apenas fachadas e prédios, entre bases, cheio de militares, e quase nenhuma criança, e quase nenhum idoso, e cheio de ecleses, cheia, já, a essa hora do dia, e prédios iluminados com notícias, e o esforço de guerra que sempre nos admira.

     — Sua mãe está certa — Natalie diz — você não é nenhum imperador.

     Carlos a observa de cima a baixo.

     — Não vamos conversar sobre isso aqui.

     Natalie quis gritar, na verdade. Dar um tiro na nuca do taxista e jogar nele todas as suas frustrações. Em sinceridade, a mãe de Carlos deu um clique nas engrenagens enferrujadas dela. Pois Natalie sabe. Sua mãe, por exemplo, é uma refugiada política no UHD. Não seria sequer um salto, associá-la a sua genitora. Só precisa de um pouco de vontade, só precisa de um pouco de esforço. O que finalmente a fez entender.

     — Motorista — ela diz — por favor, pare — quase em lágrimas.

     Carlos e o motorista a observa, e Carlos observa o motorista. Passou a carteira por cima do taxímetro e saiu, atrás de Natalie, que anda tal uma desesperada por aquelas ruas.

     — O que foi? — Carlos pergunta, andando ao lado dela.

     — Aquele taxista é agente do estado — ela responde — e sinto que não tô confiando em mais nada.

     Carlos a pega pelo braço. No meio da fachada, pararam iluminados pelo rosto de Oliver-Pine, que parecia observá-lo da tela Qled do edifício.

     — Sua mãe tá certa pra caralho. Quantos jantares a gente não participou, quando apertos de mão e honrarias não significam mais porra nenhuma? — Natalie percebeu um desespero te engolir — como confiar que aquele filho da puta não vai atirar na nossa nuca, como confiar que ninguém nessa porra de país não vai nos matar? Somos de Roma, Carlos! Eu e você somos de Roma. Eden foi apenas uma consequência, para resgatar algo que não mais existe. O que nos diferencia de um relés mercenário é só nossa associação... só um passado...

     Carlos sabia que Natalie estava certa. Cada palavra carrega uma verdade impressionante. Ele se sentiu incomodado, pois é perigoso ser sincero em público, e as pessoas ao redor, as despreocupadas com a própria vida, podem acreditar que os dois traidorzinhos estão maquinando contra o Estado que os acolheu.

     — Você tá certa — ele sussurra no ouvido dela, tal um amante pedindo mil perdões para aquela que ele ama — minha mãe também está certa. Mas não se desespera, porra! Se eles nos quisessem mortos, já teríamos sido. É só nos transferir de novo, para as linhas de frente. Já falei, mantém a porra calma. Quando tudo der certo, metemos o pé dessa merda.

Natalie não sabia o que deveria dar certo. Para ela, tudo já tinha dado.

     — Você tá nessa só por dinheiro? Tu já fodeu o UHD. Você foi, o que você disse que seria. — ela sussurra de volta — o que a gente precisa, para fugirmos agora?

     Carlos não soube o que responder. Ele sentiu-se afundando. Nunca havia pensado — o que falta fazer?

     — Preciso descobrir uma verdade — ele comenta — uma verdade... sagrada.

     Natalie quis responder, mas aí seu cérebro se iluminou, com um sorriso, ela o beijou na boca. Depois, a apreensão veio, e ela percebeu quão maluco ele é.

     — Você vai acabar se matando...

Que se foda,

Carlos disse:

     — É a vida.

     De volta ao taxi, Carlos também pensou no quão perigoso seria, essa suposição de verdade e sacro. Na verdade, algo realmente também se iluminou nele, algo entre os arcos da cidade, os prédios e a luz de uma tarde fria. Como se diz? A vida é boa? A vida presta...?

     Na janela, praças mal planejadas, prédios diminutos com suas entradas discretas — garagens decadentes, e bancas engorduradas — te lembrou Redneon, isso é, Mary Queen, subdistrito F. Aquele buraco do inferno onde cresceu e viveu. As naves pontilhando o céu noturno, pessoas que vem e que vão. Se lembrou de Anne, e algumas palavras. Os distantes sons de marte? O que nos confere é o que nos satisfaz? Carlos observa Natalie, e ela parece se distanciar, apesar de seus dedos se entrelaçar nos dele. A vida realmente presta?

     De repente, se viam esperando em frente ao panteão de Andrew Argos, com os nomes de soldados e estátuas de um lado ao outro. O palácio de Ibérica, uma estrutura com seus 30 andares, com pedras beges e marrons e a porra de um relógio no topo, estilo moderno, dominando toda uma quadra e tomando a vista de todos na cidade — o palácio de Ibérica e seus soldadinhos guardando a entrada com fuzis iônicos e roupas vermelhas, os olhares atentos a todos que entram. Carlos e Natalie, vestidos com o uniforme de honra, tinham as insígnias dominando no peito, e apenas saudaram os militares, entrando no pátio do palácio, e sendo recepcionados por soldado atrás de soldado. Só respiraram quando no elevador executivo, se viram sozinhos, subindo andar atrás de andar. Natalie ainda distante. Distantes sons de Natalie.

     — O que foi? — ele pergunta — você ainda tá com isso na cabeça?

     Ela, de braços cruzados, nada disse. Apenas o observando, como a se dizer para ele ficar em silêncio.

     — Tudo bem... — ele responde — tudo bem...

     Pararam no último andar, onde não haviam divisões de sala, apenas mesas e hologramas, gente vidrada em computadores e Enrico Mazzale numa plataforma, no meio de tudo isso. A sala de comando, em toda extensão do seu significado.

      Carlos ficou reflexivo, querendo saber como tiveram recursos para montar tudo tão rápido, e organizar uma operação e alinhá-la a outros centros de comando espalhados nas nações eclesiástica, além de qual função específica desempenhavam aqueles analistas e gerenciadores de ferramentas. Em seus sonhos elétricos, foi tomado por um fluxo de dados não processados, percebendo-se entre planilhas e tabelas, banco de dados celulares integrados a inteligências artificializadas em neurônios biológicos sintetizados e escravizados em servidores industriais.

     Hans Reiter a sua frente, parecia perceber algo em sua distância, na sombra de Carlos, na sujeira que não se desgruda do corpo nem em banho. Natalie ao seu lado, por outro lado, pura e intocada.

     — Tenente Carlos Andrade respondendo suas ordens, senhor! — ele diz.

     Hans deu dois tapinhas no ombro de Carlos, pediu para ele relaxar — cumprimentou Natalie, pedindo que os acompanhasse. No fundo daquele centro, a janela panorâmica registra toda a cidade, indo até os limites, onde o deserto se estende. O horizonte se avermelhando, indicativo do início do inverno marciano. Carlos puxa uma cadeira — à mesa de Hans, hologramas compõe informações e luzes azuis se interligam diante aos olhos.

     — Pelo que você luta? — Hans pergunta, sem meias palavras — Por quem você luta?

     Carlos já esperava por isso. Ele cruzou suas mãos, levantou sua cabeça. Natalie o percebendo, sentia-se esquisita. Era uma pergunta sábia. Faz sentido... como não faria.

     — Pelo mesmo que você luta.

     Hans abriu seus olhos. Um sorriso brotou no seu rosto, dominando toda sua postura.

     — Que coisa idiota pra se dizer.

     No holograma da mesa, círculos começam a crescer e se preencher de unidades que Carlos não conseguia entender. Era um diagrama de Venn relacionando conjuntos de dados clusterizados, mas cujo dados em si, não eram aparentes.

     — Bem, é claro que é idiota... — Carlos continua — Você luta pelo seu País. Pelo seu Estado. E eu faço o mesmo. Deveria haver um conflito de interesse, como há entre você e Eden. Mas não é assim como as coisas funcionam, não é?

     Hans não tinha mais sorriso. Olhava o diagrama no plano holográfico disposto na mesa, parecendo não dar a atenção aos dois subalternos diante dele. Aliás, uma nota que Carlos não havia dado atenção até aquele momento, o fato de Hans permanecer com seu rosto enfaixado. Na verdade, a faixa permaneceu até no dia das comemorações. Um rosto que esconde suas cicatrizes, um rosto agonizante de dor. Carlos observa os espectros aprisionados nas safiras que são seus olhos.

     — Você é um cara esperto — Hans responde, enquanto manipula os dados que surgem — Araba Tera Maro terá o seu mar, e todos nossos sonhos serão realizados. Um sonho, digo, um sonho! Mas não sei, tenente, não sei... não sei qual é o sonho de Roma...

     Carlos captou na voz de Hans o sarcasmo, talvez um cinismo. Natalie, que até então era apenas um móvel, um criado mudo cujo sem muita importância, percebeu-se no dever de dizer algo. Mas ela não tinha palavra.

     — Você sabe ... — Carlos tocou nos dados holográficos dispostos na mesa — ter Roma em sua eterna glória sob o poder de Deus, tal o mesmo sonho de Constantino, de meu pai e Enrico Mazzale. De Natalie, ao meu lado, de milhões e muitos outros. — Carlos observa o arrombado em sua frente: as mãos no bolso, olhos em caldo de vermelhidão e o rosto desfigurado por trás daquelas talas — É um sonho tolo, mas é um sonho de verdade.

     Hans sorria como nunca antes, a boca em um V suave, cheio de dentes tortos e amarelados. As talas desarrumadas, expondo aquela pele cheio de vales, estriamentos — cicatrizes térmitas desenhando seu rosto.

     — Se é deste modo — ele diz — por que você não fugiu com a sua mãe?

     Carlos sentiu agora seu peito palpitar. Mas algo pequeno, tolo. Natalie, por outro lado, foi uma onda de alta frequência, cujo desejo de desaparecer quase tomou a inteira vontade de seu corpo.

     — Eu sei de vocês dois. — Hans continua — e sei tanto quanto ele sabe. — A cortina se levanta, da panorâmica logo às costas de Hans. O sol não levantado, mas Carlos sabe que ali se trata do norte de Marte, isso é: Syrtis Major Planum, onde Eden se esconde.

     — E o que isso significa? — Carlos toma a mão de Natalie por debaixo da mesa, sem que Hans pudesse vê-los — Não pode um soldado amar sua pátria.

     — Apesar de honrado, considere a conjectura — Hans responde, enraivado — pense direito: o que nos uniu nessa guerra foi o ódio. Um inimigo em comum nos fez lutar em Griffitas. Se não fosse o ódio, teríamos ficado no deserto de Hellas, aguardando ordens que nunca viriam.

     Carlos balança a cabeça, em discordância.

     — Essa é uma forma burra de se pensar. Se fosse o ódio, por que uns mercenários que não tinham nada a ver com a disputa estariam do nosso lado? Você mesmo Hans, que ódio você guarda contra o aliado de sua nação? Será que você se opôs aos ideais de sua pátria? — Carlos se levanta da cadeira, andando com passos firmes para próximo da janela, dando suas costas para um Hans que languidamente se vira para ver o mesmo que aquele distinto homem via — Hans — Carlos continua — Você não testa a integridade de minha honra. Não..., você testa a si mesmo, pois sabe que responderei aquilo que ninguém responderá. Seu desejo é a satisfação em minhas palavras.

     Hans foi silêncio, Natalie via. Os olhos sem pálpebras observando homem e cenário — nuvens que dançam no céu rosáceo de Ibérica, e os pássaros tomando os céus trançados de branco e púrpura.

     — Eu deveria ter te matado assim que pus meus olhos em você — Hans diz, com aquele mesmo sorriso no seu rosto arrasado — veja, cabo Biancucchi, um merda de homem. Ele só diz mentiras travestidas de verdade. Mas se bem que nem tantas mentiras... há algumas verdades, mas pouco me importa. Elas continuam servindo apenas para enganar os bons. O diabo, isso que você é. O diabo! Tenente Carlos Andrade!

     Hans tirou de dentro da casaca do uniforme, dois charutos, jogando um para Carlos, apático, imperturbado pelas declarações anteriores.

     — Um diabo bem servido — respondeu, abrindo um sorriso tal o de Hans — Mas qual intenção do diabo? Heliogábalo, meu desespero? Travestido em bases e fodendo militares no pelo. O que seria eu, caso sendo imperador — afundasse Roma em meu falo e expelisse legiões do meu rabo!

     Hans bateu palmas e assobiou. Pela primeira vez, os soldados daquela sala de comando pararam, por um momento. Olhos arregalados, observam as duas figuras fumando seus charutos no fim da escuridão, além de todos os hologramas que seus olhos maniacamente desdobram.

     — Um diabo vestido em seu fato! — Hans abraça Carlos — eu sei que sempre posso contar contigo! Por isso te amo — E então o beijou! Aquela boca sem lábios encostando nas bochechas coradas de Carlos — A gente sempre tem que agradecer pelo dia que vivemos! Que loucura! — Hans estava ao lado de Carlos, e viu tudo o que naquela janela se mostra — a cidade, seus entornos e uma planície sem fim que se estende até as montanhas. Sentiu um pedaço de Marte, mas desejou o mar.

 

Carlos, por outro lado...

Sentiu que o mar

Eram lágrimas demais

 

     Natalie, em desespero, tentou entender sobre o que tudo aquilo se tratava. Sempre soube que eram dois loucos, mas agora tinha certeza. Viu Hans e Carlos abraçados em sangre, no fundo de uma vala perfumada de chamas.

     Enrico Mazzale.

     — Vocês dois sempre gostam de chamar atenção, eim. — Suas roupas brancas, seus olhos fixados em Carlos — Hans, preparou esse viado? Não quero perder tempo.

     Hans afundou seu charuto na mesa, sentando-se intranquilo e calado. Carlos achou engraçado. Pareceu uma cadela bem treinada.

     — E você, Carlos Andrade? Me fará perder tempo?

     Carlos continuava rente a panorâmica. O cigarro em mãos, a luz rosa da tarde tomando sua face.

     — Diz logo o que você tem para dizer. — disse, e Enrico Mazzale abriu um sorriso de mil dentes.

     — Você deve ter um ovo do tamanho de Marte — responde, tirando de dentro da casaca do uniforme, um uísque — pega uns copos, Hans. Esse cara aqui — deu dois tapas no peito de Carlos — merece todo o tempo que eu tenho.

     Natalie ainda sentada na mesa, querendo entender que porra estava acontecendo, e o porquê caralhos ela permanecia ali. Loucos, isto é, filhos da puta que não fazem o mínimo sentido.

     — O que você quer, Enrico. Me responde primeiro, e aí eu também desperdiço meu tempo contigo.

     O líquido marrom no copo ondulando. Hans sentado na cadeira, Enrico Mazzale em pé, acendendo também um charuto.

     — Bem... — ele comentou — aquele que partirá o pescoço num torto galho. Penso sobre isso. Nas areias torpes da Carmem Arábia. O que você tem a me dizer?

     Natalie viu Carlos sorrir como maníaco agora. Seus olhos macios e o sorriso terrificante.

     — As nações Helênicas... como pode se declararem dessa forma, nações Marcianas?

     Hans sentado, tomou todo o uísque em um gole.

     — Inside Job, caro Carlos. — uma carta saiu das mangas de Enrico. Carlos as tomou e contra a panorâmica leu num milissegundo. Depois, a queimou com as brasas do charuto.

     Natalie captou cada interação, cada movimento, sentindo-se embriagada, sentindo a grande revelação. Seus olhos se agigantando, sua mão tremendo.

     — Seu filho da puta! — ela deixou escapar — Caralho.

     Os pensamentos se puseram na mesa. A verdade, a vontade, a resposta de Carlos. E o motivo dela ser uma testemunha, era justamente a suposição de testemunho. Ver como as coisas são pelo ser. Ela se levantou da cadeira, tomou um copo de uísque. Os homens atordoados, sem sorrisos, tentando entender o que ela queria, o que ela havia descoberto. Um jogo sacana.

     — Eu havia dito para minha mãe que ela estava certa. Que melhor seria fugir dessa merda e se asilar no UHD. Engraçado que gastei parte do meu tempo matando soldados do outro lado da corda — Natalie sentia-se algo se iluminar em sua frente. Sentia ser possível se engrandecer. Sentia ser possível ser maior e melhor — Enrico, seu filho da puta. Você queria que eu tomasse uma atitude? Não! Você queria que eu fosse sábia. Eu vou te emprestar minha arma novamente.

     Enrico e Hans se entreolharam. Uma expressão assustadora.

     — O que foi? — Ela pergunta.

     E aí eles riram. Primeiro Carlos, o que a assustou, depois Hans e Mazzale. O que foi? Eles não respondiam. O que foi? Sentando-se no chão daquela sala de comando, Carlos comenta:

     — Eles pensaram que você não seria capaz — e foi tudo o que se passou.

     E ali, um segundo...

     Até Natalie riu.

     Gargalhou com os rapazes e o uísque, fumando com eles um charuto, observando da panorâmica, planícies que se enegreciam e Eden.

 

 

 



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