A Voz da Névoa Brasileira

Autor(a): Saber Hero


Volume 1 – Arco 3

25: Confesso.

Finalmente era verão, e o sol quente do equador marciano trazia junto um pó avermelhado intenso, flutuante nos ventos turbulentos que pareciam vir de muito longe. O cinturão de Deimos, naquela parte do planeta, tinha uma sombra cósmica na imaginação dos soldados entediados da Lapis Regio, como um medo ancestral da própria mortalidade, e quem sabe do divino, propriamente dito.

No átrio da base, Carlos Andrade bebia uma cerveja com seus companheiros de esquadrão, questionando se não era o único a duvidar, com as cartas na mesa ao lado do caneco fosco, e o sorriso de Magalhães como se fosse a primeira a descobrir, por mais que não o observasse — onde o pensamento de estar apostando a própria alma, era uma dúvida bicameral.

Já haviam se passado um ano e seis meses desde a invasão a Genoa e o julgamento de Augusta finalmente terminara. O fim foi abrupto, entretanto, e as notícias acaloradas descreviam o término como uma pequena maquete de guerra dentro de sua própria declaração, afirmando que as nações eclesiásticas, tirando a Nação Pontifícia, enfim retomariam Roma ao seu povo. Emitida primeiro pelo canal privado The New Globe, com origem no UHD, a notícia tomou tudo desde Xanthe Terra a Noachis ao puro alvoroço. Essa decisão, apoiada em grande parte pela população civil romana, foi tratada por desgosto pelo senado e câmara dos deputados, que declarou que os interesses de Eden estavam claros, e que Roma não deveria ser um palco para mais disputas insanas. Protestos radicais, violentos, com a invasão e depredação civil das instituições referentes, ocasionou em estado de emergência e resposta militar por parte do UHD, que cuidava da segurança interna de Roma desde o fim dos conflitos.

Oliver Pine estava na Lapis Regio, da Nação Pontifícia, na ocasião dos protestos. O conflito civil, planejado por Marius Alexandre, de Levítica, e comentada internamente entre o Papa Marcos Petrus I e Apolônio de Nouveaux, ministro de segurança de Nova Israel, demorou seis meses para sair do papel e ter os efeitos desejados. Era fato que os eclesiásticos tinha em mão toda a opinião pública entre a maioria dos países das planícies, tendo um mapa de influência considerável. A dificuldade de penetrar politicamente, entretanto, se dava bem mais pelo conservadorismo de políticas internas, de não confiar em replicantes em cargos relevantes, tendo que contar com as centenas de anos dos fundadores ou o amadorismo dos seus descendentes.

Carlos Andrade, que no último ano se via sob a atenção dos oficiais, e tendo sido aceito formalmente ao corpo militar do exército eclesiástico (visto que a nação pontifícia não aceitava e nem integrava pessoas de outras nacionalidades ao seu exército), tinha uma opinião bem contraditória, de que esse buraco havia de ser destruído tão logo o Papa fechasse seus olhos.

Acompanhando as notícias, ele podia notar que a noção de uma segunda guerra marciana já havia começado desde a invasão a Genoa, pelo que alertavam os civis. Não que fosse o caso, guerras são complicadas, principalmente para países emergentes. Um rompimento se faz necessário, cuja iniciativa precisa vir da mão mais pesada. — como uma guerra sem armas, uma no campo ideológico, primeiro, no campo das opiniões, uma guerra de informações e informática. Carlos havia lido que ninguém estava, de fato, disposto a ajudar Roma. Ninguém se importava. Seu pai havia sido morto por nada. Sua mãe que foi esperta. O objetivo era usar Roma como palco de guerra, criando assim um conflito em que ninguém perderia nada além dos seus próprios brinquedos.

Era só ver a Lapis Regio, armada a mais de 6 meses para um conflito iminente, tendo maior parte das tropas posicionadas ao longo da fronteira, ao mesmo tempo que seu líder político negava veementemente qualquer intenção, qualquer pretensão, até mesmo a fuga de pensamento ou a hipocrisia, de se unir a Oliver-Pine em uma guerra.

A tropa técnica auxiliar, já integrada por completo ao corpo do exército eclesiástico, iria para levítica nas próximas semanas junto de um batalhão de soldados, já sendo um grupo plenamente capaz de operações com certo grau de complexidade.

O constante aprimoramento que vinham tendo com as instruções de Titus Augusto e Leônidas Adriano e o investimento da base João V, que tinha para auxiliá-los o melhor que a tecnologia poderia oferecer em questão de VR, sensores modernos e inteligência artificial, tornou os últimos e exaustivos seis meses, em algo realmente promissor. As operações hipotéticas em cenários realistas, planejados pela inteligência de Eden e renderizada pelo supercomputador Antros I, ajudou-os a tomar decisões mais condizentes, e a adaptabilidade das inteligências artificiais sempre traziam por benefício um desafio cada vez maior, fosse de infiltração, fosse de perseguição ou emboscada, e junto dos uniformes inteligentes, de alótropos de carbono e CPU integrada, com sensores motores e nervosos, a realidade de um combate, da dor de perder uma parte do corpo ou a de levar um tiro e sangrar como um porco, estava ali, as cicatrizes invisíveis estavam ali. Eram veteranos sem nunca terem pisado em batalha. Por mais que Carlos Andrade e Hans Reiter realmente o fossem.

Aliás, foram oferecidos também implantes biônicos para aqueles que haviam perdido suas partes em combate e regeneração celular de ponta para aqueles que fossem batizados no catolicismo e que não poderiam, no caso religioso, obter esses implantes. Um luxo em comparação aos tratamentos a longo prazo que eram mais baratos, e que sempre deixavam sequelas que dificilmente seriam tratadas. O cabo Mattia aproveitou e conseguiu uma perna Ax-3L com propulsão de ar comprimido para maior impulso e arranque, além de anexos para facas, dinheiro e cigarros. Versalhes e Pérez, por outro lado, fizeram a reconstrução celular.

Carlos Andrade, católico batizado, catequisado e crismado, pediu para que arrancassem um olho, um braço e uma perna, o que foi tratado com mais profundo desprezo pela base, pelo os militares oficiais e os agentes liberais que faziam serviço, sendo negado em primeira instância pelo alto-comando, com uma carta demandando apoio psicológico forçado enquanto estivesse na base e lutasse pelo exército eclesiástico.

Que complicado, pensou, seria mais fácil pedir uma freira em casamento.

A princípio, pediu ajuda de Hans Reiter na questão, que negou, falando que realmente se tratava de um comportamento desviado, apesar de tudo. Ele apelou para os oficiais Adriano e Titus, que rasgaram elogios pela coragem, mas que deixaram claro não poderem fazer nada. Eram visitantes apenas e, como tal, laçados pelas leis que regiam aquela parte do mundo.

— Daqui em breve iremos à Levítica. Lá será pior. Teríamos que ficar forjando documentação e comprando o silêncio das pessoas. Eu não sei como eles deixaram o cabo Mattia com aquela perna. Talvez sejam os novos tempos. Enfim: se contente com o que Deus lhe deu.

Carlos participava de reuniões em grupo com 4 oficiais e um frei encarregado. Maior parte do tempo, o frei fazia perguntas insonsas e lia versículos bíblicos para que abrisse a alma dos cabos e tenentes. Faziam reuniões numa saleta moderadamente bonita, qual o sol tecia lâminas escarlates até o total escurecer das tardes. Carlos se sentia em parte entediado, em parte frustrado, tendo revelado intimamente que queria, pois queria, pelo bem de si mesmo e do seu esquadrão. O frei comentara que não era assim e nem por isso, que não se pode negar o que Deus lhe deu.

— Nem se for por uma causa maior?

— Muito menos por isso. Seu destino como soldado já fora definido com aquilo que tem em mãos. O diabo que tenta te enganar, pedindo que se mutile, que diminua aquilo em ti planejado pelo divino em troca de algo feito pelo homem. É impossível lutar pelo Senhor quando apenas pensa em como matar, em como ser mais letal; é impossível lutar ao Seu lado quando o sacrifício é em prol da morte.

Mas eu não luto pelo Senhor, Carlos Andrade imaginou como seria se respondesse, de fato, o que haveria? Talvez o expulsassem... talvez o deixassem em uma cela por alguns dias, dizendo ser apenas pela conveniência e que esfriasse a cabeça.

O frei era chamado de Angustina e era formado em psicologia com doutorado em psique militar. Dava aulas na universidade de Nossa Senhora de Aparecida de Centralis Regio e era conhecido na base João V como um mestre de aporrinhação. Os padres, entretanto, valorizavam seu saber, sendo reconhecido até mesmo pelo bispo Cristianno Antonelli como um homem essencial, principalmente naqueles tempos. Carlos pensava nele como uma sombra dos seus desejos, vendo o diabo naqueles olhos simpáticos, no sorriso envelhecido prematuramente, na pele enrugada. Mas não havia nada que pudesse fazer.

Passou uma noite, ou duas lendo as leis da Nação Pontifícia, Levítica, Roma e Eden, as atualizações dos parágrafos, a constituição, as súmulas etc. De fato, havia pouco que pudesse fazer. Se excomungar, naquele ponto, o faria ser expulso. Ele precisava recorrer a um dos bispos ou ao próprio Papa apenas, mas era impossível. Tinha pouca influência para pedir uma visita e nem sabia ao menos como começar.

Preferiu convencer a ala mais simples, os freis e os padres, se juntando aos estudos bíblicos depois dos exercícios matutinos e indo após as cestas do meio de dia aos cultos de adoração. Intimamente, sentia algo de muito estranho no silêncio, nas viradas de páginas, na leitura propriamente dita. Como uma base de um país teocrata e católico poderia ter tão poucos membros durantes as atividades religiosas. Talvez houvesse algo de realmente complicado. Os domingos, entretanto, eram cheios. Pelo menos metade da base visitava o templo de São João Batista durante as noites e as festas santas tinham muitos membros envolvidos, ceando todos os soldados rendidos e folguistas. Os oficiais participavam todos, sem falta. Apenas se resguardavam os soldados de outras nações eclesiásticas protestantes, que continuamente fitavam de rabo de olho e ou ficavam rindo baixo em seus cantos, como se uma opinião secreta, uma opinião quase herética, tivesse sido proferida.

Uma diferença, Carlos Andrade observou, uma ruptura de perspectivas. Por curiosidade, ele comentou com o frei Angustina, que respondeu ser uma problemática mais antiga do que até mesmo a Grande Queda. Uma problemática anterior aos computadores quânticos e os chips biológicos. Carlos afirmou saber o que era protestantismo, e Angustina com um sorriso disse que era então uma curiosidade sobre sobrevivência e ódio.

— O ódio cobre todos os pecados; o amor a dissenção[1]. — Angustina comentara. — A guerra não é um pecado, e a eterna muito menos; pois creio que mesmo se ela acabar, seja na vitória, derrota ou até mesmo no meio, no cansaço de ambos os lados, ainda haverá guerra entre nós. Assim se faz a inversão dos nossos valores sobre todas as coisas humanas.

Carlos Andrade se tornou realmente curioso sobre esse frei, passando parte do seu tempo com ele. Veja só, diziam, o apóstata tem um fiel ao seu lado, talvez Angustina seja um santo. Um homem que aguardavam ansiosamente o falecimento da sua esposa para que admitisse a batina de vez e se tornasse um padre, um bispo, um homem de devido poder. Assim era feito pelos católicos[2], como cascata. Um homem só era importante sem sua mulher. Mentira, ele era, mas não politicamente. Os bispos poderiam ter família, mas não esposas. Tinham que ser viúvos pela lógica eterna de não envolver problemas pessoais na questão divina. E a divindade também era o estado pontifício, e a sabedoria com o tempo e o tempo nos tira as coisas que mais nos importam e uma delas é as nossas próprias esposas. Angustina teorizava:

— Um homem viúvo é um homem velho e eu vou explicar o porquê. A viuvez, nada mais é que a perda mais sensível do que te importa pela pura causalidade do destino. O que nos demonstra a ausência da posse como uma característica natural do homem. Propriedade, em todas as suas extensões, são garantias do tempo e do destino. A perda dela, seja qual for, representa ao homem a lembrança de sua insuficiência. O coletivo não. A cultura não. Elas representam a total força do homem contra tudo. Nesse caso, um viúvo, um homem velho, entendedor do tempo e sua força, reconhecerá melhor que ninguém a importância das conexões humanas, a importância do coletivo como um todo, das relações. Um homem casado tem para si que só existe ele mesmo e sua família; uma mulher casada pensa da mesma forma — ela vai trabalhar em função da sua casa, o homem vai pensar em função da sua casa, e tudo em prol do benefício próprio. E sua casa, apesar de ser parte do estado, não é o todo. Temos que ser holistas, pensar na comunidade, pensar no futuro, pensar se estamos certos com Deus, com o destino que nos foi entregue. Um homem viúvo é um homem velho, mesmo nos seus vinte anos, pois sabendo que tudo é o tempo, tudo é o destino, tudo é Deus e o coletivo, vai entender que mesmo não sendo o protagonista, pode ajudar quem quer que seja, no que quer que seja. Mesma coisa uma criança órfã. Eu trabalhei em casas por toda Arabia Terra e no mar de Valles Marineris[3] e vi que os órfãos, diferente das crianças normais, eles tem essa coisa, essa profundidade nos seus olhos, esse ar sincero de comunidade. Fiz alguns estudos e observei seus comportamentos a longo prazo, escrevendo um artigo. Eu concluí que, nesse mundo, não há potencial maior do que numa criança órfão. Eles tem essa ausência, que substituem por atenção; tem essa misericórdia, outorgada pelo sofrimento; tem esse pensamento coletivo, dado pela comunidade silenciosa de mil irmãos. Você lê Coríntios para eles e eles choram como se cada palavra tivesse o mesmo peso de sua plena vida. Um homem viúvo, uma criança órfã e uma mulher estéril. Os lázaros de nossos tempos complicados. Nós observamos esses grupos com uma compaixão imensa, um amor que ultrapassa todas as barreiras. Eu mesmo sou órfão, e agora vejo que também o é. A morte do seu pai... eu vejo como mexe com você... eu vejo como esse grupo mexe com você. Estou te observando há algum tempo e vejo muito bem como são as coisas. Eles são sua família.

Carlos Andrade quis rir. Ele se segurou, oh! Como se segurou. Mas por fora, a seriedade dos seus olhos revelavam uma atuação digna, tendo traços de irritação, tensão, vergonha e lágrimas enveredadas. O frei tinha um sorriso simpático, que mais precisamente parecia guardar Baal entre as fileiras dentárias. Sacudi sua alma, sacudi seu ser, era o que o sorriso dizia, sou um gênio, um homem com as palavras certas, um profeta, um mensageiro divino que estripará sua alma e o fará andar pelo caminho de Deus. Carlos queria abraçar o destino pela oportunidade expressa, pelo deslize. Em suas lágrimas falsas disse que as coisas eram como eram, revelou que seu pai, apesar do comportamento desviado, era um homem bom que lutava ativamente contra as tentações e tentava contribuir ativamente pela comunidade. Sua mãe sofria, claro, mas o que há! Devemos sofrer um pouco, devemos compreender as pessoas.

— Deus dá o homem obstáculos pra ele próprio entender seu destino. — Carlos disse. — Veja bem, obedecer a Deus não é fácil, seguir seu caminho beira o impossível, e Jesus nos observa com toda compaixão e nos cura de cada ferida que os erros de nosso julgamento causam. Minha mãe sofria tal como meu pai, pelos excessos, pelo desvio, pela natureza subvertida de um coletivo doente. Você diz que uma criança órfã tem um potencial quase profético, mas um filho de pais que se odeiam tem no peito um conhecimento da alma humana que talvez nem o melhor padre, psicólogo, juiz ou conhecedor de tudo que é, terá. Minha mãe sofria, e descontava num homem que precisava de amor; e meu pai sofria, porque a ausência de amor o tornava a confundir amizade e desejo, sexo e profanação. E eu sofro pois sei que ele não teve salvação, que ele não teve como encontrar refúgio nos braços do Pai, pois morreu sem se arrepender, morreu sem se confessar. E eu sei que sofro pelo desejo sangrento da vingança. Eu vi, Pai, eu vi crianças mutiladas sob o entulho de mil pedras caiadas! Testemunhei ratos roerem os ossos de recém-nascidos no meio da avenida. As memórias do carnaval passado serão para sempre esquecidas na carnificina de Genoa, para sempre nos corpos carbonizados que gritam esquecidos... e eu rezo, rezo a Deus para silenciar essas vozes, para dá-lhes o desejo sangrento, para que me permita pecar, não em seu nome, mas pelo seu povo — para que eu peque todos os pecados, para que eu subverta tudo que me tenham ensinado, que me permita, só por um segundo, não dar a outra face, mas devolver na mesma moeda todo sofrimento que meu peito catalisou, todo sofrimento de ver um homem culpado, que eu amei, que eu amo, que guardo a memória, que era meu pai e que honrarei até meu leito apesar de seus pecados. E é isso, apenas isso. Nada mais. Meu desejo pelo sangue, pelo pecado, é pelos meus vizinhos mortos, pela minha noiva enterrada, pelo horror, pela miséria. Meu desejo é ser a espada da vingança, o retribuidor de horrores, e eu não me importo. O que eu tiver que entregar, darei. Seja ao que for.

Horrorizado, o frei Angustina observava Carlos como se observasse um réu confesso do crime mais hediondo, como se satanás em pessoa estivesse em sua frente. Por um momento de silêncio, tinha total atenção para os detalhes do rosto de Carlos, sua expressão, como se quisesse que fosse mentira, como se aquela confissão fosse demais para um homem sincero em Deus, para um homem católico. Era diferente, o frei refletia, de tudo que havia demonstrado nos estudos bíblicos e sessões em grupo. Sua ficha era complicada, também. Um veterano sem estresse pós-traumático, um sobrevivente sem sequelas, desvios de caráter, ou comportamentos não naturais. O frei realmente havia acompanhado Carlos Andrade, e não apenas por curiosidade pessoal como também por pedido do próprio Papa e dos oficiais da tropa técnica auxiliar, como o tenente Hans Reiter e Titus Augusto. Eles suspeitavam que Carlos era um espião, um infiltrado, alguém que eles não conseguiam garantir confiança em uma guerra. Ora, isso seria complicado. Em questão física, Carlos era o primeiro da lista. Era o mais forte, o mais rápido, detentor de um importante recorde do trecho A1, de arames, rastejo, pântano, afogamento, infiltração e emboscada, concluindo o percurso de 16 quilômetros com mais de 271 sensores, que normalmente era organizado pelas forças especiais, em 22 horas e 16 minutos, sem acionar um alarme sequer. Era também o mais inteligente, montando um circuito de infra na simulação J124 em 16 minutos logo na primeira tentativa, sem perder um pracinha qualquer. Pode um homem se esforçar tanto para trair sua pátria? Ele não estaria, como podemos dizer, mais interessado em ser uma pária, alguém que sabe que o final é a sua morte em desonra e que por tal deve agir pelo erro desde o princípio? Já haviam descoberto algumas operações mal sucedidas de inteligência, entretanto, essas operações eram executadas por membros do UHD infiltrados em território inimigo; nunca havendo conseguido motivar uma pessoa de dentro, nem mesmo para o fim mais banal, como pedir um segurança para olhar para o lado, ou uma pessoa encarregada de tecnologia para fazer um rápido apagão de câmeras. Carlos Andrade poderia sim ser o paciente zero, o primeiro de um plano cruel a longo prazo, mas como descobrir se não por descuido do mesmo. A plena confiança da observação era um problema, pois todo homem, seja quem fosse, sempre daria motivos de desconfiança se completamente observado, completamente desnudo, sendo visto como Deus observa a humanidade, detentor de um pecado original e de vários outros menores pecados. O objetivo do Frei Angustina naquela base era descobrir se é permitido a esse homem estranho a espada, de lutar pelo Grande Plano de Deus e, sendo sincero, quanto mais conhecia Carlos, mais desconfiava, e quanto mais desconfiava, mais medo tinha de estar presenciando uma injustiça contra um bom soldado, um soldado que faria de tudo pelos seus companheiros. Não havia nada de típico, nada de natural, com um clima constante de estranheza em tudo que se dirigia a Carlos Andrade.

O frei ficou obcecado, seus pensamentos sempre se dirigiam a Carlos e isso o atormentava vorazmente. Sua confissão, pensava, o que dizer sobre sua confissão. Quando no seu escritório, de cara para o computador e com as mãos sobre o teclado, o som de nenhum teclar pareceu terrivelmente doloroso. Pediam informações sobre o militar e essa confissão parecia ter alguma pungência, de tal maneira que o não escrever seria uma traição, não? Mas como escrever? Será que deveria ter uma opinião? Será que o dever é ser imparcial? E o que escreveria, ele tinha todo o discurso na cabeça? Será que conseguiria lembrar de cada palavra. Pediu a Deus que lhe inspirasse, que as letras trouxessem justiça, que o dever fosse, enfim, cumprido.

Carlos Andrade também redigia um arquivo, talvez de tanta importância quanto o de Angustina. Um arquivo longo, com detalhes explícitos sobre a nação pontifícia e sua influência no que ele considerou ser ‘o mar eclesiástico’. Um mar divergente, um mar de marés poderosas, um mar desconhecido, mas que sempre seria a oposição da terra. A terra que é o UHD.

E sabendo que Carlos Andrade na verdade é Dois Meia, e que Dois Meia não é de nenhum mar de Marte, e sim da terra, seu cinismo enfim o matava e te tirava o sono, enfim te destruía e o fazia lembrar e sentir saudades da verdade. Mas o disfarce era bom, muito bom. Tanto que seus companheiros o observam e dizem que aquele sim era um soldado de verdade, que o peso finalmente atingia e que a leveza era apenas um sintoma pós-traumático.

Repare bem, a sargento Biancucci muda a forma e opinião sobre esse oficial ocre. Olhe só, Hans Reiter confia já sua vida a alguém que antes sentia temer ser seu futuro assassino.

Como um anjo de mármore espiando no beiral de uma janela de inverno, e cujo nunca mais expressa e que nunca mais é seu desejo e do qual nunca mais ele conjura para o alívio e dor da alma, sua confissão foi escrita no dossiê E237, documento extra oficial enviado ao Papa Marcos Petrus I, que para afim de entender o que é e o que seria, desejou ter uma visita particular, enquanto sua estadia perdurava na base João V na Lapis Regio.

Foi numa manhã quente, uma manhã de verão em que o céu rapidamente se colore nas madrugadas insones com um azul incerto, ou um roxo avermelhado que em pouco se torna amarelo até que o céu sem nuvens rasgue a carne das pinturas foscas de soldados desavisados, indo até a câmara de guerra escoltado por dois tenentes-coronéis de meia idade e com fisionomia altiva, misturado com um rosto exibindo toda rigidez militar precisa de um homem de carreira. Lá, se surpreendeu: Oliver-Pine figurava numa poltrona de imitação de couro ao longo da longa mesa onde um complexo holograma estava suspenso na escuridão daquelas partes. Carlos tomou posição de sentido, quase instantaneamente após a apresentação e despedida dos oficiais, sendo surpreendido por um nervosismo atípico, junto de uma ansiedade comprometedora.

— À vontade, meu filho. — O papa disse com sua profunda e respeitosa voz.

Carlos tinha Oliver-Pine na sua mira figurada, interessado mais na aparência daquela tão importante figura do que em assassiná-lo enfim e se livrar do que o prendia a toda aquela imundice — sendo sua surpresa a ordinária aparência de uma persona tão intensa. Era franzino, cabelo de estilo militar, sem barba, um maxilar que exalava força e os comuns olhos castanhos, não parecendo ser alguém em quem se confie de primeira; não! E por isso tinha aquele ar tão hipnótico, pois alguém não confiável, normalmente, sempre tem os argumentos mais favoráveis.

O papa, que o observava com curiosidade, introduziu Oliver, dizendo que ali ele se encontrava pelo interesse final de seu conhecimento e o da finada base adriática, cujas informações não haviam conseguido recuperar.

—  O arquivo que você trouxe sobre profana nos deu luz de como conduzir uma guerra e suas batalhas, sem precisar apenas sofrer, chorar e esperar o erro alheio no mínimo julgamento e se apoiar em forças escassas para contra-atacar. Temos um plano de ação e pequenos e recentes testes e simulações nos mostraram que finalmente estamos prontos. — Oliver disse. — E ao saber da história de como esse arquivo nos foi entregue, das mãos de um bravo soldado, sobrevivente de duas chacinas, nos deu uma luz, uma verdadeira luz em tempos inexatos. Você é um herói, e não sabe ainda. Um homem abençoado por Deus, nosso Isaías!

Carlos segurou a risada, mantendo a fisionomia. Um homem com as palavras certas de fato. O Papa ao lado também parecia ser um bom orador. E veja como são as coisas. Não perguntaram nada a ele que fosse comprometedor, não fizeram nada para que ele errasse. Primeiro exaltaram e depois confirmaram suas posições. Por fim, Oliver-Pine perguntou se ele queria mesmo continuar nessa guerra.

— Eu preciso de alguém de confiança, preciso de um guarda-costas. E bem, depois que vi seu histórico, tenho certeza que não haveria ninguém melhor para posição do que você. O que me diz?

Inocentes! Carlos, Dois Meia, Franker... os três viram a verdade por trás dos panos, viram a armadilha, o cavalo de troia por trás de tão doce proposta. Eles querem saber se eu sou verdadeiro em minhas intenções, eles querem! Eles querem saber se minha confissão era algo axiomático! Mas claro que eles não ligam, claro que é tudo mentira, claro que essas figuras elípticas são um rio de intenções que nunca se chocam com as pedras da incerteza.

— Infelizmente — respondeu sem olhá-los nos olhos e mantendo a postura magnânima de um militar desinteressado — meus deveres são óbvios e meu destino está mais do que certo. Sei que essa é uma proposta irrecusável. Apesar de tudo, ainda sou e sempre serei o cabo Carlos Andrade de Sávia, da tropa técnica auxiliar da base Lúcio Antunes e da finada base Adriática. E, apesar de ser cristão e católico, carrego em mim a maldição da vingança e assim devo busca-la até o fim ou até minha morte.

O papa era sereno no olhar e seu sorriso cansado parecia revelar uma compaixão profunda, e em qual uma pessoa mais experiente, uma pessoa realmente conhecedora do ser humano, diria ser cinismo puro misturado com tédio e raiva por desperdiçar seu tempo com nada. Ele pediu que ele se sentasse com eles, pelo menos, para uma refeição e que, como dito antes, poderia ficar à vontade. Ele o fez, indo para a imponente mesa de reuniões, escolhendo uma das 24 cadeiras que circundavam, vendo-se de frente para as duas figuras lado a lado.

A aparência do papa era engraçada. Ele parecia novo, muito novo na verdade, como se tivesse 19 anos e fosse um órfão que acabara de se formar como frei e seus cabelos eram loiros e seus olhos eram azuis. Era uma aparência angelical, na verdade, aqueles cabelos enrolados, aquelas vestes clássicas de túnica e batina. Um homem que era um anjo. Bem diferente da aparência arrojada de Oliver-Pine; uma dupla contrastante.

— Saiba, — Oliver-Pine continuou — a proposta ainda está de pé. Enquanto eu e você estivermos respirando esse bom ar, a proposta ainda estará de pé. Eu te respeito, cabo Andrade, e sua índole é tão transparente, que até a sacra figura ao nosso lado se treme.

O papa riu.

— De fato, meu filho. Um homem entre os homens. Uma pena não podermos integrá-lo ao nosso corpo militar. Enfim. As regras antecedem nossas vontades, pois como dizem: para obedecer a Deus, devemos, primeiro, desobedecer a nós mesmos. E por Deus, nossas regras, por Cristo nosso destino de dever e instituição. Mas pelo menos, sua ilustre presença parece melhorar a moral. Descobrimos, por exemplo, que seu interesse pelos estudos bíblicos levou outros oficiais de nações diferentes a integrar essas reuniões ativamente. Estou lendo artigos aqui que pensei que só leria em universidades no Vaticano. Espero que esse espírito de boa aventurança lhe acompanhe em Levítica e que seja bem sucedido em tudo que o futuro reserve.

Carlos sorriu, concordou, afirmou, comentou. O peso daquelas duas figuras esmaeceu. Tudo como os conformes. Elijah Oliver-Pine, filho da puta. Falso profeta de merda. Comia pato, com arroz e purê. Desejava na verdade uma cerveja ou um cigarro. A mentira, a mentira corroendo. Talvez faltasse muito, talvez faltasse cem anos. Assassinaria Oliver-Pine apenas pelo sorriso de Um, apenas pelo encanto dos seus olhos, retornando ao seu bel-prazer; retornando o Deus de sílica sob a divina luz de plástico — e a mentira parecia ainda te corroer do início ao fim.


[1] Inversão do versículo 12 do décimo capítulo de Provérbios, onde diz: “O ódio provoca dissenção, mas o amor cobre todos os pecados.”

[2] Gentílico de quem nasce na nação Pontifícia é católico.

[3] Grande Lago nº1, fundado em 589 A.F. Sua importância no controle atmosférico e climático é tão grande, que nos primórdios da fundação das sociedades das planícies, o primeiro grande acordo foi a manutenção e cuidado desse corpo d’água em prol de Marte, sendo protegido por todas as instituições conhecidas desde 630 A.F, no conhecido grande acordo climático, que fora redigido pelo ministério de terraformação marciana.



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