A Terceira Lua Cheia Brasileira

Autor(a): Giovana Cardoso


Volume 1

Capítulo Extra: O Dragão de Gelo da Terra dos Seis Céus

“Assim como a água se molda conforme o recipiente que a contém, devemos aprender a nos adaptar às circunstâncias da vida para fluir com facilidade.”

(O Fluxo das Águas, Mizuhiro)

 

2ª Lua Cheia do ano 1619, dia 6

Lua do Declínio

 

 

As ondas quebravam no cais enquanto Takeshi controlava habilmente a água ao redor do pequeno barco de madeira que lançara ao mar. Seus movimentos eram fluidos e calmos, concentrando a magia no centro de seu corpo e dispersando-a cuidadosamente. Não havia nada no mundo que Takeshi amasse mais do que o mar. Sentia o fluxo da água mover-se como se fosse parte de seu próprio corpo, e isso o fazia se sentir completo.

Desde jovem, Takeshi sonhava em se tornar um navegador, mas essa era uma profissão reservada apenas aos desprovidos de magia. Para muitos, navegadores e pescadores eram vistos como representantes de sua classe inferior, mas Takeshi os considerava afortunados, pois o mar pertencia a eles.

— Jovem mestre! Jovem mestre! — A voz era de Kaito, um serviçal do castelo. Rapidamente, Takeshi recolheu a pequena embarcação e a escondeu na areia. Ele não podia ser visto com algo assim, principalmente porque estava ali para praticar, o que não deixou de fazer, mas seu mestre não aceitava nada que fugisse aos seus ensinamentos. Qualquer outra coisa era considerada uma distração.

Quando Kaito chegou, ele já estava recomposto, com seu tridente em mãos, repetindo os movimentos do Dragão Aquático, como se tivesse feito somente isso a manhã inteira. Fingiu não ter ouvido o serviçal se aproximar. Sabia que seu pai sempre mandava alguém verificar se estava concentrado na técnica.

— Jovem mestre, chegou um navio da capital. — Kaito falou com a respiração falhando. Aparentemente havia corrido todo o percurso. — Houve uma reunião com o senhor Kenjiro e seu pai requer sua presença no salão de audiências.

“Um navio da capital? Onde está ancorado?” Neste momento Takeshi só queria correr até o porto para ver o tal navio. Tinha ouvido histórias sobre os navios da capital e queria saber se realmente eram tão diferentes dos que construíam na ilha. Mas não falou nada sobre sua curiosidade. Apoiando a haste do tridente no chão, ele balançou a cabeça em concordância e seguiu o serviçal, sem imaginar que não só veria o navio, como também viajaria nele.

 

Ao anoitecer, após o banquete formal oferecido ao mensageiro do imperador, Takeshi escapou pela ala leste do castelo, por ali, apesar de acompanhado por seus guardas pessoais, ele conseguia deixar a propriedade sem ser visto pelo pai.

Com o início do outono, o clima estava começando a esfriar, mas ele não se preocupava com isso, além do mais não demoraria muito lá fora, só precisava pegar uma coisa na praia. Mas quando remexeu na areia com o pé, não havia nada lá. Surpreso, ajoelhou-se e começou a cavar com as próprias mãos. Não estava em lugar algum.

— Procurando por algo? — Apesar de reconhecer a voz, Takeshi olhou em volta sobressaltado, não havia ninguém por perto quando chegou ali. Então alguém se moveu, saindo das sombras abaixo das grandes rochas que contornavam a praia. A primeira coisa que Takeshi viu foi o objeto que ele carregava. O barquinho. Então ergueu o olhar para o rosto que se tornava visível sob a luz da lua.

— Aah, Jun, é você — disse se sentindo aliviado. Desde que fora chamado pelo pai, Takeshi se sentia inquieto. Uma onda de expectativa e medo o envolvia. Mas ele poderia conversar com Jun, seu amigo mais antigo.

— Devia ver a sua cara, parecia que tinha visto um fantasma. Pegue! — Ele jogou o barquinho na direção de Takeshi, que o segurou com firmeza em um movimento rápido. — Tropecei nele mais cedo. Sabia que você ia aparecer a qualquer momento.

“Você me conhece muito bem.”

Aquele barco foi um presente da mãe de Takeshi. Ele não se lembrava mais dela, mas diziam que seu cabelo castanho claro era exatamente igual ao dela. O barquinho era a única coisa que havia restado como lembrança.

— Obrigado. — Agradeceu enquanto se sentava na areia úmida. — Chegou um navio da capital hoje de manhã.

— Eu soube. Está tudo bem? Você parece um pouco preocupado.

— Fui convocado à capital. Deixo Himarashi pela manhã. Você sabe o que isso significa, não é?

— Um torneio? — Jun sabia. Todos sabiam. O último Torneio do Dragão Imperial ocorrera há mais de cem anos quando foi consolidada a aliança entre os clãs Ito e Yamagawa. E havia somente um motivo para acontecer um agora. O imperador estava velho e não conseguiu gerar nenhum herdeiro biológico. Então os herdeiros dos clãs mais poderosos precisavam provar sua competência por uma chance de se tornar o próximo governante.

— Sim... — Takeshi suspirou. — Ele deveria simplesmente escolher um jovem de uma família inferior do clã Ito.

— Às vezes você fala como uma criança. — Jun riu. — Você sabe que não é tão simples. Esse torneio é mais um jogo político do que qualquer outra coisa.

— Eu sei — concordou. Era só uma forma que a família real encontrou de manter o poder enquanto garantia aliados fortes. Escolher um governante de fora era só fachada. No fim o poder nunca deixava de ser deles.

— Aah Takeshi, você tem sorte. Pode participar do torneio e tem muita chance de vencer.

Takeshi sentiu um arrepio por todo seu corpo com essas palavras. Sorte? Ele desejava muitas coisas, mas competir no torneio não era uma delas.

— Se eu te pedisse pra ir em meu lugar, você iria?

— Eu iria sem pensar duas vezes. Mas, você sabe que isso não é possível.  Eu sou um simples pescador, isso seria uma afronta ao imperador. — Isso surpreendeu Takeshi. Ele acabou fazendo aquela pergunta sem pensar e não imaginava que Jun responderia dessa forma.

— Então venha comigo. Não posso torná-lo um guarda pessoal, mas posso conseguir um lugar pra você como soldado de apoio. — Jun pareceu hesitar com a ideia, então Takeshi acrescentou apressado. — Eu sei que você é um ótimo espadachim, se for, terá a chance de melhorar suas técnicas. E caso eu vença o torneio, posso garantir um cargo no exército imperial, e mesmo que eu não vença, é sua chance de chamar a atenção do meu pai. Você nunca mais teria que se preocupar com nada.

— Aah desisto! Mizuryu sabe como você consegue ser irritantemente persuasivo. — Jun respondeu deitando-se na areia, espalhando seu cabelo escuro sobre os braços que usava de apoio para a cabeça.

— Esteja pronto ao amanhecer. Resolverei tudo ainda essa noite com meu pai. Nos vemos no porto. — Dizendo isso, Takeshi se levantou derrubando areia de sua túnica luxuosa e deixou a praia apressado.

O raro sorriso que Takeshi esboçou naquela noite, o fazia parecer muito mais jovem do que seus quinze anos.

 

***

 

Como Takeshi havia imaginado, o navio era surpreendente em todos os sentidos. Flutuando majestosamente sobre as águas tranquilas do porto, ele ostentava uma arquitetura impressionante, embora parecesse rústico se comparado aos navios do clã Mizushima, qualquer pessoa poderia dizer que era belo, pois era exatamente assim que ele era, com sua estrutura alta e esbelta, decorado com símbolos e desenhos elaborados. As velas ainda estavam recolhidas e a bandeira vermelha do clã Ito tremulava suavemente ao vento.

— Uma bela visão hein? — Um homem havia se aproximado pelo lado esquerdo de Takeshi. Ao olhar para o lado ele precisou erguer a cabeça para conseguir visualizar seu rosto, com uma barba espessa e cabelos grisalhos amarrados em um coque. Takeshi nunca tinha visto alguém tão alto assim. Com sua presença imponente e voz profunda, o homem parado ao seu lado era Harujiro Saito, o capitão do navio. O breve susto quase fez Takeshi se esquecer do comentário que ele fizera. Olhando de volta à frente, finalmente respondeu.

— Sim. É realmente deslumbrante. — Os primeiros raios do sol envolviam o navio, refletindo sobre a água do mar e criando uma aura cintilante que abraçava toda a embarcação. Era como se uma visão de sonho se materializasse diante de Takeshi, uma cena que ele sabia que jamais esqueceria.

— Claro que é! — Harujiro respondeu com uma gargalhada estrondosa e logo partiu em direção ao navio, deixando Takeshi para trás. O rapaz sentia um nó de ansiedade se formar no estômago. Respirou fundo tentando se acalmar, pois temia acabar vomitando quando estivesse a bordo e isso seria vergonhoso. Concentrou toda sua atenção no mar. Logo seu pai chegaria com seus homens.

E Jun.

Sem perceber, Takeshi sorriu. Jun realmente viajaria ao seu lado para a capital. Ele estava determinado a convencer o pai na noite anterior, e ficou realmente surpreso quando ele concordou tão rápido. De certa forma, esse pensamento lhe trouxe paz. Seria mais fácil lidar com o torneio tendo um amigo por perto.

Um som estridente cortou o ar, chamando sua atenção. Eram os tambores que ressoavam no porto, anunciando a chegada do senhorio.

Takeshi se virou, seu coração batendo mais rápido. Do outro lado, Masato Mizushima se aproximava com passos firmes, escoltado por seus guardas pessoais. Suas vestes elegantes realçavam sua postura imponente. Masato parecia ter nascido para comandar, em contraste com Takeshi, que sempre se sentira deslocado. Masato emanava uma aura de poder e autoridade natural, enquanto Takeshi se via como desajeitado e inadequado para a posição que ocupava.

Enquanto a multidão reunida se curvava em reverência ao líder, Takeshi observou os soldados de apoio se aproximando logo atrás. Seus olhos buscaram por Jun, mas ele não estava à vista. Seu pai já estava próximo e Takeshi se virou para ele, cumprimentando-o antes de tomar seu lugar ao lado dele, preparando-se para embarcar.

Todos já estavam a bordo, mas Jun não estava entre eles. Takeshi conteve o impulso de sair à sua procura e permaneceu ao lado do pai, que conversava com Kenjiro, o emissário do imperador.

— Preparem-se para levantar âncora e desfraldar as velas! — gritou Harujiro. Os marinheiros se moveram rapidamente, cada um executando sua tarefa designada. Alguns começaram a girar as manivelas para levantar a âncora, enquanto outros corriam para soltar as velas. O som das cordas sendo puxadas e das velas sendo desenroladas encheu o ar, misturando-se com os gritos dos marinheiros trabalhando em uníssono.

De repente, Takeshi foi tomado pelo pânico. Jun não estava no navio, não podia partir sem ele. Num impulso, deu um passo à frente, mas ao abrir a boca para falar, avistou Jun correndo desajeitadamente no porto, vestindo seu traje de soldado de apoio. Takeshi parou, suspirando de alívio enquanto seu amigo subia a bordo. Um olhar de reprovação de Masato fez Takeshi lembrar-se de manter sua expressão séria diante do pai. Por dentro, porém, ele sorria. “Droga, Jun! Ainda tem muito o que aprender!” Repreendeu o amigo mentalmente.

— Ótimo trabalho, homens! — Harujiro voltou a falar. — Preparem-se para partir! — Com isso o navio começou a se afastar do porto, cortando suavemente as águas rumo à capital, Ryokume.

Embora não desejasse participar do Torneio do Dragão Imperial, Takeshi estava em êxtase por navegar em direção ao continente. A viagem duraria vários dias, e ele teria a oportunidade de contemplar o Mar Hikari, o Mar do Dragão e o Mar Han’ei com os próprios olhos. Para alguém que nunca havia deixado a ilha de Himarashi, aquilo era a realização de um sonho.

 

***

 

O navio chegou ao Porto Yosei quase no fim da Lua do Declínio e, após a jornada a pé até a capital, chegaram exatamente no início da Lua da Chama, a terceira lua cheia do calendário lunar.

Se o navio era incrível, a capital imperial era magnífica. Takeshi tinha a sensação de ter viajado para outro país. Uma cidade construída numa região vulcânica, cercada por montanhas com suas belíssimas construções que se encaixavam perfeitamente no ambiente. Ao fundo o Monte Iki se destacava. Era uma visão que parecia ter saído de uma pintura.

Um clima festivo se espalhava pelas ruas e um aroma picante delicioso enchia seus pulmões enquanto cruzavam a cidade. Sendo o mais afastado, o clã Mizushima foi o último a chegar na capital.

Logo estavam instalados no palácio. Era a primeira vez que Takeshi visitava o grande palácio, mas seu pai, eventualmente era convidado para festividades e formalidades. Além disso, sendo membro do conselho e o terceiro líder de clã na hierarquia, era comum estar próximo ao imperador.

Durante a viagem Takeshi quase não havia conseguido conversar com Jun, além disso também estava muito distraído com o mar. Tinha pensado que quando chegasse à capital, poderiam ter mais liberdade para falar com seu amigo, mas não poderia estar mais enganado. Enquanto ele precisava permanecer no palácio, Jun, sendo um simples soldado de baixa patente, não tinha permissão para entrar. Era frustrante.

Naquela noite, após o jantar cerimonial, os convidados foram conduzidos ao teatro imperial. O salão do teatro era amplo, circular, construído inteiramente em madeira polida que exalava o cheiro do cedro antigo. Lanternas de papel pendiam do teto em delicadas fileiras, lançando uma luz suave e âmbar sobre o palco e os espectadores. Cortinas vermelhas de seda separavam o espaço cênico da plateia. O palco, elevado e ladeado por tambores taiko e músicos com shamisen, era um exemplo vivo da arte nobre que sustentava o coração da capital imperial.

A peça escolhida narrava a origem do mundo, a dádiva da magia concedida pelos deuses e a fundação dos grandes clãs. Era uma escolha simbólica, cuidadosamente orquestrada. O imperador desejava não apenas entreter, mas também reforçar os pilares da tradição e da autoridade.

Na primeira fileira de assentos, sob o olhar atento da corte, estavam reunidos todos os líderes de clãs: Yamagawa, Mizushima, Ishikawa, Himura e Kazehana. Ao lado deles, os jovens herdeiros que em breve competiriam no Torneio do Dragão Imperial. A atmosfera era densa, carregada de formalidade e expectativa.

Takeshi se sentou ao lado do pai, tentando conter a inquietação nas mãos. Estava em trajes formais, um quimono azul-acinzentado com o brasão do clã bordado no ombro. Assim que cruzou os braços sobre o colo, sentiu a pressão descer sobre seus ombros como um manto invisível. A presença do pai, firme e silenciosa ao lado, bastava para lembrá-lo de que não havia espaço para deslizes. Cada gesto, cada olhar, seria observado. E julgado.

Mantendo a postura rígida, percorreu com o olhar, a fileira de assentos reservados aos demais filhos dos líderes de clãs. Todos estavam ali. Kazuki Yamagawa com seu sorriso calculado, os gêmeos Himura, idênticos em arrogância, Ayaka Kazehana com seu olhar orgulhoso... e, claro, a presença silenciosa de Hidetora Ishikawa. Todos reunidos, não apenas para assistir a uma peça, mas para observar e serem observados.

O imperador, Masatora Ito, o Dragão Celestial, ocupava o centro da tribuna real, erguido sobre um trono de madeira laqueada em dourado, que mais parecia flutuar acima dos demais. Sua figura permanecia imóvel, envolta em camadas de seda e silêncio. O rosto, oculto por uma máscara cerimonial branca, não havia expressão, apenas o enigma de olhos que observavam tudo sem jamais serem lidos.

Ao seu lado, a imperatriz Natsue, herdeira da antiga nobreza do clã Yamagawa, reluzia como uma pintura viva. Seus cabelos negros estavam presos em elaborados arranjos com presilhas de ouro delicadamente cravadas, e sua pele, pálida como a lua cheia sobre os campos de inverno, refletia a luz das lanternas com uma graça silenciosa. Seu olhar era calmo, mas firme. A expressão de quem fora criada para observar o mundo com compostura e julgar sem pressa.

As luzes se apagaram. O som grave de um taiko ressoou, lento e profundo, como um trovão antigo. Uma cortina de fumaça se ergueu no palco, onde um ator com longas mangas pintadas com chamas girou com precisão ritualística.

Do fundo da cena, uma voz masculina e ressonante ecoou, acompanhada por uma melodia solene no shamisen:

— No princípio, o vazio e a escuridão. Fogo e Água. Forças em formação…

A história da criação se desdobrava em movimentos teatrais, lentos e reverentes. Dois atores com máscaras representando Kaenjin e Mizuryu, Fogo e Água, dançavam em espirais opostas, suas vestes longas girando como chamas e ondas. Toda a linguagem corporal era carregada de significados simbólicos. O respeito à natureza divina, o nascimento da terra, a dança da vida.

Takeshi observava, fascinado, mas também inquieto. Cada palavra parecia ter um duplo propósito. Não era apenas um espetáculo, era uma afirmação de poder, de legado. A história dos clãs sendo moldada pela voz oficial do Império. Uma narrativa que exaltava a supremacia do clã Ito, coroando-os com o direito sagrado de governar.

— Com o tempo, a humanidade cresceu.

Divindades abençoaram, cada um escolheu.

Cinco clãs, o poder dividiu.

Mas o clã Ito, a supremacia assumiu...

A entoação final foi acompanhada por um tambor rufando com intensidade crescente. No palco, todos os deuses se ajoelhavam diante de um único ator com trajes dourados, o ancestral do clã Ito, recebendo das mãos divinas uma espada flamejante.

Takeshi sentiu o estômago revirar.

Aquilo era teatro, sim. Mas também era política. Uma lembrança encenada, para todos ali, de que o trono pertencia por direito a apenas uma linhagem. Uma tentativa elegante de reafirmar domínio sobre os demais.

Mas havia um detalhe que, convenientemente, fora silenciado ao longo dos séculos.

A versão oficial exaltava Kaenjin, o deus do fogo, como patrono do clã governante. Contudo, todos sabiam. embora poucos ousassem dizer em voz alta, que a primeira divindade a emergir do vazio primordial foi Mizuryu, o dragão das águas, o primogênito entre os deuses. Segundo as escrituras mais antigas, a supremacia do mundo deveria ter pertencido à sua linhagem, aos escolhidos pelas marés e pela sabedoria fluida da água.

Dizia-se que Mizuryu haveria de conceder suas dádivas ao verdadeiro soberano, aquele que governaria com equilíbrio. Mas enquanto os demais deuses repousavam, Kaenjin desceu secretamente do palácio celestial. Escolheu um cavaleiro entre os homens, abençoou-o com as chamas da ambição, e assim nasceu o clã Ito. Proclamado governante supremo da Terra dos Cinco Céus.

Quando as outras divindades despertaram, a transgressão já era irreversível. Em resposta, cada uma escolheu um humano para carregar seus dons, dando origem aos cinco grandes clãs:

Mizushima, da água.

Kazehana, do ar.

Himura, da luz.

Yamagawa, da sombra.

Ishikawa, da terra.

Esses clãs seriam, segundo a nova ordem, vassalos do clã Ito, os herdeiros do fogo.

Mas a paz era ilusória.

Tomado pela fúria, Mizuryu amaldiçoou o clã Ito, profetizando que um dia seriam consumidos por sua própria arrogância e destruídos pelos filhos das águas. O clã Mizushima, que tomaria seu lugar de direito como regente do mundo.

Esse trecho da lenda, claro, ninguém tinha coragem de citar nas celebrações imperiais.

Enquanto os aplausos educados ecoavam ao fim da peça, Takeshi desviou o olhar para o assento ao seu lado. Jun deveria estar ali. O amigo que tantas vezes ouvira suas dúvidas, suas frustrações. Mas agora, ele estava do lado de fora dos portões, como todos aqueles que nasciam fora do círculo privilegiado.

E ali, sob o brilho cálido das lanternas e o som do shamisen ecoando em seu peito, Takeshi compreendeu. Naquele jogo de poder, ele não era nada além de uma peça no tabuleiro.

Naquela noite, uma neve fina começou a cair.

Era outono, e embora o vento frio já cortasse o ar, nem mesmo no inverno, era comum nevar em Ryokume, a joia dourada do Império, protegida pelos ventos quentes do sul.

Mas agora, flocos brancos dançavam silenciosamente sobre os telhados do palácio, apagando os contornos das bandeiras, silenciando os jardins.

Os antigos diziam que, quando a neve tingisse de branco a capital imperial, era sinal de que os deuses estavam inquietos. Um presságio. Um aviso.

Ao recordar essa lenda, um arrepio percorreu a espinha de Takeshi, não apenas por causa do frio, mas por algo mais profundo. Uma intuição súbita, como se o próprio destino estivesse prestes a mudar de direção.

 

***

 

À medida que a neve caia, os dias pareciam passar cada vez mais devagar. O inverno havia enfim chegado, mais impiedoso do que jamais fora naquela região, e o torneio aconteceria somente na Lua da Luz, com o início da primavera.

Takeshi estava sentado de pernas cruzadas, pensativo. Pegava pequenos punhados de neve na palma da mão, apertando e moldando em formas arredondadas, depois, arremessando no ar fazia com que explodissem utilizando sua magia. O resultado era uma pequena chuva que brilhava na luz do sol.

— Qual é a dessa cara? — perguntou Jun que havia acabado de chegar e se sentou ao lado de Takeshi.

— Saudade de casa.

— Eu falei pra você que logo estaria chorando igual um bebê.... — Jun encarou o rosto de Takeshi que continuava sério. Talvez até um pouco triste.

— Está falando sério né? — disse sentando-se ao lado dele e pegando um punhado de neve também. — Todo mundo tem dias ruins. Mas, sabe... Sempre podemos encontrar motivos pra sorrir.

Takeshi só teve tempo de desviar o olhar na direção de Jun antes de ser acertado em cheio na cara pela bola de neve.

— O quê? Como tem coragem? — Takeshi gritou se levantando enquanto Jun rolava na neve dando gargalhadas.

Quando Jun olhou para ele, já estava formando uma bola gigante de neve, que flutuava no ar.

— Desculpe, desculpe! Assim não vale Takeshi! — Seus gritos foram sufocados pela grande quantidade de neve que o atingiu. Ele saiu sacudindo os braços para se livrar do excesso de neve. Quase não conseguia respirar de tanto rir. Takeshi também estava rindo, isso o deixava feliz.

— Aliás, eu não estava chorando como um bebê. — Takeshi falou se acalmando. — Só estou zangado com tudo isso. Tudo que eu queria era voltar pra Himarashi e viver em paz.

— Você pretende perder o torneio? — Jun falou com cuidado. Já estava desconfiando que o amigo estivesse pensando em algo assim. Takeshi ficou tenso.

— Não posso. Preciso participar e dar o meu melhor. De outra forma, seria uma desonra para minha família. — Ele apertou os dentes com força.

— Você vai voltar pra casa Takeshi, e eu vou estar ao seu lado quando isso acontecer.

Naquele momento se esperava que um amigo torcesse pela vitória do outro, mas o que Jun poderia fazer ao ver que ele não desejava isso? O olhar de Takeshi suavizou e ele deu um sorriso provocador.

— Esquece Jun, você não é meu tipo.

Os dois explodiram em gargalhadas sem saber que essa seria última vez.

 

***

 

Quando algo ruim está prestes a acontecer, nunca existe um aviso. Talvez seja por isso que a dor é ainda maior. Ela chega silenciosa, como a neve naquela noite, fina, quase imperceptível. E, de repente, tudo está coberto.

Os dias que se seguiram foram marcados por uma tensão que Takeshi não conseguia nomear. O imperador convocou uma reunião do conselho imperial. Todos os líderes de clã estavam presentes, e Takeshi, mesmo sentado ao fundo, sentia o peso do momento.

A notícia foi anunciada sem rodeios: o Torneio do Dragão Imperial seria adiado indefinidamente. A imperatriz Natsue, grávida de oito meses, estava prestes a dar à luz a um herdeiro biológico do clã Ito, e, por decisão do imperador, toda a atenção do império deveria se voltar à proteção da criança que carregaria a linhagem sagrada.

Mas houve silêncio. Um silêncio que não era de aceitação.

— Isso é inaceitável — disse o pai de Takeshi, com voz firme e clara. — O torneio é um rito milenar. Sua suspensão fere não apenas a tradição, mas a ordem que juramos proteger. Se o império está sem sucessor, é porque nós falhamos em cumprir nosso papel.

O imperador o encarou, mas por trás da máscara cerimonial era impossível decifrar suas intenções. O que se seguiu foi uma troca fria de palavras. Nenhuma resolução foi tomada naquele dia.

Naquela noite, Takeshi não viu o pai retornar ao quarto. O vento uivava entre os pilares do palácio, e a neve voltava a cair.

Dois dias depois, a história do império foi reescrita.

Tudo aconteceu de forma brutal e repentina. Durante a madrugada, tropas leais ao pai de Takeshi, reforçadas por guerreiros do clã Himura, invadiram o palácio sob o pretexto de reforçar a guarda imperial. Mas não havia intenção de proteger ninguém.

O salão principal foi tomado antes do amanhecer. O imperador Masatora Ito foi executado, junto com todos os membros da linhagem real. Dizem que a imperatriz tentou fugir, que gritava por clemência, com uma mão sobre o ventre, mas ninguém foi poupado.

Takeshi viu o sangue antes de entender o que estava acontecendo. Foi arrastado até a Sala do Dragão e, diante do trono ainda manchado, seu pai ajoelhou-se diante dele.

— Hoje começa uma nova era. Você, meu filho, é o novo regente do Império Celestial.

A mão dele segurou a nuca de Takeshi e o forçou a ajoelhar.

— Mas lembre-se, meu lugar é à sua direita. Enquanto for jovem, você reinará em nome do conselho. E eu sou o conselho.

No fundo da sala, o corpo de Jun jazia no chão, os olhos abertos, como se ainda esperasse por uma explicação.

Takeshi não chorou naquele dia. Apenas sentou-se no trono, com a pele gelada e o coração vazio. A máscara cerimonial de Masatora havia sido colocada em seu colo, como um símbolo da linhagem extinta. Ele a encarou por longos segundos antes de erguê-la e vesti-la.

Anos se passaram desde então.

Takeshi continuou ali, sentado no trono do Império Celestial, mas nunca como imperador de verdade. Ele era apenas uma imagem. O garoto prodígio, o novo herdeiro, o símbolo de uma paz conquistada pelo sangue. Enquanto isso, seu pai governava por trás das cortinas, usando seu nome, sua juventude e sua presença para legitimar o regime que havia construído com as próprias mãos.

Com o tempo, Takeshi aprendeu a esconder seus pensamentos. Aprendeu a sorrir nos banquetes e a manter o olhar firme nas cerimônias. Mas toda vez que o vento soprava do norte, e as lanternas do palácio tremulavam, ele se lembrava do som que o shamisen fez naquela noite no teatro. E da neve.

Aquela neve que, segundo os antigos, era sinal de um presságio sombrio.

E ele sabia: a história ainda não havia terminado.

 

O céu amanhecia tingido de cinza sobre o litoral de Ryokume. O vento soprava salgado e úmido, fazendo o tecido do manto de Takeshi ondular como as próprias ondas que quebravam adiante.

Ele estava só.

Com dedos cuidadosos, desfez o nó que envolvia o pequeno embrulho de tecido azul. Dentro, repousava um barco de madeira esculpido à mão, minuciosamente pintado em tons claros, com detalhes dourados que o sol nascente começava a iluminar. Uma herança de sua mãe e um símbolo de sua amizade com Jun.

Takeshi o admirou pela última vez antes de erguê-lo com ambas as mãos, como quem segura uma oferenda.

— Adeus, mãe. Adeus, Jun.

Sua voz mal ultrapassou o som das ondas. Com um gesto firme, lançou o barquinho ao mar. Ele flutuou por um instante, oscilando, até ser arrastado pela correnteza. Takeshi acompanhou o movimento até que se tornasse um ponto indistinto no horizonte.

Enquanto o observava ser levado para longe, sentiu seu peito se esvaziar também.

Toda a dor que o consumia, a dependência de aprovação, os sentimentos que o prendiam ao passado. Tudo foi embora com aquele barco. Era como se o mar, que tantas vezes fora testemunha de sua fraqueza, agora o purificasse.

Ao voltar para o palácio, os corredores pareciam mais estreitos, as paredes mais frias. Mas ele caminhava como se estivesse sobre a água, leve e silencioso. Seus passos já não pertenciam ao mesmo jovem que fora manipulado, ignorado e usado como símbolo. Eles pertenciam a outro. Alguém que finalmente decidira agir.

Vestiu-se lentamente, escolhendo trajes cerimoniais em tons de preto e prata, com detalhes em azul profundo. Era uma veste imperial incomum, mas ele a havia feito sob medida, há anos, para o dia em que se tornasse o que nascera para ser. Amarrou os cabelos com firmeza. Cada movimento era calculado, como um guerreiro antes da batalha.

No centro do seu corpo, a energia mágica pulsava em silêncio, densa como o fundo do mar.

“Assim como a maré”, ele pensou, “a magia da água tem seus fluxos. Mas o segredo é dominar o tempo. Saber quando se conter… e quando romper.”

E ninguém dominava isso melhor do que ele.

Desde jovem, havia superado todos os mestres de seu clã. Seu domínio não se limitava à água. O gelo respondia ao seu toque como extensão de sua própria alma. Correntes, vapor, cristais. Tudo obedecia a sua vontade. Diziam em sussurros que a bênção de Mizuryu havia se manifestado plenamente nele, como não acontecia desde os primeiros escolhidos.

Quando adentrou o salão do trono, seu pai estava sozinho, lendo um pergaminho antigo. Nem ergueu os olhos.

— Está tarde — disse, com a voz firme. — A reunião com o conselho será em breve. Vista-se apropriadamente.

— Já estou vestido para a ocasião — respondeu Takeshi.

O pai o encarou pela primeira vez, e então percebeu o que havia mudado. A expressão nos olhos do filho, a ausência de hesitação. Tentou falar algo, mas o ar no salão se tornava pesado, denso. Gotículas de água se formavam no ar, e o chão de pedra gélida começou a embaçar sob uma fina névoa azulada.

Quando a primeira lança de gelo atravessou a parede, Masato percebeu que já estava tarde demais.

O duelo foi breve, não por falta de resistência, mas porque Takeshi havia esperado toda a vida por aquele momento. Conhecia cada ponto cego do pai, cada hesitação disfarçada de orgulho. A magia dele era poderosa, mas marcada pelo tempo e pela rigidez. A de Takeshi era fluida, viva. Uma torrente incontrolável.

Num último gesto, o pai tentou se erguer, os joelhos banhados pela água que agora cobria o salão. Mas uma corrente o arrastou, e a parede se abriu com violência.

O mar estava à espera.

E então, foi o corpo dele que as ondas tomaram.

Takeshi observou em silêncio. Não se despediu dele, não ousaria. A sombra do pai deveria acompanhá-lo até sua própria morte. Nenhuma lágrima rolou de seus olhos.

Quando voltou ao trono, seus passos não vacilaram. Subiu os degraus lentamente, sem pressa, sem orgulho, apenas com a inevitabilidade de quem está cumprindo um destino.

Sentou-se.

Pela primeira vez, não como regente.

Não como símbolo.

Mas como Imperador de Kasumi.

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