A Terceira Lua Cheia Brasileira

Autor(a): Giovana Cardoso


Volume 1

Capítulo 9: Reflexos do Passado

"A insatisfação é o eco das perguntas não respondidas, um lembrete de que o conhecimento sem compreensão é apenas uma sombra da verdade."

(Caminhos da Alma, Yumi Suzuki)

 

2ª Lua Cheia do ano 1833

Lua do Declínio, dia 9

 

 

Yuri depositou os livros sobre a mesa, empilhando-os com cuidado, como se a ordem pudesse acalmar sua mente. Sentou-se com cuidado, sentindo cada músculo do corpo se retesar. Seu corpo estava pesado após a exaustiva noite anterior, mesmo assim, não havia conseguido dormir. Sua mente estava em ebulição, cheia de perguntas que exigiam respostas. Assim que o primeiro raio de sol invadiu seu quarto, decidiu sair de casa e foi direto à biblioteca.

O primeiro livro, Viagens Temporais: Além da Fronteira do Tempo, foi uma decepção. Equações complexas e teorias físicas ofereciam mais problemas do que soluções, frustrando-o ainda mais. Folheou vários volumes, cada um mais distante do que procurava, até que algo chamou sua atenção: uma teoria sugeria que a viagem no tempo seria possível através de um objeto profundamente conectado ao passado. A máscara de lobo... fazia sentido. Ele relembrou o peso da máscara em suas mãos, o estranho poder que havia emanado dela naquele dia. Mas havia uma pergunta que continuava sem resposta: por que o fluxo do tempo era tão desigual? No passado, haviam se passado três semanas, enquanto no presente apenas um dia? Ele folheou ansiosamente, procurando alguma explicação, mas as respostas eram tão vagas quanto as teorias.

E se ele estivesse alterando o passado sem perceber? As teorias eram divergentes. Algumas diziam que o futuro era imutável, enquanto outras acreditavam que o destino poderia ser moldado por qualquer ação. Só sua presença no passado já poderia ter causado uma alteração? Ele teria capacidade de notar essas mudanças, caso existissem? Uma onda de ansiedade o envolveu. Mas agora, sem a máscara, que Akemi confiscara, sua jornada parecia interrompida.

O pior, no entanto, era a magia. Algo que outrora fluía com naturalidade no mundo agora estava desaparecida. O que acontecera nesses duzentos anos para que tudo mudasse tão drasticamente? E aquela menção de Akemi à lua, como se fosse uma entidade viva? As dúvidas apenas se acumulavam.

A exaustão pressionava sua mente. Recostando-se na cadeira, fechou os olhos por um momento, tentando reunir seus pensamentos. As peças do quebra-cabeça não se encaixavam. A cada tentativa de entender a situação, parecia mais preso, como se o tempo estivesse rindo de seu desespero.

— Não posso continuar apenas lendo teorias que não levam a lugar nenhum — murmurou, massageando as têmporas. A ausência da máscara tornava tudo ainda mais frustrante, e cada página virada parecia levá-lo a um beco sem saída.

Na tentativa de clarear a mente, ele abriu um livro de história, embora a esperança de encontrar algo útil fosse mínima. Uma onda de saudade da biblioteca de sua casa o atingiu, um lugar onde ele sempre encontrava conforto. Mas, assim que folheou as páginas, um título destacou-se entre os demais: A Dança dos Anos: Uma História Não Contada.

Era um compêndio escrito por Krisha Mari, uma escriba do período do Império da Água. As páginas traziam relatos de culturas antigas e a manipulação de magia pelos clãs que precederam Yuri. Entre as histórias, uma figura emergia com força: o príncipe Shin, herdeiro de duas linhagens poderosas, Yamagawa e Ito. Seu poder lendário o havia tornado uma figura quase mitológica. Yuri sentiu um arrepio percorrer sua espinha. Era difícil conceber a existência de alguém tão poderoso.

Os registros de Krisha se tornaram uma das principais fontes de informações sobre a rebelião e os atos do príncipe Shin, com uma riqueza de detalhes tão impecável que só se poderia presumir que ela era alguém muito próxima a ele.

Krisha Mari... Ele conhecia aquele nome de suas pesquisas na juventude, mas nunca dera atenção devida. Talvez Otsu pudesse ajudar com os registros originais de Krisha. Yuri lembrou-se de sua última conversa com ela, antes de sua viagem ao passado. Como estaria sua irmã agora? Sem seu celular, ele não poderia contatá-la diretamente, mas estava em uma biblioteca. Dirigiu-se a um computador e enviou um e-mail rápido, explicando a situação e pedindo que Otsu procurasse mais sobre Krisha Mari em casa.

Enquanto caminhava para o trabalho, sentia um vazio crescente dentro de si. Algo estava errado, mas ele não sabia o quê. A cada passo, a dúvida o corroía. Estaria perseguindo fantasmas? Seria possível encontrar o que procurava, ou aquilo era apenas uma ilusão?

 

***

 

Sentada na sala de aula quase vazia, Otsu apoiava a cabeça sobre os braços cruzados. Os outros alunos já estavam saindo para o almoço, mas ela não se importava. Ultimamente, perdera o apetite, assim como o interesse por tudo ao seu redor.

“Será que me isolar foi a decisão certa? Agora pareço invisível para todos à minha volta”, pensou, observando o reflexo vago de si mesma na superfície da mesa.

— Vamos, Hana! Estou morrendo de fome! — a voz animada de uma garota ecoou da porta.

— Já vou! — respondeu Hana, sorrindo com uma alegria que Otsu não conseguia compreender.

Otsu assistiu a cena, sentindo uma pontada de inveja. Por que era tão difícil para ela encontrar felicidade em coisas tão simples? Uma lágrima solitária rolou por seu rosto. Limpou-a apressadamente e, antes que percebesse, já estava a caminho do banheiro.

Encostou-se na porta da cabine, encarando seu próprio reflexo no espelho. O rosto vermelho das lágrimas recentes parecia mais cansado do que deveria.

“Por que tudo parece tão errado?”, pensou, buscando nos próprios olhos alguma resposta que a confortasse. Mas tudo que encontrou foi o vazio. A cada passo que dava, parecia se afastar ainda mais da pessoa que queria ser.

Lavou o rosto com água fria e se trancou na cabine até o início da próxima aula.

Saber exatamente o que iria acontecer todos os dias chegava a ser mais aterrorizante do que qualquer evento desconhecido. Ela sentia como se fosse parte de uma história com um roteiro predefinido.

De volta à casa, preparou-se para o treino com o pai. A tensão entre os dois só aumentara desde a última briga.

Segurando a espada com mais força que o necessário, Otsu sentia os músculos do braço tencionarem a cada movimento. Tentava seguir os movimentos, mas seu corpo parecia desobedecer. Cada golpe ecoava vazio, mecânico, enquanto o olhar crítico de seu pai a observava de longe.

— Acha que isso é o suficiente? — a voz dele cortou o ar como uma lâmina afiada.

Ela não reagiu. Por dentro, queria gritar, queria largar a espada e fugir dali. Mas, por fora, seguiu o próximo movimento. Não importava o quanto se esforçasse, nunca seria o bastante para ele. E a verdade, que a corroía por dentro, era que ela nem queria tentar.

Mais tarde, no jantar, o silêncio dominava a mesa. A mãe parecia distante, carregando uma tristeza que Otsu não sabia como aliviar. As palavras pareciam inúteis, e Otsu temia que, ao falar, só pioraria as coisas. Quando Hiroshi finalmente falou, o peso de suas expectativas era palpável.

— Você sabe que a academia sempre esteve à espera de um verdadeiro sucessor — disse, desviando o olhar para o quintal. Ele não precisou dizer mais nada. O peso de cada palavra não dita caiu sobre ela, e Otsu apertou os punhos sob a mesa. “Porque ele tem que ser assim?”, pensou, o gosto amargo da frustração crescendo em sua garganta.

Respirou fundo, lutando para manter a calma. O silêncio entre os dois era pesado como o ar antes de uma tempestade. Ela viu o pai erguer a mão, como se fosse dizer algo —talvez até uma palavra de consolo —mas ele a deixou cair novamente. Otsu levantou-se abruptamente, a cadeira raspando no chão de madeira. — Não preciso da sua aprovação —  disse, antes que o silêncio a sufocasse.

Subiu para o quarto e percebeu que estava apertando os dentes com força.

Tomou um banho quente, na esperança de aliviar a tensão que dominava seu corpo. Ao se deitar, secou o cabelo e fez uma trança lateral. Pegou o celular na escrivaninha, sem muito interesse, e começou a fechar notificações. Então, algo chamou sua atenção. Era um e-mail de Yuri.

— Quem ainda usa e-mail hoje em dia? — murmurou com um sorriso, mas o nome do irmão já a fazia se sentir um pouco melhor.

 

***

 

Uma semana havia se passado desde aquele incidente na sala de aula, e a vida de Otsu seguia a mesma. A monotonia das aulas e os almoços solitários no refeitório pesavam, mas os intervalos entre as aulas eram seu refúgio. Era quando podia mergulhar em um mundo diferente através dos livros.

Enquanto caminhava pelos corredores, distraída com uma leitura, ouviu uma voz familiar:

— Ei, o que está lendo? — Sora, com seu sorriso animado, parou à sua frente.

— “Coração de Pedra”, de Krisha Mari.

— Não acredito! Eu adoro Krisha Mari! O que está achando? — perguntou, os olhos brilhando de empolgação.

A verdade era que Otsu havia descoberto Krisha apenas uma semana antes, quando Yuri lhe pedira ajuda com suas pesquisas. Mas rapidamente se apaixonara pela escrita dela.

— A maneira como ela descreve os personagens... parece que estou lá, vivendo com eles. Já sentiu algo assim? — comentou Otsu, a animação crescendo. Ela realmente havia sentido uma conexão inexplicável com as histórias que estava lendo. Como se cada palavra tivesse sido escrita especialmente para ela.

Sora assentiu, empolgada.

— Sim! Ela é incrível!

A conversa fluiu com naturalidade, como se fossem amigas há anos. Pela primeira vez em muito tempo, Otsu sentiu-se à vontade com outra pessoa. Sora era cativante, com sua personalidade extrovertida e sorriso contagiante.

Naquele dia, ao voltar para casa, havia algo diferente em seu peito. Talvez seu destino estivesse traçado, mas momentos como aquele faziam tudo parecer um pouco menos sufocante.



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