A Terceira Lua Cheia Brasileira

Autor(a): Giovana Cardoso


Volume 1

Capítulo 8: O Espião

“Toda escolha tem um custo, mesmo aquelas que parecem inofensivas. O sábio calcula o preço, mas não hesita em pagá-lo se o resultado for maior do que o sacrifício."

(Entre o Céu e o Abismo, Laena Marithar)

 

4ª Lua Cheia do ano 1647

Lua do Retrocesso, dia 9

 

 

Às vezes, a vida nos atira em marés imprevisíveis, como ondas incontroláveis que se lançam contra a costa. Aceitar que certas forças estão além de nosso controle não é fraqueza, mas uma forma de encarar a realidade com dignidade. Nesses momentos, mesmo sem entender o porquê dos acontecimentos, é possível encontrar significado nas experiências que se desdobram diante de nós.

Houve uma época em que tudo na vida de Akemi parecia ruir. Abandonada pela própria família e forçada a lutar em um país devastado pela guerra, essas cicatrizes a moldaram, tornando-a mais forte. Sem essas dificuldades, ela jamais teria se tornado quem era agora. Ao decidir restaurar a dinastia Ito, ela aceitou as consequências irreversíveis de suas escolhas. Essa era sua chance final de redenção.

Naquela noite, em meio ao caos da batalha, Akemi se movia com um proposito claro. Cada golpe que desferia não era apenas uma luta por sobrevivência, mas um esforço para assegurar um futuro de paz para os que sofreram com a guerra. As lâminas de suas espadas eram rápidas, precisas, fluindo como uma parte de seu corpo.

A luz da lua refletia em sua armadura, enquanto os gritos ecoavam ao redor, misturando-se ao som das espadas se chocando. O ar estava impregnado com o cheiro de sangue e suor. Diante dela, um adversário habilidoso avançava com determinação. Akemi o estudou por um instante antes de avançar com destreza, girando nas pontas dos pés e saltando sobre ele, desequilibrando-o com o peso do próprio corpo. Com um golpe rápido, cortou sua garganta. O sangue respingou enquanto ela balançava a espada, limpando-a.

Foi então que ela viu, no meio do caos, um rosto familiar. Um vislumbre fugaz, mas suficiente para fazer seu coração disparar. Ele estava ali, o homem que assombrava seus sonhos há semanas. Em um instante, sumiu entre as sombras. Akemi hesitou, mas não podia perder o foco. A batalha ainda não havia acabado.

Quando a poeira finalmente assentou, Shin se aproximou, sua expressão séria.

— General — chamou, com um olhar avaliativo. Desde que Akemi passara a servi-lo, Shin parecia testá-la a cada passo. E ela, até então, nunca falhara.

— Principe Shin. — Akemi acenou com a cabeça.

— Preciso que vá até o acampamento e interrogue um suspeito. — Ele entregou uma máscara, e Akemi franziu o cenho, confusa. — Ele foi capturado durante a batalha, e estava com isso.

Akemi entrou na tenda com passos firmes, a máscara em mãos como uma sentença pendente sobre o destino de alguém. O choque a atingiu como um golpe no estômago quando seus olhos encontraram o prisioneiro amarrado no chão à sua frente.

— É você... — Ela murmurou. A confirmação veio como uma onda gelada, revolvendo memórias enterradas nas profundezas da sua mente. Ele era aquele que inconscientemente vinha procurando.

 

***

 

Yuri sentia-se febril e confuso. O lugar onde estava parecia uma tenda, iluminada apenas pela luz tênue da lua que se infiltrava pelas dobras do tecido. Tentou se mover, mas suas mãos e pés estavam firmemente amarrados. Ao seu redor, sombras se moviam, vozes abafadas indicavam que ele não estava sozinho.

Então, a tenda foi aberta bruscamente. A figura que entrou irradiava autoridade. Seus cabelos prateados caíam desordenadamente pelos ombros, mas sua postura era imponente. Yuri a reconheceu imediatamente. A última vez que a viu, estava coberta de lixo. Ela olhou para ele como se fosse um criminoso foragido, mas havia um indício de curiosidade em seus olhos. Yuri sentiu seu coração acelerar e ficou envergonhado. Ela estava parada na sua frente, e Yuri podia jurar que disse algo quando seus olhos encontraram seu rosto, mas foi baixo demais para que ele conseguisse entender.

— Quem é você? — A mão dela repousava no cabo da espada, a voz cortante exigindo uma resposta rápida.

Yuri tentou arrumar a postura da melhor forma possível. Engoliu em seco, sentindo a rigidez das amarras em seus pulsos. Sua mente percorria suas lembranças como um cego tateando na escuridão.

— Talvez prefira começar explicando onde conseguiu esta máscara? — murmurou, a voz baixa, mas ameaçadora.

Os olhos de Yuri se fixaram na máscara que ela segurava. Ele reconheceu o objeto, a máscara de lobo que, até pouco tempo, girava em suas mãos enquanto estava em seu apartamento. Um arrepio percorreu seu corpo – era essa máscara a ponte entre os dois mundos.

— Fale! — A impaciência dela era palpável.

— Meu nome é Yuri Koyama. Eu... não sou daqui. — As palavras saíram com esforço, soando estranhas até para ele. — E essa máscara é uma herança de família.

Akemi arqueou uma sobrancelha, seus olhos percorrendo todo o corpo de Yuri.

— Você não parece ser do clã Yamagawa.

— Ele não é — respondeu uma voz vinda da entrada. Um homem jovem, de aparência descontraída, entrou na tenda. Sua presença exalava uma confiança natural. Ele parecia ter aproximadamente a idade de Yuri, a pele levemente queimada pelo sol e o cabelo longo comum daquela época.

— Príncipe Shin! — Akemi recuou, surpreendida. Yuri, por sua vez, mal acreditava. Ele sabia quem Shin era – o último sobrevivente do clã massacrado no golpe de estado. O herói de sua nação, embora Yuri sempre o imaginasse mais velho... ou mais alto.

— Koyama, você disse? Nunca ouvi falar neste clã — “Droga, deveria ter prestado mais atenção antes de dizer meu nome. É claro que ele nunca ouviu falar, o clã Koyama não existia ainda nesta época.” Shin se aproximou, sua curiosidade aguçada. — Ouvi dizer que você domina um estilo de luta bem singular. Uma técnica similar ao braço das sombras, mas sem uso da magia. Além disso, os Lobos Divinos investigaram os guerreiros com quem lutou. Embora os tenha ferido gravemente, não atingiu nenhum ponto vital. Todos eles tinham intenção de matá-lo, mesmo desarmado. Por que os poupou?

Yuri piscou, atordoado.

— Digamos que matar vai contra os meus princípios — respondeu sem nem mesmo olhar para o príncipe. Talvez tenha soado um pouco rude, mas essa era a verdade. Ele não seria capaz de tirar a vida de outra pessoa, mesmo em uma situação que outros julgassem necessária. Sentia que isso destruiria sua própria essência. Quando Yuri ergueu os olhos, viu que Shin sorria.

— General Akemi, desamarre-o. Parece que nosso convidado tem uma história interessante para contar.

 

***

 

A tenda agora estava iluminada por lamparinas. Yuri mal podia acreditar que estava sentado entre um príncipe lendário e uma general.

Akemi...

Ele furtivamente tentava captar mais do rosto dela, espiando pelo canto do olho, enquanto sua mente corria em busca de qualquer informação que pudesse ter estudado sobre ela. Nada. Nenhum fragmento de memória surgia, embora ainda sentisse aquela sensação de conhece-la de algum lugar. Havia algo no modo como ela se comportava – uma irritação contida, mas sempre polida, quase gentil. “Será que ela se lembra de mim?’

Quanto a Shin, Yuri ainda não sabia o que esperar. Mas o alívio de não ser tratado como inimigo era imenso. Por enquanto, sua vida estava a salvo. Mesmo assim, ele sabia que não podia baixar a guarda – as leis daquele tempo eram bastante controversas.

Mas conseguia fazer isso perfeitamente bem enquanto comia o jantar: pequenos rolinhos recheados com vegetais e carne temperados com especiarias, fritos até ficarem crocantes por fora e macios por dentro, surpreendentemente saborosos.

Shin, rindo levemente, passou um braço sobre os ombros de Yuri, mas não de forma amigável.

— Não se engane, Yuri. Não sou seu amigo. Apenas achei que você falaria melhor de barriga cheia. — A risada sumiu, e sua expressão voltou à seriedade. — Você estava na vila Tsuki há três semanas. Quem é você de verdade? Você diz ser de um clã que não existe, domina uma técnica que apenas os membros do clã Yamagawa conhecem, carrega uma máscara dos Lobos Divinos, aparece nos lugares em que decidimos agir e, apesar de lutar contra nossos inimigos, evita cuidadosamente os pontos vitais. Eu vou dizer o que acho que você é: um espião.

Yuri congelou com a colher a meio caminho da boca. “Três semanas? Eu só estive no passado uma vez antes disso, e foi ontem. E ainda estou sendo acusado de ser espião?” Agora seria uma boa hora de voltar para a sua época, mas Yuri não tinha ideia de como fazer isso, então precisava pensar em outra solução. E bem rápido.

O silêncio pesou na tenda enquanto Shin aguardava a resposta. Yuri sentia a necessidade de esclarecer, de se desvencilhar das acusações que pairavam sobre ele como uma névoa escura.

— Não sou um espião — começou mantendo a voz firme apesar da tensão. — Na verdade, sou médico. Eu só lutei para me defender, não por escolha... por necessidade.

Shin e Akemi trocaram olhares desconfiados. Yuri respirou devagar, escolhendo as palavras com calma.

— Estava apenas de passagem quando me vi no meio dessa batalha. Não planejei estar aqui... na verdade... nem sei muito bem como acabei nesse lugar. Sou de outro país, por isso meu nome não é conhecido por aqui. E a máscara que carrego pertenceu a um antepassado de minha família, alguém que, aparentemente, teve laços com o clã Yamagawa há muito tempo. Mas eu não tenho nenhuma ligação com eles. — Bem, isso não era cem por cento mentira.

Observou a expressão de Shin, procurando um indício de compreensão ou, quem sabe, dúvida. Mas ele apenas o olhava como se tentasse enxergar sua alma.

— Você é um médico que sabe lutar? Isso não parece contraditório?

— Às vezes, a vida nos força a ser contraditórios — Yuri respondeu com um sorriso, apesar de tentar manter a seriedade.

Yuri estava ficando nervoso, sempre preferiu evitar esse tipo de conversa. Só queria acabar logo com tudo isso. Shin trocou um olhar com Akemi e, depois de uma pausa, finalmente disse:

— Você é realmente intrigante. Não sei se acredito em sua história, mas algo me diz que devo confiar em você. O que acha, Akemi?

— A história é incomum, mas não vejo razão para duvidar completamente dele, por enquanto.

Yuri sentiu um alívio repentino em seus ombros, mas sabia que ainda estava em um terreno instável. Essa verdade distorcida que havia contado podia não sobreviver a uma investigação mais profunda. Portanto, precisava procurar uma forma de retornar ao seu tempo o mais rápido que pudesse. Shin parecia astuto e atento, não tinha dúvidas de que ainda estava desconfiado.

— Yuri Koyama, você permanecerá conosco por enquanto. Ainda tenho algumas perguntas que precisam de respostas. — Ele pronunciou o sobrenome com ênfase, logo se ergueu e saiu da tenda sem qualquer cerimônia, deixando Yuri sozinho com Akemi.

O silêncio que recaiu na tenda era ainda pior que as perguntas do príncipe. Akemi se colocou de pé, claramente incomodada com a situação. Yuri respirou fundo, tentando manter a calma, apesar da confusão que dominava sua mente.

— Agradeço por ter intercedido por mim — disse Yuri, baixando a cabeça enquanto sentia seu rosto esquentar. “Por que ela me faz sentir tão envergonhado?” — Eu realmente não sou um espião, eu só... — Parou quando viu sua expressão séria se suavizar. Ela redistribuiu o peso entre seus pés como se ponderasse partir ou permanecer ali.

— O príncipe é cauteloso. Ele tem suas razões para suspeitar. — Akemi falou suavemente. — Você não é daqui isso é evidente, mas ele decidiu confiar em você. Não compreendo muito bem, mas ele estava aguardando por você. — Agora foi Yuri quem se levantou intrigado. — Shin precisa de algo crucial para retomar o trono e acredita que você, de alguma forma, tem a chave para isso. Ela instruiu que ele deveria confiar no viajante estranho carregando um objeto e um estilo de luta que ele conhece.

Yuri estava atordoado. “Eu, com a chave para um evento tão significativo?” Parecia uma responsabilidade esmagadora. Mas tudo que conseguiu perguntar foi:

— Ela?

— A lua. — Akemi pronunciou as palavras como se fossem a resposta para todos os seus questionamentos, antes de partir, abrindo espaço para o vento frio da noite.

Quando Yuri se sentou, sentiu a maciez do colchão da sua cama. Estava de volta ao seu apartamento. Deixou seu corpo cair para trás, deitando na cama sem se importar com a sujeira que o envolvia, e encarou o teto do quarto enquanto relembrava os acontecimentos daquela noite.

Uma sensação tomou conta dele, uma sensação que estava adormecida por muito tempo.

Sentia-se vivo.

 

 

Notas: 

Lobos Divinos: Uma divisão especializada em estratégias de guerra, técnicas de combate e manipulação de magia, reunindo a elite do clã Yamagawa. Eles participam ativamente de combates e missões arriscadas em terras inimigas. Antes da queda da dinastia Ito, eram a maior força militar a serviço do império. Atualmente, representam uma significativa resistência ao imperador vigente.



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