Volume 1
Capítulo 29: Retorno
" Mesmo a lâmina mais afiada hesita quando é o coração que precisa ser ferido."
(Entre a Lâmina e o Coração, Kenta Yukimura)
9ª Lua Cheia do ano 1833
Lua do Chama, dia 2
Yuri piscou com dificuldade. As pálpebras pesadas pareciam feitas de chumbo. Quando finalmente conseguiu abrir os olhos, tudo girava, e o cheiro de desinfetante misturado com antisséptico fez seu estômago se revirar. Um bip constante preenchia o silêncio ao redor, abafado apenas pela respiração suave de alguém por perto.
A primeira coisa que viu foi a janela coberta por uma cortina bege, a luz do dia filtrando-se em listras pálidas. Depois, percebeu a silhueta de alguém encolhida na poltrona ao lado da cama. Sua mãe, Akiko, dormia com a cabeça caída para o lado, o rosto visivelmente cansado.
"Estou de volta?", pensou, mas a pergunta parecia absurda demais para ser dita em voz alta. O coração começou a bater com força, e uma náusea repentina tomou conta do corpo.
Era o mesmo hospital. O mesmo quarto em que estivera tantas vezes. O mesmo em que Misaki morrera.
Yuri tentou se sentar, mas um puxão no braço, o soro, o fez recostar de novo. Gemeu baixo, e Akiko despertou imediatamente, os olhos se abrindo num susto.
— Yuri...! — A voz dela se quebrou no meio do nome. — Meu filho... graças a Deus... você acordou...
Ela se aproximou rápido, segurando sua mão entre as dela, quentes e trêmulas. Lágrimas começaram a escorrer pelo rosto dela, e Yuri não sabia o que dizer.
— Você ficou desacordado por dias. Foram quase duas semanas... — ela disse com a voz embargada. — Disseram que encontraram você num beco, ferido, inconsciente... foi horrível. Você foi levado para o hospital em Itakawa, mas o Hiroshi pediu a transferência pra cá...
Yuri virou o rosto devagar.
— Meu pai? — A voz saiu fraca, quase um sussurro. — Ele está aqui?
Akiko hesitou. Por um momento, tudo o que se ouviu foi o som do monitor cardíaco.
— Não... Ele se recusou a vir. Disse que... que não sabia mais quem você era.
Yuri apenas fechou os olhos.
A porta se abriu com um baque e, antes que pudesse processar, algo pequeno e quente se jogou em cima dele.
— Yuriiii! — Otsu chorava, soluçando alto contra o peito do irmão. — Pensei que... pensei que nunca mais ia poder conversar com você! Achei que tinha perdido você também...
Ela estava diferente. Mais alta, o rosto mais maduro, mas ainda com os olhos da menina que ele lembrava. Yuri tentou sorrir, mas o coração parecia esmagado.
Depois de algum tempo, Akiko limpou os olhos e segurou a mão de Yuri com firmeza.
— Quando sair daqui, volte pra casa, Yuri. Sua antiga casa... ela ainda é sua.
Ele balançou a cabeça, firme.
— Não. Eu... não posso voltar. Jamais.
Akiko o olhou por um instante, triste, mas não insistiu. Otsu também não disse nada. Ela apenas segurou a mão dele mais forte.
Dias depois, com a alta médica assinada, Yuri voltou para Itakawa. Para seu pequeno apartamento alugado, onde o silêncio parecia ainda mais profundo do que antes.
Todas as noites, antes de dormir, fechava os olhos e revia seus rostos: Akemi, Shin, Kiku... Hideo.
Estariam vivos? Teriam escapado?
Mas a maior pergunta era: ele ainda conseguiria voltar?
Naquela mesma tarde em que retornou, Otsu foi visitá-lo em Itakawa.
Chegou com sua habitual energia juvenil, carregando uma sacola com doces, revistas, e uma expressão determinada de quem ia colocar o mundo do irmão em ordem. Não demorou nem cinco minutos até que encontrasse o intruso de quatro patas enrolado no canto da sala.
— Aaah, por que você nunca me contou que tem um gato?! — Seus olhos brilharam, abaixando-se em direção ao felino, que a observava com a tranquilidade de um velho sábio.
Yuri suspirou, cruzando os braços.
— Eu não tenho — disse, com o tom seco de quem já estava cansado daquela conversa. — Esse gato não é meu.
— Mas ele parece gostar de você! — Otsu estendeu a mão e o gato se aproximou, roçando a cabeça nos dedos dela com um miado satisfeito. — Que gracinha! Precisamos dar um nome a ele!
— Nem pensar.
— Que tal… Sr. Peludo?
Yuri revirou os olhos com tanta força que quase conseguiu ver a própria nuca.
— Viu? — Ela disse, como se tivesse ganhado a discussão. — Ele gostou.
— Já disse que esse gato não é meu! E esse nome é ridículo!
— Tudo bem, então ele pode ser meu. — respondeu ela, com um sorriso inocente e um carinho final no topo da cabeça do gato.
Depois que Otsu foi embora, a casa voltou ao seu estado habitual de silêncio. O vento batia fraco na janela. Havia restos de luz filtrando pelas cortinas, pintando a sala com tons alaranjados.
Yuri sentou-se no sofá, cansado demais para qualquer coisa. Foi então que percebeu: ele ainda estava ali.
O gato. O tal "Sr. Peludo".
Tinha se instalado no canto da poltrona, dormindo enrolado como uma almofada viva. Quando notou seu olhar, se esticou num bocejo exagerado, caminhou até ele e se enroscou aos seus pés. Sem cerimônia.
Por um instante, Yuri apenas o observou. A respiração calma. O calor do corpo. Aquilo era real. Tangível.
E mesmo com tudo tão incerto... pela primeira vez desde que voltou, ele sentiu uma ponta de... calma. Sorriu, quase sem perceber.
— Sr. Peludo...
Disse o nome como quem experimenta um gosto estranho, mas familiar. E o gato ronronou, como se desse razão a ele.
Talvez ele não fosse seu.
Talvez nada mais fosse.
Mas ele estava ali.
Dias depois, com os curativos trocados e o corpo mais firme, o silêncio do apartamento começava a se tornar pesado demais. Então Yuri decidiu que era hora de voltar ao trabalho.
O Kokoro Café não parecia ter mudado nada. Os sinos ainda tilintavam na entrada, o cheiro de café fresco invadia o ar, e a vitrine exibia os doces caprichados de Keid como pequenas obras de arte. Por um momento, ele se perguntou se tudo aquilo tinha mesmo continuado existindo enquanto estava no passado.
Quando entrou, Diro estava atrás do balcão, organizando xícaras, como sempre fazia. Ao vê-lo na porta, largou tudo com os olhos arregalados.
— Yuri?!
— Oi, chefe — tentou sorrir, sem muito jeito.
Ele saiu de trás do balcão em dois passos e puxou Yuri para um abraço forte demais.
— Caramba, garoto! Aonde você se enfiou? Achei que tivesse ido embora de vez!
— Eu... precisei de um tempo. Aconteceram algumas coisas.
Keid apareceu da cozinha, as mãos ainda cobertas de farinha.
— Yuri?! Ah, cara! — ele se aproximou também, batendo nas costas de Yuri com força. — Pensei que você tivesse... sei lá. Desistido da gente.
— Quase. — confessou Yuri.
Diro o soltou e olhou em seus olhos.
— Você tá com uma cara péssima.
— Obrigado pela sinceridade.
— Senta aí, vou te fazer um café. Daquele forte que você gosta.
Enquanto ele preparava, Keid se sentou ao lado de Yuri, pegando um pãozinho ainda quente de uma cesta.
— Toma. Come isso. Tá fresco.
Yuri aceitou, em silêncio, e comeu devagar. O sabor era bom e fez algo dentro dele se aquecer.
— A gente ficou preocupado, sabe? — continuou Keid. — A polícia veio aqui fazer perguntas. Disseram que você tinha sido atacado.
— É o que estão dizendo — murmurou Yuri, encarando o café que Diro colocou na sua frente.
— E não é? — ele perguntou com cuidado.
Yuri desviou o olhar. Por um instante, o tridente do imperador voltou à sua mente. O som do metal rasgando a carne. O grito preso na garganta. Akemi...
— Mais ou menos — respondeu, evasivo. — O que aconteceu é difícil de explicar.
— Só queremos saber se você está bem. — disse Diro. — O resto, você pode contar quando quiser. Ou não contar nunca. Não importa.
— Obrigado.
— Mas ó... se for ficar mais tempo sumido, manda uma mensagem, beleza?
— Pode deixar.
Ficaram em silêncio por alguns segundos. Yuri tomava o café e Keid beliscava outro pãozinho, como se não quisesse estragar o momento.
— E o gato? — perguntou Diro, de repente.
— Como?
— Aquele gato que ficou rondando o prédio. Sua irmã disse que você adotou um.
Revirei os olhos.
— Eu não adotei. Ele só... apareceu.
— E ficou. — completou Keid, com um sorriso travesso. — Parece que te escolheu.
Yuri suspirou.
— Ela quer chamá-lo de “Sr. Peludo”.
— Adorei. — disse Diro, rindo.
— Detesto.
— Não importa. O nome já pegou. — Diro deu de ombros. — Agora ele é mascote do Kokoro também.
— Não me responsabilizo por isso.
Apesar da reclamação, Yuri não conseguiu evitar o leve sorriso que escapou. Quase conseguia se sentir em casa de novo.
Mas não completamente.
Mais tarde, quando chegou ao apartamento, Sr. Peludo o esperava na janela, como sempre. Se enroscou nas suas pernas e depois pulou no sofá como se fosse dele. Yuri se sentou ao lado dele, acariciando suas orelhas devagar.
Pegou o celular no bolso da calça. Queria ver de novo o rosto dela. A única foto que tinha... mas ela não estava mais lá.
Revirou todas as pastas, o histórico de arquivos, até o backup. Nada. Como se o tempo tivesse decidido apagar qualquer prova de que Akemi um dia havia existido neste mundo.
Seu coração afundou.
— Sr. Peludo... eu tô com medo de esquecer o rosto dela — murmurou, como se o gato pudesse entender.
Ele ronronou, se aninhando ao seu lado.
“Será que tudo o que vivi lá... foi mesmo real?”
Yuri fechou os olhos, tentando segurar a lembrança viva em sua mente.
Ela sorrindo.
Ela lutando.
Ela dizendo seu nome.
E aquele último olhar antes de...
Ele ainda não sabia como, mas tinha certeza:
Precisava voltar.
Mas antes disso, tinha uma ligação importante para fazer. Pegou o celular novamente e discou o número que conhecia tão bem. O telefone tocou algumas vezes antes de ser atendido.
— Alô? — A voz do pai soou do outro lado da linha.
Yuri respirou fundo e reuniu coragem.
— Pai, sou eu, Yuri. Eu preciso falar com você sobre algo importante.
Do outro lado da linha, silêncio. Por um segundo, Yuri chegou a pensar que ele desligaria na cara dele. Mas então ele finalmente respondeu, seco como sempre:
— Se quiser conversar, venha até aqui.
— Eu estou indo. — respondeu Yuri, sem hesitar.
***
A viagem de trem parecia mais longa do que da última vez. Até mesmo a cidade parecia menor. Talvez porque ele tivesse mudado ou talvez por ter passado tanto tempo distante.
Agora, o mesmo trem que o levara para longe, o trazia de volta.
Ao desembarcar em Akimitsu, sentia como se uma versão antiga dele estivesse o esperando ali, parada na plataforma. A cidade era a mesma, mas eu não era. Cada esquina trazia uma memória. Da infância, da juventude, dos dias com Misaki. Era como voltar para casa e, ao mesmo tempo, como invadir a vida de outra pessoa.
Antes de ir até a casa onde cresceu, antes de enfrentar o pai... havia algo que ele precisava fazer.
Nas horas seguintes, passou sozinho por todos os lugares que carregavam lembranças boas. O parquinho onde Otsu aprendeu a andar de bicicleta, o templo onde ele e Misaki deixavam bilhetes em pedaços de papel colorido, a velha loja onde compravam doces após a escola. Cada passo era um mergulho no passado, um confronto direto com a pessoa que ele foi.
E enfim, foi até o cemitério.
Yuri ficou em silêncio diante do túmulo de Misaki por muito tempo, como se nenhuma palavra pudesse alcançar a ausência que ela deixou. O vento soprava frio, mas não tanto quanto a primeira vez em que soube que ela se foi. Agora... a dor era diferente. Não menor, mas ainda estava ali em algum lugar dentro dele.
— Por muito tempo pensei que deveria carregar suas lembranças comigo para sempre... — começou, quase num sussurro. — Mas já não sou a mesma pessoa que você conheceu. Acho que... se me visse agora, nem me reconheceria.
Sentou-se na grama, observando as flores secas deixadas por alguém que veio antes dele. Talvez a mãe dela.
— Você sempre sorria, mesmo quando as coisas estavam difíceis. Fazia até os meus defeitos parecerem qualidades.
Fechou os olhos, sentindo o vento acariciar o rosto.
— Eu te amei tanto... E ainda amo. Mas agora entendo que nossos sentimentos também mudam. Lentamente, com o tempo. E tá tudo bem.
Pausou, deixando que o silêncio respondesse por ele.
— Aquela dor que senti... nunca foi embora. Só... ficou mais leve. Como uma ferida que cicatriza, mas que ainda dói se eu apertar.
Yuri enxugou uma lágrima que escorreu sem pedir permissão. E então se levantou.
— Obrigado, Misaki.
Deu um passo para trás, começando a se afastar devagar.
— Adeus.
***
Yuri permaneci parado diante do portão de sua antiga casa, observando o jardim que o jardineiro sempre cuidou com tanto carinho. Era a parte que sua mãe mais gostava na casa. As cortinas da janela estavam fechadas. Não sabia se ela estava lá. Também não importava naquele momento.
O portão da antiga academia da família Koyama rangeu ao se abrir. O lugar parecia menor do que Yuri se lembrava, mas ainda conservava a mesma sensação de ser sagrado, como se o tempo ali se movesse mais devagar.
As paredes de madeira, o cheiro da madeira antiga e do tatame... tudo estava igual. A brisa balançava levemente os galhos do velho carvalho no pátio central. Aquele era o lar de seu passado, das lembranças com Otsu e dos treinos intermináveis sob o olhar severo do pai.
O som seco dos passos ecoando no corredor o fez parar. Ele sabia de quem se tratava antes mesmo de olhar.
— Então você voltou — disse Hiroshi com a mesma voz firme de sempre, sem surpresa alguma no tom. Vestia o uniforme tradicional da academia e segurava um bastão de treino nas costas. Seus olhos avaliavam Yuri como quem observa um oponente, e não um filho.
— Não para ficar — respondeu Yuri com calma. — Preciso de algo que deixei aqui.
O pai cruzou os braços, observando-o em silêncio. O peso daquela ausência de palavras era mais incômodo que qualquer grito.
— Foi você quem pediu minha transferência pro hospital de Akimitsu, não foi?
Hiroshi não respondeu imediatamente. Por fim, disse apenas:
— Você ainda é um Koyama.
A frase caiu como uma sentença. Era tudo o que Hiroshi tinha para oferecer: não um pedido de desculpas, não um “estou feliz que você está vivo”. Apenas um lembrete do nome que carregava.
— O que aconteceu comigo... mudou tudo — Yuri continuou, tentando manter o tom firme. — Eu vi coisas que ninguém acreditaria. E por muito tempo, neguei tudo que aprendi aqui. A técnica da família, o dojo... você.
O olhar de Hiroshi se manteve duro, inquebrável.
— E agora?
— Agora eu entendo. A gente salva pessoas de várias formas. Às vezes com um bisturi. Às vezes com uma espada.
Por um momento, algo nos olhos de Hiroshi pareceu vacilar. Um segundo apenas. Mas foi o suficiente.
— A espada da família está onde sempre esteve — ele disse, virando as costas. — Se for usá-la, que seja com dignidade. Mas fará isso sozinho.
Yuri observou o pai sumir pelos corredores da casa e então seguiu até o velho depósito. Lá, envolta num pano de linho vermelho, estava a espada ancestral dos Koyama. Quando segurou o cabo da espada, sentiu o peso do tempo. Do sangue. Do dever.
Ergueu a lâmina com as duas mãos. Ela refletia a luz pálida do fim da tarde. E, naquele instante, não se sentiu mais em conflito com quem era.
A partir dali, começou a treinar. Sozinho. Dia após dia, sob o vento frio e o som das folhas ao redor. Cada movimento era uma conversa silenciosa com o passado. Cada golpe era uma pergunta sobre quem ele queria se tornar.
Não retornou à antiga casa. Em vez disso, alugou um quarto simples em uma hospedaria próxima à estação. Precisava de distância. De silêncio. E de tempo.
Você já se perguntou o que faz cada pessoa ser única? O que faz você ser você mesmo?
Yuri finalmente começava a entender.
Alguns diriam que é o nome. Ou as escolhas. Ou as memórias.
Mas, para ele, agora...
Era aquilo que você decide carregar, e aquilo que decide deixar para trás.
Apoie a Novel Mania
Chega de anúncios irritantes, agora a Novel Mania será mantida exclusivamente pelos leitores, ou seja, sem anúncios ou assinaturas pagas. Para continuarmos online e sem interrupções, precisamos do seu apoio! Sua contribuição nos ajuda a manter a qualidade e incentivar a equipe a continuar trazendos mais conteúdos.
Novas traduções
Novels originais
Experiência sem anúncios