Volume 1
Capítulo 28: Ecos no silêncio da neve
"Os elementos respondem ao desejo e ao medo, mas é o amor que dá forma a sua direção. Amar alguém é tomar para si a responsabilidade de um futuro em constante mutação."
(Promessas do Vento, Naori Tsukami)
9ª Lua do ano 1647
Lua do Rubi, dia 16
O silêncio após o massacre era mais ensurdecedor que os gritos da batalha.
Fumaça subia de alguns pontos, misturando-se à névoa fria que envolvia as montanhas como um véu. Corpos jaziam em posições grotescas, congelando onde haviam caído. Parte dos rebeldes ainda respirava, mas mal se mantinha de pé.
Yuri carregava o peso de tudo nos ombros, e ainda assim, caminhava. Entre os feridos, entre os que haviam perdido amigos, irmãos, pedaços de si. Ajoelhava-se, oferecia ajuda, estancava sangramentos. Coberto de lama e sangue seco, sentia-se vazio por dentro, mas por fora, precisava parecer inteiro.
No centro do acampamento improvisado, Kiku mantinha o rosto enterrado nas mãos. As ordens que dera para salvar Shin e os outros haviam sido rápidas, certeiras. Mas agora, no silêncio, era só uma garota que perdera o pai, o líder de seu povo, e o irmão mais novo de uma só vez.
Do outro lado, Shin andava em círculos. Os punhos fechados. O corpo tenso. A raiva que antes queimava agora parecia ter virado cinza, mas ainda fumegava por dentro.
Yuri caminhou até ele.
Shin parou ao sentir a presença. Mas não olhou.
— Sei que talvez me odeie agora — manifestou Yuri. — E... talvez com razão.
Shin bufou, virando o rosto com desprezo.
— Você me socou — disse, por fim. A voz áspera, como pedra sendo arrastada.
— E você quase me matou antes disso — Yuri devolveu, sem tom de provocação. Era só um fato.
Silêncio.
— Eu não fiz aquilo por raiva — continuou Yuri. — Fiz porque você precisava acordar. E porque eu... também precisava mudar.
Shin o encarou, enfim. Havia algo de novo no olhar dele. Ainda não era perdão, mas já não era puro ódio.
— E agora? — perguntou. — Vai dizer o que?
— Você é o único que pode liderar o que restou disso tudo. Eu não vim implorar seu perdão, estou disposto a arriscar tudo que tenho. Mas não posso fazer isso sozinho. Essas pessoas precisam de um líder de verdade.
Shin virou-se de súbito, os olhos faiscando.
— Não me faça confiar em você… — rosnou. — Se for pra me decepcionar de novo.
— Não vou. Porque agora eu sei quem eu sou. E o que estou fazendo aqui.
Shin hesitou. O silêncio entre eles parecia prestes a rachar. Então, murmurou:
— Eles ainda esperam algo de mim. Mas eu não sou meu pai...
— E ninguém quer que você seja — Yuri cortou. — Mas se for preciso, eu serei sua espada. Até que você reencontre sua voz. Até que você possa gritar para o mundo em nome deles. Só não podemos parar agora. Não depois de tudo.
O silêncio que se seguiu ainda era espesso. Mas não era mais o silêncio da guerra.
A noite chegou com uma tranquilidade cruel. As fogueiras foram acesas, mas a luz delas parecia pálida comparada ao frio que dominava Amateru. Akemi o encontrou perto da encosta, afastado do acampamento. Ele observava as estrelas, como se esperasse respostas.
— Está fugindo? — ela perguntou, sentando-se ao seu lado.
Yuri sorriu, mas não a encarou.
A neve caía suave ao redor, como se o tempo tivesse parado para permitir aquele instante.
— Sabe... — começou Akemi, com um tom suave — É Haruka quem está apaixonada por Shin. Não eu.
Yuri virou o rosto para ela, surpreso com o assunto que ela havia escolhido tão fora de hora. Estaria tentando distraí-lo? Akemi riu de leve.
— Você achou que era eu, não é? Não... Haruka o admira desde criança. Eu, por outro lado...
Ela hesitou, a respiração saindo em vapor.
— Eu sinto necessidade de estar perto de você. Tem algo em você... algo que me acalma. Você vê coisas que ninguém mais vê. Se importa com detalhes que os outros ignoram.
Yuri engoliu em seco. Seu peito apertou, a respiração falhou.
— Sei que você ainda pensa em outra pessoa — ela murmurou, a voz trêmula. — Mesmo assim… eu precisava dizer. Porque, por mais que doa, me apaixonei por você.
— Sim… eu penso em alguém, sim — respondeu Yuri olhando para o chão. — Mas ela ficou no passado. O nome dela era Misaki.
E então, as lembranças vieram como uma enxurrada.
Misaki sorrindo no primeiro dia de aula.
Misaki estudando com ele noites inteiras.
Misaki escondendo as lágrimas.
Misaki morta.
Seu corpo tremeu. O peito doía tanto que ele mal conseguia respirar.
— Eu... — tentou, mas a voz falhou. — Eu a conhecia desde criança. Ela foi minha primeira amiga, meu primeiro amor... minha única certeza. Quando decidi estudar medicina, ela me acompanhou. E eu fui tão egoísta... nunca perguntei se ela realmente queria aquilo. Fiquei cego com minha própria felicidade. E ela... ela estava morrendo por dentro.
Ele socou o chão. Os nós dos dedos se abriram, sangrando.
— Eu devia ter visto. Devia ter feito algo.
Akemi permaneceu ao lado dele, em silêncio. Como se entendesse que aquele momento era só dele.
— Quando ela morreu... foi como se tudo tivesse morrido comigo. — continuou Yuri, com a voz quebrada. — Não consegui voltar ao hospital. Não consegui voltar pra casa. Não consegui nem mais ser eu.
— Mas mesmo assim — Akemi murmurou — você continua tentando salvar os outros. Mesmo quando ninguém mais acredita. Mesmo quando você mesmo não acredita.
Yuri a olhou pela primeira vez. Havia lágrimas nos olhos dela, mas também firmeza. Ela não queria piedade. Apenas que ele a visse. Que ele soubesse que ela estava ali por ele.
— Misaki foi uma parte da minha vida que ainda me assombra… só que você, Akemi, me fez lembrar que o coração pode bater de novo. Mesmo depois de ser arrancado do peito. Eu só… ainda não sei se estou pronto para oferecer o que você merece — ele disse, e aquilo, naquele instante, era tudo que conseguia dar.
Akemi estendeu a mão, tocando de leve a dele. Quando falou, sua voz era só um sussurro.
— Então eu espero. Eu não vim aqui pra te pedir nada. Só queria que soubesse…
Ele desviou o olhar, sentindo o peso das palavras dela. E ficaram ali, em silêncio, juntos sob o céu de neve, onde o passado começava, enfim, a se transformar em lembrança. Naquele momento, o futuro não pareceu um vazio absoluto.
Na manhã seguinte, o ataque veio como um trovão abafado.
Ecos estouraram entre as rochas quando as sentinelas gritaram por reforços. As flechas caíam como chuva, e o som metálico das lâminas colidindo se misturavam aos gritos dos feridos.
O chão vibrava sob os pés de Yuri enquanto ele avançava.
Então, algo mudou.
Não foi o som que o alertou, mas o silêncio.
Tudo ao redor pareceu prender a respiração. Até o vento hesitou.
E uma presença se fez sentir.
O imperador havia chegado.
Takeshi Mizushima, o Dragão de Gelo.
Ele não usava coroa, apenas armadura azul como o mar. Seus olhos eram pálidos, inumanos. O cabelo preso impecável no alto da cabeça. Ele caminhava entre os corpos como um predador, e em seu punho estava o tridente, a relíquia do clã Mizushima. O solo tremia sob os pés dele enquanto a magia moldava pilares de gelo ao redor.
Os guerreiros recuaram. Até os mais valentes hesitavam diante da figura do imperador.
Shin avançou, com a espada em punho enquanto Kiku correu para proteger os feridos, gritando ordens que se perdiam no caos.
Yuri ergueu sua espada, o braço ainda tremia devido a dor do ferimento no ombro. Enquanto se movia, sentia o peso do sangue escorrendo pelo uniforme, o ar frio queimando os pulmões.
As ordens não vinham mais da mente, mas do instinto.
Cortar. Defender. Respirar.
Até que ele a viu.
Akemi estava à alguns metros e posição defensiva. Não recuava, mesmo com a tempestade de poder se formando ao redor de Takeshi.
Ela movia-se com precisão, desviando, atacando, com uma força que Yuri nunca tinha visto.
Mas o imperador a via também.
E avançava em sua direção com um sorriso.
Yuri tentou alcançá-la.
Avançou, rasgando o próprio caminho entre soldados e lâminnas. Mas o gelo crescia à sua frente, formando barreiras que o obrigavam a desviar.
Gritou o nome dela, mas não adiantou. O som se perdeu antes mesmo de alcançá-la.
Takeshi parou. Enfim, diante dela.
Os olhos dourados de Akemi tremeram diante do homem mais poderoso do império. As espadas gêmeas movendo-se como um raio para golpeá-lo. Mas num piscar de olhos, as duas estavam no chão.
Seus braços se contorceram de modo anormal e ela gritou de dor.
Ele se aproximou mais e ergueu seu queixo.
— Ah, Akemi... tanto potencial desperdiçado — a voz dele era baixa e aveludada. — Numa coisinha dessas!
Yuri viu quando o imperador ergueu o tridente.
O ar ficou pesado. As gotas de neve que caíam pararam no ar, imóveis.
Akemi lutou contra a força estranha que a segurava por dentro, tentando se libertar.
E Yuri correu.
Cada batimento cardíaco era um passo mais perto dela.
Mais perto.
Mais perto.
O golpe foi rápido e brutal.
Um som seco. Um suspiro.
O tridente atravessou a barriga de Akemi.
O mesmo local onde Yuri havia costurado com tanto cuidado meses atrás.
O tempo de desfez.
O corpo dela cambaleou, e seus olhos encontraram os de Yuri.
E naquele instante, antes de cair, ela sorriu.
Ele correu, mesmo sabendo que era tarde. O sangue dela escorria pelo gelo, tingindo-o de vermelho.
Takeshi o observava com desdém.
Yuri ajoelhou-se ao lado dela, os dedos trêmulos.
— Akemi… — a voz saiu rouca, distante, como se fosse de outra pessoa.
Aquele olhar cheio de vida, que agora se apagava, ficou gravado nele.
Algo dentro dele se rompeu.
Não era raiva, era desespero puro.
Um tipo de dor que não vinha do corpo.
Ele congelou.
O grito ficou preso na garganta.
Tinha falhado.
De novo.
Assim como falhara em salvar Misaki, havia falhado em salvar Akemi.
Falhado em ajudar Shin com a técnica do clã Ito. Falhado... por não a dominar.
Ele conhecia somente uma pessoa que dominava aquela técnica.
Hiroshi Koyama, seu pai.
Mas para pedir a ajuda dele, primeiro precisava garantir a sobrevivência dos outros, não poderia deixar que mais ninguém morresse por sua culpa.
Ele se levantou.
O frio não o afetava mais. Nem o sangue que escorria, nem o medo que o paralisava minutos antes.
O tridente ainda estava manchado com o sangue de Akemi, e o imperador o girava entre os dedos como se fosse um simples brinquedo.
Ele tinha apenas uma carta na manga e nem sabia se realmente funcionaria. Já estava muito ferido.
Mas não era mais tempo de hesitar.
Yuri correu. A adrenalina dissolvia a dor. Ele sabia que não venceria, mas podia ganhar tempo.
Algo o impulsionava a frente. Enfrentou o imperador com todas as forças que tinha. Cada golpe era desviado por pouco, cada tentativa de ataque, frustrada.
Nunca tinha percebido como sua antiga vida era um paraíso: sem guerra, sem morte, sem o som ensurdecedor de espadas, carne, ossos.
A cada investida, Takeshi parecia prever seus movimentos.
O tridente exigia distância. Yuri, com sua espada, precisava se aproximar. Tudo o que conseguia era esquivar-se. Revidar era impossível.
A sensação de perigo o fazia querer correr dali. A presença de Takeshi tomava conta de todo lugar, fazendo cada pelo do corpo de Yuri se eriçar, sabia que estava de frente a alguém sobre-humano.
— Eu sei o que está pensando — disse o imperador, calmamente, como se tivessem todo o tempo do mundo. — Que eu ficaria no conforto do trono. Mas um governante que não luta... é apenas um fantoche.
O sorriso dele era grotesco. E Yuri sentiu que estava diante da própria morte.
Takeshi ergueu o punho. Uma corrente de água se formou ao redor da cabeça de Yuri.
“Sou um idiota. Como uma espada poderia vencer magia? Não importa o quão habilidoso eu seja...”
O imperador se aproximava. Falava algo, mas Yuri já não ouvia. Seus próprios pensamentos rugiam mais alto.
“Preciso voltar. Agora.”
O tridente brilhou, desenhando um arco perfeito no ar e o atingiu no peito.
A dor veio como um raio de luz.
Por um instante, o mundo ficou branco.
Ele sentiu a si mesmo desmoronar.
Não havia som.
Não havia ar.
Não havia tempo.
Não havia nada.
Somente as gotas.
Gotas…
Paradas no ar. Sem nunca cair.
Estariam… presas?
Eram as mesmas. As mesmas que tinha visto tantas vezes em seus sonhos.
Um brilho na lâmina. As mãos estavam trêmulas. De quem?
O capuz escondia o rosto dela.
E aquele sorriso…
Um sorriso torto. Falso. Não — perverso.
Tudo se misturava. Presente e passado, sonho e memória.
Yuri não sabia mais o que era real. Só sabia que já tinha estado ali. Que já tinha visto Akemi cair.
E que mesmo assim não conseguiu impedir.
O peito queimava, buscando por ar. As mãos tentando agarrar algo que não existia. Qualquer coisa que o fizesse ficar.
Mas tudo escorregava.
Ele queria falar com ela mais uma vez, mas não tinha voz.
Não podia se mover. Nem gritar. Nem respirar.
Só o silêncio. O frio. A dor.
Como naquele sonho.
Era só um sonho. Um sonho. Um sonho.
Mas doía.
O peito apertava. Tudo se dissolvia, tudo se tornava sombra. por quê? O que ele queria dizer?
Um nome...
Estava ali. Tinha que estar ali.
Ele devia lembrar.
As imagens se embaralhavam em sua mente.
Mas antes que a escuridão o tomasse por completo, Yuri compreendeu: o sonho nunca fora apenas um presságio.
Era uma lembrança.
Uma memória que, de alguma forma, se prendera a ele antes mesmo de acontecer. O início e o fim do mesmo destino.
Então o silêncio se rompeu. Um som agudo e ritmado preencheu seus ouvidos.
Bip… bip… bip…
O cheiro de antisséptico invadiu suas narinas.
Ele tentou mover a mão, mas algo puxou. Um fio, um tubo, não sabia.
O coração acelerou.
Estava de volta.
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