Volume 1
Capítulo 13: Onde a Noite se Esconde
"As memórias são como sombras que nunca desaparecem, se arrastando por entre os dias, acompanhando-nos como uma lembrança sussurrada do que um dia foi"
(Memórias, Alyana Veres)
5ª Lua Cheia do ano 1647
Lua da Sombra, dia 11
— Só mais um pouquinho! — gritou Hikari, inclinando-se para frente, as sombras no rosto oscilando com a luz das lamparinas, enquanto observava o braço de Shin quase tocar a mesa. Ele sorriu, permitindo que o braço cedesse lentamente, vendo o brilho nos olhos de Hikari aumentar.
Estavam em uma queda de braços das sombras, um jogo que Hikari inventara nos dias em que Shin era um aspirante à comandante dos Lobos Divinos, enquanto ela e Ryota tinham acabado de se juntar à divisão. Shin sorriu ao lembrar daqueles tempos mais fáceis, antes de conhecer sua verdadeira identidade, antes de dizimar metade da divisão… quando Koji ainda estava vivo. Uma sombra de dor atravessou seu olhar, mas ele logo recobrou o foco, atribuindo a leve tontura talvez ao efeito do álcool.
O braço de Hikari atingiu a mesa com um baque. O jogo, um teste de destreza mágica, consistia em moldar braços de sombra e forçar o adversário a ceder, sem que nenhum dos dois se tocasse fisicamente.
Hikari soltou um grito frustrado, e Shin levantou-se vitorioso, exibindo-se para o grupo ao redor. Yuri observava com curiosidade, olhos brilhando, enquanto comia em silêncio. Akemi, ao lado dele, dividia a atenção entre a disputa e a vigília.
— Quem é o próximo? — Shin desafiou, enquanto Hikari recostava-se, exausta, mas sorridente.
— Isso é perda de tempo — murmurou Ryota, encarando o saquê intocado. Hikari, ao ouvir, empertigou-se, os olhos faiscando. Ela adorava cutucá-lo.
— Quem vai tentar me derrotar? — insistiu Shin, com um olhar provocativo.
— Pensei que estivéssemos tentando ser discretos — Ryota lançou um olhar sério para Haruka, mas a comandante parecia absorta, os olhos fixos em um ponto qualquer, certamente usando sua habilidade de detecção.
— Você só diz isso porque não consegue vencer — provocou Hikari, com um sorriso travesso.
— Como é? — Ryota levantou o olhar, o semblante ainda mais fechado.
— Seu oponente é ele — respondeu Hikari, apontando para Shin, antes de virar sua bebida em um só gole, escondendo um sorriso vitorioso. Tinha perdido a disputa, mas já se considerava vencedora ao vê-lo entrar no jogo.
Ryota se levantou como se estivesse indo para a batalha, sentando-se diante de Shin e projetando um braço de sombra desproporcional sobre a mesa.
— Não acredito que estou fazendo isso — murmurou, resignado.
— Vai apelar, é? — Shin riu, projetando um braço ainda maior. Sentia a magia mais fraca do que antes, o resquício dos danos do incidente com o fogo, mas ainda assim, a conexão com a deusa fluía naturalmente, tanto quanto a respiração. Ele trocou um olhar com Hikari, que tremia de expectativa.
— Comecem! — ela exclamou, inclinando-se para ver melhor.
Os braços de sombra alongaram-se sobre a mesa, formas sinuosas, quase grotescas, colidindo no ar. A princípio, Shin mantinha o controle, o braço de Ryota cedendo ligeiramente, mas foi uma vantagem passageira. Com um movimento súbito, Ryota avançou, focando toda sua destreza e precisão.
A sombra dele parecia mais densa e afiada, como uma lâmina. Ele não se comparava à força bruta de Shin, mas compensava com uma precisão quase cirúrgica, usando brechas e calculando cada impulso com astúcia. Shin franziu a testa, percebendo o quanto Ryota evoluíra desde que se conheceram. Sua sombra era ágil e controlada, e seu olhar mostrava uma determinação fria, uma concentração que quase bloqueava tudo ao redor.
Shin respirou fundo, reconhecendo que precisaria de mais esforço. Ajustou o ritmo de sua magia, sentindo um leve formigamento nas pontas dos dedos, intensificando a conexão com a deusa. Avançou contra o braço de Ryota, sentindo a resistência feroz dele.
O grupo ao redor estava em silêncio, acompanhando cada movimento. Hikari vibrava a cada avanço de Shin, e Yuri inclinou-se levemente, os olhos atentos, fascinado pela disputa. Akemi observava a disputa com atenção, analisando as expressões de Shin e Ryota, como se tentasse captar tudo o que as sombras e as faíscas silenciosas revelavam.
— Não vai me vencer tão fácil assim, Shin — murmurou Ryota, com um sorriso. Seu rosto parecia concentrado, mas nos olhos havia um brilho de provocação. Era um desafio genuíno.
— Vamos ver isso — Shin respondeu, sorrindo. Sentiu o pulso da própria magia fluir, firme e contínuo. Havia algo de revitalizante em enfrenta-lo, ainda assim precisou de todo o controle e estratégia, e, aos poucos, a resistência de Ryota começou a ceder.
Com um movimento final, o braço de sombra de Ryota despencou, e a colisão contra a mesa foi seguida por um silêncio pesado, até que um coro de vozes explodiu em volta deles, ecoando congratulações e risadas.
Shin ergueu-se com um sorriso satisfeito e ofereceu uma mão para Ryota, que aceitou com um olhar de respeito, embora não pudesse esconder um leve sorriso de frustração. Hikari começou a aplaudir e rir ao mesmo tempo, satisfeita.
— Você foi melhor do que esperava — Shin admitiu. — Da próxima vez, talvez você me supere.
Ryota ergueu o olhar, ainda sério.
— Vamos ver se está preparado para isso — respondeu, recostando-se na cadeira, enquanto a tensão e a adrenalina da partida se dissipavam aos poucos.
— Atenção! — anunciou Haruka, de repente com sua melhor voz de comandante, provocando um susto em todos. — Precisamos sair daqui. Agora.
Shin ficou sério. Ele sabia o que Haruka estivera fazendo durante todo o tempo em que estiveram jogando. Assim como ele, Haruka era capaz de dissolver e expandir a magia da sombra numa área específica ao redor deles, detectando movimentos hostis.
Num piscar de olhos, todos estavam de pé, organizando seus pertences, prontos para partir.
Saindo do estábulo da pequena taverna, o frio da noite os recebeu, removendo de uma vez o efeito do álcool. Felizmente, foram rápidos o suficiente. Quando os inimigos chegassem, estariam a uma distância segura.
À medida que se aproximavam das fronteiras de Ayatsuri, a presença de soldados do império parecia cada vez mais frequente, como se o inimigo estivesse prevendo seus planos. Por causa disso, foram obrigados a seguir o caminho mais longo. E ainda havia Yuri. Um problema que deixava Shin dividido. A deusa Izanora havia dito para confiar nele, mas Shin ainda tinha dúvidas de que ele fosse um espião do império.
Enquanto cavalgavam apressados, Yuri seguia quase alcançando Shin, com uma agilidade que somente alguém que treinou por anos possuiria. E a técnica dele... Talvez ele fosse um dos bushis do imperador? De uma coisa Shin tinha certeza, Yuri não era um simples médico. E Shin descobriria a verdade de um jeito ou de outro.
— Haruka — chamou Shin, desacelerando um pouco para se colocar ao lado dela. — Número?
— Em torno de 20 — Haruka respondeu prontamente.
— Só isso? Estão nos subestimando, é? — Shin deixou escapar uma risada baixa.
— Eram especialistas em manipulação mágica.
— Retiro o que eu disse, então. Mudamos a rota? — Shin facilmente tomaria aquela decisão sozinho, mas preferia respeitar a posição de Haruka como comandante, principalmente considerando que Ryota e Hikari estavam em jogo, Haruka sabia lidar melhor com a dinâmica dos dois.
— Ryota — chamou Haruka, como Shin já esperava. Entre os Lobos Divinos, Ryota era quem possuía mais conhecimento territorial, o que sempre o tornava a melhor escolha na hora de tomar essa decisão.
— Podemos seguir por Akarui e depois contornar a Aldeia Tsuki, seguindo a lateral das montanhas dando a volta até chegar ao Pico Meiyo.
— Não seria muito óbvio? — argumentou Hikari do outro lado de Shin. Todos eles formavam um semicírculo em volta do príncipe, seguidos de perto por Akemi e Yuri, que vinham um pouco mais atrás. — Não seria melhor mudar completamente a rota, seguindo para o nordeste e contornando as montanhas?
— A topografia nos favorece, mas ficaria muito próximo as terras inimigas, qualquer excesso de barulho... ou distração, poderia comprometer nosso avanço — respondeu Ryota calmamente.
— Você está certo — Haruka concordou.
— Por acaso isso foi uma indireta pra mim? — rebateu Hikari com uma careta. — Relaxa, comandante e senhor cauteloso, sei a hora de brincar e a hora de ficar quieta.
— Estou confiando que vocês vão equilibrar bem essa energia, afinal é por isso que confio tanto em todos vocês — observou Shin, olhando entre eles, com um sorrisinho.
— Vamos seguir a sugestão de Ryota. A essa altura, seguir o caminho mais óbvio é a melhor opção para despistar o inimigo. — Haruka declarou, colocando fim ao falatório. — Preciso falar com o príncipe. Em particular. — Com isso, os dois Lobos Divinos se afastaram alguns metros.
Haruka conduziu seu cavalo para mais perto de Shin.
— Você sabe que te conheço desde criança. Alguma coisa está te deixando preocupado... Também sei que mantém os ouvidos abertos e presta atenção nas coisas. Portanto, sei que já ouviu os boatos.
— Sim. Nossa vitória em Vale Profundo teve o efeito desejado, mas também nos colocou na linha de fogo do imperador. Ele vai se mover rápido — Shin falou baixinho, projetando o olhar para o horizonte, onde as sombras das montanhas se fundiam com a noite. — Cada passo agora é uma aposta, e sabemos que ele não hesitará em derramar sangue para esmagar qualquer esperança que nasça entre o povo.
Haruka assentiu, séria.
— Shin… o que estamos fazendo é perigoso. Mas é sua responsabilidade, e eu confio em você. Só... cuide-se.
Shin estremeceu em sua cela. Haruka quase soava como a garotinha assustada que um dia havia sido, quando ele ainda acreditava que ela era sua irmã. Mas desde aquele dia em que ele deixara Kagestsu... e ela para trás, um abismo parecia crescer entre os dois, tão profundo que ele temia que jamais pudesse atravessá-lo.
Enquanto sacudia as rédeas, sentiu o peito apertar mais uma vez.
***
Yuri ainda não sabia ao certo por que o tinham trazido junto. Cavalgar por dias sob a chuva e o frio não era uma experiência das mais agradáveis, especialmente para alguém acostumado com a vida urbana. Mesmo assim, sentia-se grato por poder estar ao lado deles; a incerteza de não ter notícias o deixaria profundamente inquieto.
Conforme os dias passavam, o clima mudava e o frio se tornava mais intenso, em contraste com sua relação com Akemi, que, cada vez mais à vontade, ia falando sobre tudo o que encontravam pelo caminho. Foi assim que Yuri descobriu que Haruka, agora comandante dos Lobos Divinos, era também a meia-irmã mais nova de Shin — a mesma garota que ele havia visto ao lado de Shin durante o ritual. Ainda era difícil para ele acreditar que alguém pudesse ser, ao mesmo tempo, tão bela e tão perturbadora.
Ao longo do caminho, Yuri teve a chance de conhecer melhor seus companheiros. Shin estava sempre com um sorriso fácil e uma piada na ponta da língua, mas apesar do jeito descontraído, era claro que ele sabia seu papel como herdeiro e quando deveria assumir um tom mais sério. Haruka, por outro lado, permanecia um mistério. Com sua capa escura e o sombreiro que Yuri duvidava ser um disfarce melhor do que a máscara que havia retirado, ela parecia sempre distante, como se sua mente vagasse para além da estrada. Costumava parar para colher ervas — um ponto interessante que ele se empenhava em observar — e, na maioria das vezes, só falava quando Shin pedia ou quando precisava dar ordens a Ryota e Hikari.
Ryota e Hikari eram os que mais divertiam Yuri. Hikari não perdia uma oportunidade de provocar o rapaz, e embora ele muitas vezes parecesse irritado, não conseguia ignorá-la. A relação dos dois era um equilíbrio curioso, como yin e yang. Hikari era extrovertida e brincalhona, com cabelos curtos e irregulares, transmitindo um ar de jovialidade irreverente, mas ainda assim era surpreendentemente competente. Ryota, em contraste, era cauteloso e observador, sempre atento ao ambiente ao redor, complementando a ousadia dela com sua prudência.
E então havia Akemi. Para Yuri, ela era como a lua na noite e o sol ao amanhecer. Não sabia explicar por que, mas sentia-se atraído por ela, como uma mariposa que voa em direção à luz. Passavam muito tempo juntos, ainda que acompanhassem os outros, era sempre Akemi que ele via quando olhava ao lado. Aos poucos, acostumou-se à presença dela, ao tom calmo de sua voz, ao ritmo pausado com que falava… e à maneira como sempre olhava para o céu, pensativa, em seus momentos de silêncio.
Antes que percebesse, ele mesmo já sorria com aqueles que, a princípio, eram estranhos para ele. “Quando foi que comecei a me sentir tão em casa aqui?” se perguntava, sentindo uma estranha sensação de conforto e culpa. Quanto mais se envolvia com o grupo, mais o peso do que havia deixado para trás lhe esmagava os ombros. Antes de dormir, pensava na sua família, no emprego no café, e adormecia com um misto de medo e esperança de voltar ao seu próprio tempo. Foi nessa fase que os pesadelos retornaram.
Eram sempre os mesmos: passos abafados em ruas escuras e úmidas, uma garota assustada, mas também temida. Sangue escorrendo. E um nome que agora não conseguia mais esquecer. Demônio Escarlate. Ele acordava em pânico, sem entender a origem daqueles sonhos, mas agradecia pela distração que o caminho lhe oferecia durante o dia, até que a noite o arrastava de volta para aquele lugar sombrio.
Cavalgavam devagar agora, seguindo o trajeto indicado por Ryota. Haviam deixado Akarui para trás e, à medida que se aproximavam das montanhas, atravessavam um campo vasto e silencioso. Foi só depois de cruzarem quase toda a planície que Yuri notou o cheiro forte de carvão impregnando o ar. Num instante, viu.
À frente, o que um dia fora uma pequena fazenda agora era um amontoado de cinzas e toras enegrecidas, ainda soltando fumaça. Guerreiros em armaduras azuis patrulhavam o local destruído, suas figuras rígidas em contraste com o cenário desolado.
Instintivamente, o grupo parou, todos olhando para Shin em busca de uma decisão.
— Parece que vamos precisar seguir a sugestão de Hikari, afinal — ele disse, com um pesar na voz.
Nenhum deles disse mais nada. Em silêncio, guiaram seus cavalos na direção oposta, longe do olhar vigilante dos soldados. Yuri esperava ouvir algum comentário de Hikari, uma frase sarcástica talvez, mas o grupo mantinha um silêncio fúnebre. Até Haruka, que sempre olhava distante, agora tinha os olhos fixos no horizonte. Atrás deles, a fazenda sem nome, coberta de fuligem e fumaça, parecia encolher-se de medo sob o peso da destruição.
Continuaram pelas montanhas, passando por lagos que brilhavam sob o manto de estrelas, evitando qualquer confronto. Flocos finos de neve começaram a cair, como se a natureza também sentisse o peso daquele silêncio. A manhã se aproximava quando pararam brevemente para comer, mas ninguém trocou muitas palavras.
Quando voltaram a montar, o frio cortante deixava seus músculos rígidos, e Yuri mal conseguia sentir os dedos. Sabia que ainda estavam longe de Momiji En, o destino final da jornada. No entanto, algo mudou.
De repente, as árvores ao redor vibraram, derrubando a neve acumulada de seus galhos como se tivessem sido sacudidas por mãos invisíveis. Num instante, emergiram de todos os lados figuras altas e robustas, portando lanças longas e afiadas, que brilhavam à luz pálida do sol nascente.
Eles estavam cercados.