A Terceira Lua Cheia Brasileira

Autor(a): Giovana Cardoso


Volume 1

Capítulo 12: Um Sopro de Confiança

“O destino é uma dança eterna, onde os passos do amor e da traição se entrelaçam em um padrão que desafia a compreensão.”

(Ciclos do Destino, Hiro Yamamoto)

 

5ª Lua do ano 1647

Lua da Sombra, dia 2

 

 

 

O caminho até os estábulos de Kagestsu se estendia como uma serpente pelas profundezas da Floresta Sombria, prolongando-se por um dia inteiro de marcha. Mas para Akemi, aquilo não era mais do que uma rotina. Anos a serviço do império haviam moldado seu corpo e mente para suportar longas marchas e condições adversas, tornando a umidade da chuva e o peso do cansaço algo com que já não se importava.

No entanto, havia algo que a incomodava. Shin, apesar de seguir os desígnios da deusa, ainda desconfiava de Yuri.

A questão sobre como Yuri sabia da névoa venenosa, algo que nem mesmo ela conhecia apesar de seu tempo de serviço ao império, mantinha Shin com uma pulga atrás da orelha. Ele devia muito a Yuri pela salvação de seu exército, mas o mistério em torno do jovem médico o incomodava.

Akemi não o culpava por isso. O passado de Yuri era um enigma, e até mesmo sua paciência já se via testada com tantas perguntas não respondidas. Por isso, o príncipe a designara para manter Yuri sob constante vigilância, instruindo-a a acompanhá-lo, até nas situações mais corriqueiras. Como general, Akemi sabia que deveria cumprir essa missão com rigor. No entanto, conforme o observava, começava a se sentir cada vez mais intrigada pelo homem enigmático que fora encarregada de vigiar.

Caminhando pela estrada estreita e lamacenta, Akemi lançou um olhar discreto para Yuri, que seguia silencioso ao seu lado. A longa espada em sua cintura balançava a cada passo, a bainha de couro negro adornada refletia a luz fraca que se filtrava pelas copas das árvores. Em contraste, suas vestes simples, empapadas pela chuva, pareciam mais apropriadas a um homem comum, e não a alguém que empunhasse uma arma tão refinada.

— Vejo que Shin já entregou seu presente — comentou Akemi, acenando levemente com a cabeça em direção à espada.

Yuri arqueou uma sobrancelha, curioso.

— Como você sabe?

Um sorriso tênue se formou nos lábios de Akemi. Shin havia feito questão de que ela encomendasse a espada, mas quis entregá-la pessoalmente como agradecimento a Yuri. O presente não era apenas uma arma, era um símbolo de confiança. Algo que Shin raramente concedia. Ainda assim, as dúvidas persistiam.

— Ele mencionou que faria isso — respondeu, tentando soar casual, enquanto girava uma folha molhada entre os dedos. — Isso é um bom sinal, não acha?

Yuri correu os dedos pelo cabo da espada, acariciando o metal frio. Um sorriso discreto cruzou seus lábios, embora seu olhar permanecesse distante, pensativo.

— Sim, acho que sim — murmurou.

A chuva caía delicadamente sobre as folhas, o som suave acompanhando o ritmo da marcha. Haviam partido ao amanhecer. Akemi, Yuri, Shin, Haruka e os dois Lobos Divinos que agora formavam a guarda pessoal de Shin. Após passarem pelos estábulos de Kagetsu, seguiram para o norte, rumo à cidade fortificada de Ayatsuri.

Cavalgavam sem pressa. Vestidos de forma simples para evitar chamar atenção, uma precaução que Akemi conhecia bem. Por baixo da capa surrada, mantinha o cabelo escondido. Era estranho estar na estrada sem a armadura que por tanto tempo havia sido sua segunda pele. Mesmo após ter se juntado à Shin, frequentemente usava uma armadura, como se o peso do aço pudesse protegê-la de seu passado.

Agora, sem o peso reconfortante da sua armadura, sentia-se exposta, como se o frio da estrada pudesse tocar sua alma. Vulnerável. Uma sensação que a fazia lembrar dos dias em que, ainda criança, corria desesperada pelas ruas sujas e fedorentas de Inazuma, fugindo de mãos que só traziam dor, quando havia aprendido a nunca confiar em ninguém.

Ela apertou o capuz sobre a cabeça, afastando as memórias que sempre insistiam em retornar.

Os dias na estrada eram longos, mas não monótonos. Após se afastarem dos estábulos de Kagetsu e passarem por algumas aldeias isoladas, o grupo optou por descansar em pequenas hospedarias e estalagens modestas de beira de estrada.

A guarda pessoal do príncipe havia tirado suas máscaras. Sem as imponentes figuras lupinas, pareciam quase normais.

Hikari, com seus traços delicados e personalidade energética, escondia uma força latente que Akemi sabia ser fatal. Ryota, por sua vez, era de poucas palavras, mas carregava uma aura de seriedade que contrastava com o humor relaxado de Shin.

Haruka era uma figura à parte. Filha dos líderes Yamagawa e especialista em venenos e poções de cura, não era um prodígio na magia da sombra como o meio-irmão, mas conquistara sua posição de comandante com mérito. Era respeitada e temida por todos que a conheciam. Tudo isso escondido sob um rosto belo demais para ser ignorado.

A noite já havia caído quando o grupo finalmente avistou a pequena hospedaria. Os cavalos estavam exaustos, e a pequena taverna oferecia um refúgio do frio que começava a intensificar à medida que se aproximavam das montanhas. O dono, um homem barrigudo e sorridente, os recebeu sem suspeitas.

— Então, que tal uma bebida para aquecer os ossos? — sugeriu Shin, com um sorriso travesso, enquanto jogava sua capa sobre o ombro. — É uma boa oportunidade para deixar essas caras sérias de lado.

Ryota balançou a cabeça, mas não pôde evitar um sorriso discreto ao ver Hikari rir levemente.

Haruka desmontou com a agilidade de quem vive no campo de batalha e lançou um olhar direto para Akemi, que a observava em silêncio.

— Você vai ficar toda encharcada aí parada — disse Haruka, sem rodeios. Havia algo no jeito que ela falava, uma honestidade crua, que fazia com que seus comentários, embora bem-intencionados, sempre soassem... bruscos. Akemi apenas esboçou um sorriso e desmontou, jogando o capuz para trás.

— Obrigada pelo conselho — respondeu Akemi, seu tom carregado de uma leve provocação, algo que Haruka provavelmente não notaria.

Enquanto deixava o estábulo, Akemi não pode deixar de notar que Yuri as observava com uma expressão curiosa enquanto amarrava seu cavalo. Sentiu o calor subir às bochechas e, num ímpeto silencioso, desejou não ter tirado o capuz.

Enquanto o grupo se ajeitava na taverna, Akemi, para sua infelicidade, se viu sentada ao lado de Yuri. A lareira crepitava ao fundo, e o calor começava a afastar o frio dos ossos.

Ela se manteve ereta, com as mãos repousando no colo, como se o próprio corpo denunciasse o incômodo. Yuri, por outro lado, parecia relaxado, ou fingia muito bem.

— Eu não entendo como vocês conseguem gostar de lugares tão cheios — murmurou Haruka, olhando de soslaio as mesas ocupadas ao redor. — Parece... sufocante.

Akemi sorriu, pegando uma tigela de sopa.

— Talvez seja porque você está sempre cercada pelos Lobos Divinos. Não é exatamente uma companhia “animada”.

Haruka estreitou os olhos, sem perceber a provocação.

— Eles não fazem esse tipo de barulho. São mais... controlados.

Yuri deu uma risada baixa, sem querer. Akemi o olhou rapidamente, surpresa por ele ter se manifestado.

— Alguma coisa engraçada? — Haruka perguntou, seu tom direto quase acusatório. Yuri rapidamente balançou a cabeça em negativa.

— Não, é que... é engraçado como você fala deles, quase como se fossem lobos de verdade — esclareceu, com um sorriso sincero, lançando um olhar na direção de Hikari e Ryota que se aproximavam acompanhando Shin. — Mas imagino que a companhia deles deve ser melhor em alguns momentos.

Haruka deu de ombros.

— Pelo menos eles sabem ficar em silêncio quando precisam.

A conversa poderia ter acabado ali, mas Akemi a interrompeu, inclinando-se um pouco para Haruka.

— Está dizendo que prefere eles a nós?

Haruka parou por um momento. Parecia desconfortável, como se estivesse prestes a dizer algo que pudesse ofender, mas acabou soltando a resposta de qualquer forma.

— Não disse isso. Só... não sou muito boa em falar. Com eles é mais simples.

Akemi riu baixinho, algo que por muito tempo parecia raro, mas que ultimamente vinha acontecendo com muita frequência.

— Nem eu — disse em um tom mais sério agora. — Talvez sejamos todos iguais, afinal.

Haruka olhou para ela, avaliando a resposta, mas não disse nada. Apenas deu um leve aceno com a cabeça, como se entendesse perfeitamente o que Akemi queria dizer.

Ao se endireitar no assento, o olhar de Akemi sem querer encontrou o de Yuri e descobriu que ele a encarava. De repente a distância entre eles pareceu pequena demais e ela se sentiu terrivelmente desconfortável.

Eles já haviam compartilhado algumas conversas ao longo da viagem, mas havia algo diferente naquela noite. Talvez fosse a maneira como ele relaxava, a espada descansando ao seu lado, ou o modo como seus olhos escuros pareciam menos carregados de preocupação.

— Você viaja por essas estradas com frequência? — perguntou Yuri, olhando pela janela, onde as árvores da floresta começavam a desaparecer na neblina da noite.

Akemi assentiu suavemente.

— Sim, minha antiga unidade costumava fazer patrulhas por aqui. — Ela hesitou antes de acrescentar: — Mas você... Parece que não reconhece muito os lugares, estou certa?

Yuri riu baixinho, um som inesperado.

— Eu... Nem sempre prestei atenção a esse tipo de coisa. Quando era mais jovem, nunca saí muito da minha cidade natal.

Akemi ergueu uma sobrancelha, surpresa. Havia um tom de honestidade em sua voz que a fez querer perguntar mais, mas ela se conteve.

— Bem, vou tentar ajudar. Aquele vilarejo que passamos hoje, por exemplo, é famoso por suas frutas cítricas. Os mercadores vêm de longe para comprá-las. — Ela sorriu ao lembrar das colheitas que costumavam encher seus olhos. — Talvez, na volta, possamos parar lá.

Yuri olhou para ela curioso.

— Você parece conhecer bem mais que apenas as rotas militares.

Akemi deu de ombros, mantendo o tom leve, mas algo em sua postura mudou. Estava começando a se sentir mais confortável ao lado dele. Notava que, mesmo nas conversas em grupo, seus olhos sempre o buscavam, quase inconscientemente, como se procurasse sua reação, sua aprovação.

O grupo conversava animadamente, com Hikari provocando Ryota por sua expressão séria, enquanto Shin, encostado casualmente no balcão, conversava com duas viajantes sentadas à beira da lareira. O calor do fogo fazia brilhar os cabelos escuros dele, enquanto gesticulava com charme e sorria de um jeito que parecia calculado.

— Não sou exatamente um poeta — dizia, inclinando-se levemente para a moça mais próxima —, mas há algo sobre o brilho dessa lareira que me faz querer declamar versos.

As duas riram. Uma delas, visivelmente encantada, comentou algo que fez Shin colocar a mão no peito, como se tivesse sido atingido.

— Essa foi cruel — disse ele, em tom teatral, o sorriso nunca abandonando seus lábios.

Na mesa, Hikari revirou os olhos com um suspiro resignado.

— Ele sempre faz isso — murmurou, sem saber se ria ou se preocupava com a imagem do príncipe.

Ryota, ao lado, apenas balançou a cabeça lentamente.

— Parece impossível vê-lo como o herdeiro — comentou, num tom seco.

Shin lançou um último sorriso às moças e, antes de se afastar, curvou-se numa reverência exagerada, que arrancou mais risos e alguns olhares curiosos do salão. Ao voltar para a mesa, deu uma piscadela discreta para Hikari, que respondeu com um tapa leve no ombro.

— Não se preocupem, ainda sou o príncipe... embora mais popular que antes — ele alegou, sorrindo como quem guarda um segredo.

Akemi apenas observou de soslaio. Por mais que achasse tudo uma encenação, havia algo reconfortante na maneira com que Shin conseguia transformar até os momentos mais tensos em algo... mais leve. Talvez esse fosse seu verdadeiro dom.

Yuri parecia se divertir, os olhos indo de um lado para o outro enquanto comia, como se tentasse decifrar se aquele homem à frente era realmente um nobre... ou apenas um artista disfarçado. E a cada movimento dele, os olhos de Akemi pareciam segui-lo, mesmo sem que ela percebesse. Quando ele falava, ela notava o jeito que seus lábios se moviam, quase em sincronia com o ritmo irregular do seu coração.

Ela se perguntava por que, de repente, estava tão consciente de sua presença, mas não se atrevia a pensar mais profundamente sobre isso.

Mais tarde, quando o grupo estava prestes a se recolher para descansar, Yuri encontrou Akemi sentada sozinha em um banco perto da janela, observando a chuva que caía suavemente lá fora. O cansaço dos últimos dias pesava sobre todos, mas havia uma tranquilidade rara naquele momento.

— Pensando em algo importante? — perguntou, se aproximando e sentando-se ao lado dela.

Akemi deu um sorriso contido, sem desviar o olhar da chuva.

— Sempre penso demais quando o lugar é tranquilo. Talvez por isso eu prefira o caos das batalhas.

Yuri riu baixinho. — Você e Haruka se entendem nesse ponto.

Ela finalmente o olhou, curiosa.

— Talvez..., mas você parece mais tranquilo hoje. Algo aconteceu?

Yuri pareceu hesitar por um momento, mas respondeu mesmo assim.

— Acho que só estou me acostumando. Com tudo isso. Com... você.

Akemi arqueou uma sobrancelha, a expressão suavemente desafiadora.

— Comigo?

Yuri desviou o olhar, um sorriso tímido se formando.

— Com o jeito que você é. Forte, determinada. Talvez um pouco misteriosa.

Por um instante, Akemi não soube o que dizer. Não estava acostumada com elogios, especialmente vindos de alguém como Yuri, que sempre parecia estar carregando um peso sobre os ombros. Ela abriu a boca para responder, mas então fechou novamente, sentindo que talvez não precisasse dizer nada. Mas quando ele acenou e desejou boa noite, virando as costas para ela e se retirando, ela sentiu como se ele tivesse arrancado um pedaço dela e o levado consigo.

Naquela noite, enquanto todos se acomodavam nos aposentos simples da hospedaria, Akemi se pegou pensando nas palavras de Yuri.

Havia tanto que ela não sabia sobre ele, e esse mistério a atraía de uma forma que não conseguia controlar. Ela estava acostumada a missões, a ordens claras, mas agora, com Yuri, sentia algo mais. E aquilo a deixava inquieta. Uma parte dela queria falar mais, queria entender quem era Yuri. Mas outra parte, a parte mais forte, a alertava para manter distância.

Por que alguém como ele parecia tão fora de lugar ali, e ainda assim tão familiar de uma forma que ela não conseguia explicar?

A cada conversa que tinham, seja sobre o caminho ou sobre os perigos que os cercavam, Akemi percebia que estava se abrindo. Ela explicava coisas que antes não compartilharia com ninguém, detalhes sobre o território, sobre as táticas dos inimigos. Era como se, sem perceber, estivesse começando a confiar nele. Mas isso a assustava.

Confiar em alguém sempre levara à traição ou à dor. Sua família a abandonara quando era criança, e o império que ela desertara a usara como uma ferramenta descartável. Ela havia feito uma promessa de que nunca mais se colocaria em uma posição de vulnerabilidade.

Mas Yuri... ele era diferente. Havia uma tristeza nos olhos dele, uma sombra que ela conhecia muito bem. Talvez por isso sentisse uma estranha conexão, uma vontade de protegê-lo, mesmo que ele não precisasse disso. Ou talvez estivesse apenas projetando nele a parte dela que já estava quebrada há muito tempo.

Ela apertou os lábios, tentando afastar esses pensamentos. Tinha um objetivo claro, e este era ajudar o príncipe a retomar o trono. Essa seria sua última missão. Estava preparada para morrer, se fosse necessário. A vida dela já estava marcada, e não havia redenção para uma desertora.

Ainda assim, a cada dia que passava, a presença de Yuri fazia com que Akemi questionasse essa certeza. Ela não sabia lidar com o que estava começando a sentir, com o peso de algo novo surgindo em seu coração. Era perigoso. Muito perigoso.

Os dias continuavam a passar, marcados pelo som dos cascos ecoando na terra molhada. Akemi inspirou profundamente, o ar frio queimando seus pulmões enquanto tentava, em vão afastar a crescente sensação de mudança. Mas algo estava diferente. Não era apenas o caminho sinuoso que traçavam, nem o frio crescente que agora enregelava seus ossos.

Era algo mais profundo.

Cada dia que passava ao lado de Yuri parecia corroer suas defesas. Ela podia sentir as barreiras que erguera ao longo dos anos se fragmentando, uma a uma. Inútil... completamente inútil.

E isso a deixava totalmente perdida.

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