Volume 1,5
Capítulo 4: Prova de Coragem
Shin estava coberto de lama, mas não era qualquer lama. Era a lama nojenta e fedorenta da Floresta Sombria. Ali, a chuva nunca cessava, e a umidade constante deixava no ar um cheiro penetrante de folhas apodrecidas e de outras coisas indefiníveis.
O torneio de graduação estava apenas na metade, mas Shin já estava dominado pelo medo de falhar. Primeiro, porque era o mais jovem dos graduandos, com apenas doze anos, enquanto os outros tinham, em média, dezesseis. Segundo, porque a prova era uma caçada literal, e eles eram a presa. Os kagejins mais habilidosos do clã os perseguiam sem piedade. Para Shin, que quase nunca saía do subterrâneo, esse terreno era um campo de batalha desconhecido e hostil. Precisava sobreviver pelo menos três dias para ser reconhecido como um kagejin de verdade.
Embora seu domínio mágico tivesse melhorado, permitindo-lhe se esconder nas sombras, ele sabia que não poderia depender disso por muito tempo. O frio começava a tomar conta de seu corpo; se continuasse assim, acabaria se matando. Precisava pensar em outra estratégia.
Com as costas coladas contra uma árvore, Shin se mantinha atento aos arredores enquanto mastigava um punhado de cogumelos colhidos na floresta. O terceiro dia estava prestes a terminar, e ele precisava sobreviver a mais uma noite para ser aprovado. No entanto, a noite era o momento mais difícil. A escuridão tornava quase impossível enxergar os inimigos, e o sono se tornava um inimigo constante.
Trabalhar em equipe seria a escolha mais inteligente, mas Shin não era bem-visto pelos outros graduandos. A única opção era seguir sozinho.
Um bando de aves assustadas deixou o topo das árvores. Alguém se aproximava, mas não era um dos caçadores; eles jamais cometeriam um erro tão grosseiro. De qualquer forma, Shin sabia que já estava há muito tempo no mesmo lugar e precisava se mover.
Segurando o cabo da espada, começou a caminhar devagar por entre as árvores. Mal havia dado três passos quando se deparou com uma garota sentada de costas para uma árvore. A cabeça dela pendia para frente, escondendo o rosto sob os cabelos emaranhados.
Shin se aproximou com cautela, observando o movimento sutil da respiração dela. Ela estava viva, mas seu ombro estava firmemente preso ao tronco por uma flecha negra. O sangue que escorria era escuro, indicando que a flecha provavelmente estava envenenada.
— M-m-me ajude... — Ela sussurrou, erguendo a cabeça. Shin a reconheceu: era Natsuki. No primeiro dia, ela havia sussurrado “espero que morra” no ouvido dele. Ele se aproximou do ouvido dela e disse baixinho:
— Sinto muito, mas se não consegue sobreviver nem mesmo a técnicas que já conhece, então não estará apta a lutar contra clãs desconhecidos.
A expressão de medo no rosto de Natsuki se transformou em desespero, e Shin reprimiu um sorriso. Não sentiu culpa pela satisfação que o invadiu.
Deixando-a para trás, seguiu seu caminho, verificando os topos das árvores. Quem a atacou ainda poderia estar por perto. Não demorou muito para perceber que estava sendo seguido.
As sombras se intensificaram à medida que reflexos avermelhados penetravam por entre os galhos. Seu coração acelerava a cada passo. A sensação de ser seguido aguçava seus sentidos, e ele conseguia ouvir cada ruído da floresta ao redor.
Agarrou com firmeza o punho da espada. Quem quer que fosse, estava se aproximando rapidamente, mas Shin estava preparado. Mergulhou na vegetação, ocultando seus movimentos, e vislumbrou uma sombra se aproximando por entre as folhas. Seus movimentos eram silenciosos, mas Shin podia vê-lo.
Fechou os olhos por um segundo, conectando-se ao plano espiritual.
“Izanora, deusa da lua e das sombras, dê-me tua força neste momento. Que tua luz guie meus passos, e tuas sombras me protejam. Que assim seja.”
Entregar-se à deusa era como cair em um precipício, mas, uma vez envolvido pela Sombra Arcana, sentia-se protegido. A conexão com a magia requeria confiança e autocontrole. Quando abriu os olhos, sentia o fluxo de energia percorrendo seu corpo. Concentrou-a nas pontas dos dedos da mão esquerda, enquanto preparava a direita com a espada. Só tinha uma chance para prender o inimigo com as Garras das Sombras e finalizar o ataque com a espada.
Esperou pacientemente até que o inimigo estivesse na distância perfeita. Em questão de segundos, o caçador se tornou a caça. Shin atacou, pronto para cortar a garganta do oponente, mas desviou a espada no último momento, golpeando suas pernas para imobilizá-lo. Ele estava se preparando para a guerra, e isso significava que não podia hesitar diante de um inimigo, mas matar aliados para provar sua força era desnecessário
Passou o resto da noite em uma árvore alta, onde podia ver qualquer coisa ou pessoa se aproximando. Não dormiu. Quando os primeiros raios de sol tocaram as folhas no topo da árvore, respirou aliviado. Havia conseguido.
**
Três dias depois, Shin iniciou seu trabalho como kagejin. Embora ansioso estava feliz por finalmente poder sair da vila. Agora, ele seguiria as ordens de Akyo, o capitão dos kagejins. Na sala de Akyo, Shin observava o capitão organizar papéis enquanto explicava os detalhes do trabalho. Parecia simples: patrulhar os arredores, coletar impostos dos clãs vassalos e reunir informações sobre possíveis movimentações inimigas. Basicamente, precisavam ser cautelosos e discretos.
Enquanto Akyo estava prestes a terminar, um servente anunciou alguém à porta. Akyo acenou com a cabeça, e cinco kagejins entraram na sala. De onde estava, Shin avaliou cada um deles: postura ereta e disciplinada.
— Esses são Hikari, Kaito, Aya, Emi e Ryota. Os kagejins emissários do clã Yamagawa. A partir de hoje, trabalhará com eles.
— Sim, senhor. — Shin respondeu respeitosamente a Akyo, virando-se para os kagejins ao seu lado. — Sou Shin. Será uma honra trabalhar com vocês.
— Ora, ora, a honra será toda deles. — Akyo sorriu. — Não é todo mundo que tem a oportunidade de trabalhar com o herdeiro Yamagawa.
As bochechas de Shin queimaram, e ele desviou o olhar, ciente dos olhares de desdém ao seu redor. Mesmo conhecendo bem sua posição no clã, não se sentia superior aos outros. Lembrava-se das conversas sussurradas, das palavras não ditas que insinuavam que ele havia chegado ali sem esforço. Só Koji parecia vê-lo de forma diferente, com seus olhos amigáveis contrastando com os olhares frios dos demais.
Saiu da vila com o pequeno grupo de kagejins, seus passos ligeiramente hesitantes enquanto seus pais o seguiam até o torii coberto de musgo da floresta úmida. Sentiu o rosto corar quando seus pais insistiram em acompanhá-lo, mas um sorriso iluminou seu rosto ao avistar Koji, que veio para dar os parabéns pela graduação e pelo novo trabalho. Até mesmo Haruka apareceu para lhe desejar boa sorte com um abraço apertado e cheio de afeto. Ayame parecia um tanto preocupada, mas Shin seguiu em frente com passos leves e decididos. Finalmente, tinha certeza de que seria útil.
Hikari, a mais falante do grupo, descreveu cada um de seus companheiros com entusiasmo. Ela própria, filha de uma sacerdotisa e criada no templo Uzuni, escolheu um caminho diferente de suas irmãs para se tornar kagejin, buscando uma conexão espiritual mais profunda com a deusa. Aya, demonstrava sua habilidade de conversar com espíritos, prevendo movimentos inimigos e tornando-se uma guerreira versátil. Kaito, lembrava suas origens de órfão acolhido pelo clã, agora um rastreador talentoso em busca de vingança e honra para sua família. Emi, uma artista de um clã vassalo, moldava sombras em ilusões hipnotizantes, sua destreza a elevando ao posto de emissária. Ryota, carregando o peso de sua linhagem, mostrava-se um guerreiro formidável, ainda à procura de seu verdadeiro propósito. Quanto a Akyo, Hikari não disse muito, mas Shin lembrava de sua presença constante nas audiências com seu pai, um capitão leal e inflexível em suas decisões.
Após uma breve parada nos estábulos, seguiram em direção ao vilarejo mais próximo, onde foram recebidos pelos senhores locais. Sentados em um salão adornado com tapeçarias, observaram Akyo discutir sobre a produção da safra e as atividades econômicas da região. Entre taças de saquê, negociaram a quantia a ser paga, em moedas ou recursos naturais.
Logo depois, os camponeses formaram uma fila, carregando fardos de arroz e caixas de mercadorias. Vila após vila, vilarejo após vilarejo, os frutos do árduo trabalho das terras vassalas, mesmo em tempos de escassez, encheram as carroças destinadas aos cofres do clã principal.
Por fim, chegaram a Aoiyama.
Aoiyama era a cidade mais isolada, situada na fronteira sudeste. Devido à sua distância, sempre era a última a ser visitada para a coleta de impostos. Mesmo de longe, avistaram a fumaça densa que se erguia no horizonte, exalando um odor enjoativo e adocicado que fez o estômago de Shin se revirar.
Avançaram lentamente, e a inquietação de Shin começou a se dissipar ao avistar uma figura de pé, aparentemente aguardando a chegada da comitiva. No entanto, não era um homem. Era uma viga enegrecida de madeira, teimosamente de pé, mesmo após a casa à qual pertencera ter sido consumida pelas chamas e reduzida a escombros.
O cenário caótico que se desdobrava diante dos olhos de Shin era, no mínimo, perturbador. Cavalgaram por ruas poeirentas, cercadas por casas em chamas e campos de arroz devastados. Os olhares das pessoas que vagavam entre as ruínas eram tristes e hostis. Encontraram os líderes locais, não prontos para recebê-los, mas em posição de defesa.
O capitão Akyo desmontou do cavalo, avaliando-os com atenção. Ajustando a espada na cintura, dirigiu-se a eles com uma expressão séria.
— O que aconteceu aqui?
— Fomos atacados a três dias, senhor — respondeu um homem velho e rechonchudo.
— No entanto, as responsabilidades do clã permanecem, e os tributos devem ser pagos — declarou Akyo, provocando uma troca de olhares descontentes entre os habitantes presentes.
O velho parecia desconfortável, ajustando seu obi apertado na cintura. Ele era Satoshi, um samurai aposentado que assumira a liderança de Aoiyama há alguns anos.
— Acho que não estamos num lugar apropriado para discutir esse assunto. Por favor, entrem e permitam-me servi-los com uma bebida.
— De acordo — respondeu Akyo, acenando para que os kagejins o seguissem.
Satoshi ordenou que seus serventes trouxessem uma bebida enquanto todos se acomodavam no salão que milagrosamente ainda estava de pé, ainda que o restante da propriedade tivesse sido levado quase que completamente pelas chamas. O clima era pesado. Shin olhou de relance para os kagejins enfileirados ao seu lado e Hikari devolveu um olhar compreensivo, percebendo seu desconforto.
Akyo prosseguiu com a negociação, detalhando as condições dos impostos ao que Satoshi começou a suar de preocupação.
— Mas, senhor, no momento mal temos o suficiente para sobreviver. Me pergunto se é realmente necessário exigir tributos em tempos tão sombrios — a tensão somente aumentou com suas palavras. — Entendemos a obrigação do clã, mas olhe ao seu redor. Nossas casas foram derrubadas, nossos campos queimados. Não temos como pagar o que nos é pedido.
— Vocês têm o prazo de um mês — declarou Akyo por fim, suspirando profundamente, como se carregasse o peso das decisões do clã inteiro em seus ombros. — Compreendo que estamos vivendo tempos difíceis, mas as obrigações do clã são inegociáveis. A estabilidade de todo o império depende da cooperação de todos os seus domínios.
— Entendo, senhor. Fico grato por ser tão flexível. Estaremos preparados em um mês.
Shin duvidava. Um mês era um período de tempo curto demais para restabelecer tudo que fora perdido, curto demais para garantir o sustento da população e ainda cumprir as obrigações do clã.
Concluíram seu trabalho e seguiram o caminho de volta para casa. Shin não conseguia esquecer o olhar faminto daquelas pessoas, crianças pequenas que mal tinham o que vestir para se proteger do frio. Muitas famílias haviam perdido suas casas, muitas haviam morrido. Mas ainda precisavam cumprir suas obrigações em troca do apoio do clã principal. Era isso que a guerra trazia.
A fumaça das ruínas ainda parecia impregnar suas roupas, e o silêncio no grupo, que antes parecia uma aceitação tácita das obrigações, agora parecia um fardo. Ele olhou para Akyo, que mantinha a mesma postura firme e resoluta de sempre. Mas Shin não aguentava mais ficar em silêncio.
— Capitão Akyo, posso lhe fazer uma pergunta? — Shin começou, hesitando brevemente.
— Claro, Shin. O que deseja saber? — Akyo respondeu sem virar-se, os olhos ainda focados no caminho à frente.
— Em Aoiyama… aquelas pessoas… Elas perderam tudo no ataque. E, mesmo assim, precisam pagar os impostos. Não seria possível abrir uma exceção? Só desta vez?
Akyo parou de repente, fazendo com que o grupo inteiro parasse atrás dele. Ele se virou lentamente para encarar Shin.
— Você acha que eu não vejo o que está acontecendo? Que não sinto o peso da responsabilidade sobre essas pessoas? — Akyo perguntou, sua voz era firme, mas sem traços de raiva. — A guerra é cruel, Shin. Ela exige sacrifícios de todos, inclusive dos mais fracos. Se permitirmos que um clã não pague os tributos, outros seguirão o exemplo, e logo todo o sistema entrará em colapso. O que você viu hoje é o que acontece quando a ordem é quebrada.
Shin sentiu seu coração apertar. Ele sabia que Akyo estava certo em termos de lógica, mas o que viu em Aoiyama parecia mais do que apenas uma questão de disciplina e ordem. Era uma questão de humanidade.
— Entendo, capitão. Mas... — Shin hesitou novamente, sentindo os olhares dos outros kagejins em suas costas. — Não poderíamos fazer mais por eles? Talvez enviar ajuda, recursos, para que possam se reerguer? Sem isso, como poderão pagar os tributos no próximo mês? Como poderão sobreviver? Se mostrarmos compaixão, talvez possamos fortalecer a lealdade dessas pessoas ao clã. Não seria essa uma forma de manter a paz também?
Akyo estudou Shin por um momento, seus olhos escuros e insondáveis. Finalmente, ele respondeu suspirando.
— A compaixão é uma qualidade admirável, Shin, e é natural que você a sinta. No entanto, o clã Yamagawa não se sustenta apenas com boa vontade. As responsabilidades que temos são grandes, e cada vassalo tem seu papel a cumprir. Se abrirmos uma exceção para Aoiyama, outros vão exigir o mesmo, e logo o clã inteiro estará enfraquecido.
Shin baixou o olhar, sentindo-se um pouco derrotado, mas ainda assim incapaz de aceitar a situação completamente.
— Eu só... queria que as pessoas não tivessem que sofrer tanto — murmurou ele, mais para si mesmo do que para Akyo.
Akyo colocou a mão no ombro de Shin, surpreendendo-o.
— Eu sei. Seu coração está no lugar certo, e isso é algo que respeito em você. Mas, as vezes precisamos tomar decisões difíceis, decisões que vão contra nossos próprios sentimentos.
Shin assentiu, mesmo que as palavras de Akyo não dissipassem completamente as dúvidas que ainda se agitavam em seu coração. Ele sabia que havia muito mais para aprender e entender. Enquanto seguiam viagem de volta, ele decidiu que não ficaria de braços cruzados. Mesmo dentro dos limites de sua posição, ele encontraria uma maneira de fazer a diferença para aquelas pessoas, nem que fosse à custa de seu próprio conforto.
Nota:
¹Kagejin é uma divisão militar exclusiva do clã Yamagawa, encarregada de patrulhar os arredores das terras do clã, coletar impostos dos clãs vassalos e reunir informações sobre movimentações inimigas. É também o primeiro nível de formação para os membros do clã. Seus integrantes, provenientes tanto do clã principal quanto dos clãs vassalos, são altamente habilidosos e essenciais para essas funções, mas não participam ativamente de batalhas nem se envolvem em conflitos de guerra.
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