Volume 1
Capítulo 14: Discutindo as Regras do Sistema
Tudo se escureceu. Meu corpo ficou tão pesado que não pude mover um dedo sequer.
O que está acontecendo? O porquê disso agora? Não saberia responder.
Mesmo naquela situação, conseguia escutar as garotas gritando meu nome através da escuridão, e daquela escuridão, um flash brilhou diante dos meus olhos. Tal como se uma lanterna fosse ligada diretamente no meu rosto.
Quando a luz intensa diminuiu, voltei a enxergar. Então, estava com os olhos abertos?
A luz diminuía lentamente enquanto eu colocava as mãos contra ela, tentando reduzir seu efeito cegante. Assim que se estabilizou, encarei ao redor procurando saber onde eu estava.
Mas, que diabos?
Penso que isso não faz sentido algum, porém, quando imagino aquele outro mundo no qual também tinha acordado, não daria para reclamar, ao menos não duas vezes em tão pouco tempo. O problema é, que além de ser meio surreal, dificilmente eu conseguiria dizer que isso não seria um sonho.
Pisei no chão algumas vezes. O chão é algo como um terreno fofo e tem um aspecto que me lembra muito um algodão. O cheiro ao redor é de flores de campo e há também uma brisa suave circulando pelo lugar.
Apesar de vasto, para todos os lugares que observo, há o horizonte e seu céu azulado. Apenas algumas nuvens brancas preenchem esse céu. Não, quem eu estou querendo enganar?
Não adianta ser bonito visualmente se é tão falso quanto um palco montado. Na verdade, agora que a surpresa passou, ao olhar com mais calma e atenção, consigo ver que todo esse lugar está dentro de uma única sala.
Caminhei até as paredes dessa sala para comprovar o que tinha imaginado. Olha o canto dela aí, de longe até passaria despercebido... Então, que trabalho porco é esse?
Quando me estiquei para encostar na parede, vi meus braços, longos e masculinos. O quê? Tinha voltado ao meu corpo original? Meu eu verdadeiro. Sim... tudo estava em seu devido lugar, até mesmo lá embaixo.
Estou com um misto de felicidade e tristeza, ainda mais considerando onde eu estou agora. Eu deveria estar feliz? Suspirei, apoiando-me nas paredes e abaixando a cabeça... Sério? Se fosse me retornar, não estaria faltando a Terra? Tipo, um pequenino detalhe, né?
Dei uma pausa naquela posição, tentando entender tudo que estava acontecendo, quando de repente uma voz surgiu do centro da sala:
— Vejo que acordou — disse a voz tão poderosa de tão grave.
Ahhh!
Quem é esse “homem”?
Ele se inclinou levemente como se estivesse me cumprimentando e fez um sinal para que eu o acompanhasse naquele chá da tarde? Assim como a figura misteriosa apareceu, uma pequena mesa, duas xícaras com pratinhos e duas colheres apareceram. Além disso, duas almofadas no estilo japonês e um tatame sobre o chão. Ao redor o céu azulado com as nuvens na parede desapareceu e estávamos em uma antiga casa de chá japonesa.
Ele realmente quer que eu me sente aí?
Para minha surpresa, ele concordou com a cabeça e sentou-se do outro lado da mesa. Cruzou as mãos e pôs-me a observar, aguardando minha ação.
A figura é masculina, tem longos cabelos brancos e uma barba comprida, tão branca quanto. Utilizava algum tipo de chapéu que cobria boa parte da cabeça com um símbolo circular dourado. Suas expressões e rosto me lembravam de um velho já com idade avançada.
Bem, se considerar tudo que aconteceu até agora, não teria o porquê de me surpreender.
Suas roupas compartilhavam um misto entre a cultura japonesa e alguma vinda da Europa medieval. No entanto, boa parte da vestimenta era feita de um longo quimono branco, florido e bem detalhado. Por debaixo do kimono também usava uma camisa longa de um tecido fino e leve.
Mesmo que simples, toda aquela roupa dava a essa figura um ar misterioso e imponente. Ou seja, quem diabos é esse Velho?
— Não há com que se preocupar, Yami... ou melhor, senhor Ottoe.
— Argh... quê? Quem é você? — Maldição, ele sabe quem eu sou?
— Sim... eu sei quem é você, porém, como eu disse, não precisa se preocupar. Não sou seu inimigo — afirmou enquanto apontava para o outro banco.
Não há muito o que fazer enquanto estiver dentro desse quarto. Melhor apenas sentar-se e ouvir o que esse estranho tem a dizer.
— Certo... vou me sentar.
Fui até aquela mesinha e me sentei.
— Eu... estranho? Me desculpe por te assustar. Poderias me chamar de... “deus”? — deu uma breve risada seguido de algumas tossidas antes de se recompor.
—... realmente existe um deus? — Nada me surpreenderia agora, depois de tudo. — Então? Que lugar é esse? Isso quer dizer que eu morri novamente? — falei enquanto encarava o quarto outra vez, e depois, voltei minha atenção ao “deus”.
Ele fez um sinal negativo tentando me acalmar.
— Ah, não, não. Não estás morto — tossiu antes de continuar: — E este é o Salão do Fim dos Tempos...
Que nomezinho, sério?
— Com esse nome... tem certeza de que não estou morto? — comentei de deboche. — De qualquer forma, por que, depois de tudo que passei, estaria acordando nesse tal “salão do fim dos tempos”?
A figura se inclinou um pouco para trás, pegou um bule sobre a outra mesa e ergueu a tampa. O cheiro de chá verde tomou conta do lugar, muito mais que o cheiro das flores de outrora.
Ele apontou para a xícara de cerâmica e me perguntou se eu queria. Já que estou aqui, por que não? Chá verde é um dos meus preferidos, ao menos se não tiver café.
— Então, preferes café? Não há problemas, que seja café então — Quê? Ele fechou o bule com certa imponência e alguns poucos segundos depois, o abriu novamente, revelando agora o novo cheiro, o de café preto. Agiu como se nada de absurdo tivesse acontecido, apontando para o pote de açúcar e me perguntava: — Açúcar?
— Quê? Por acaso consegues ler o meu pensamento? — Suspirei ainda que um pouco aflito pelo que aconteceu. — Só um cubo, por favor.
Ele sorriu. Por causa da barba, era difícil notar os movimentos dos seus lábios e boca.
— “Ler pensamentos?” — brincou. — Esse seria um poder comum para os deuses, não? De qualquer forma, me surpreende que você esteja tão calmo. Quando o trouxe aqui, pensei que ficaria mais surpreso por tudo que aconteceu.
Minha xícara foi preenchida com café até quase transbordar – e isso sempre acontecia comigo. Ele puxou um cubo de açúcar com um pegador e colocou no meu café enquanto repetia o processo no seu próprio. Depois disso ele colocou o bule de lado na mesma mesa de antes.
Me ajustei a mesa e aproximei daquele líquido preto. O cheiro é café e isso é como uma droga para mim. Antes, na minha vida passada, eu era viciado nisso – tanto que meus médicos e personal trainer sempre me repreendiam por isso.
— É café, do jeito que você gosta.
— Isso também faz parte dos seus “poderes”?
— Bem, aqui no Salão do Fim dos Tempos, todos têm direito aos seus últimos desejos...
— Ou seja, eu morri — o cortei.
O deus deu uma gargalhada com aquela voz diferenciada e novamente virou a cabeça de um lado para o outro.
— Não — negou com firmeza.
Tomei um gole daquele café e fiquei por um momento sentindo o gosto na minha língua e boca. Depois disso, inspirei a fumaça para lembrar de todas as vezes que passava a noite com uma caneca nas mãos. Maldição! Esse cheiro e esse sabor é inegável, e quem pode afirmar que eu poderia tê-los novamente? Seja lá o motivo pelo qual estou aqui, tenho que aproveitar.
— Se eu não estou morto e você é um deus... isso significa que foi você que me pôs naquele “mundo”? – perguntei enquanto colocava a xícara na mesa.
— Me desculpe — deu algumas tossidas —, mas isso não posso lhe dizer.
— Ah, qual é... qual o significado disso, então? — bufei negativamente e tomei outro gole.
— O trouxe aqui para alertá-lo. Como você é um indivíduo... “diferente” ... estive observando seus movimentos e ações até aqui, desde quando acordasse.
— Que história é essa de me observar todo o tempo? Espere... — Mesmo que eu não acredite nessas coisas, agora seria inegável duvidar dos poderes desse “deus”. — Certo, esquece... continue... Me alertar? Sobre o que?
Ele deu uma pausa como estivesse lendo meus pensamentos antes de me responder:
— Sim, quero dar-lhe dois avisos: primeiro você não está morto e assim que nossa conversa terminar, você irá voltar para o outro mundo.
— Certo, entendi.
— Além disso, te parabenizo pelo que fez até agora. Ainda que estivesse em um lugar completamente desconhecido e sem quaisquer tipos de informação, conseguistes se sair muito bem. Vejo o porquê de te escolherem.
— Hmmm, eu deveria estar agradecido por esses “elogios”? — e quem seriam esses “outros”?
— Segundo, sobre aquilo que você chama de Sistema. Esse... bem. — Ele colocou a xícara dele na mesa mesmo que não bebesse sequer uma vez, e olhou para mim com aqueles olhos semifechados antes de continuar: — esse Sistema que está lhe ajudando de certa forma...
É visível que ele não está confortável em falar sobre o tal “sistema”, e isso me preocupa um pouco já que, o que deixaria um deus preocupado? Se até ele mudou sua forma de agir, isso significa que o tal “sistema” não é algo tão simples quanto as ferramentas de um jogo eletrônico.
De qualquer forma, soltei um suspiro.
— Se refere àquele que parece um jogo, certo? Não foi você quem o criou?
— Sim e não. — disse enquanto fazia um sinal negativo. — Não fui eu que criei esse Sistema, mas, é certeza que ele parece ser muito injusto em comparação ao mundo que você foi inserido.
— Injusto? — Parando para pensar, com certeza — Se é assim, vai removê-lo?
Desde que esse deus apareceu, muito o que ele faz é negar, né?
— Não. Não posso fazê-lo. Até gostaria de fato, porém, como foi decidido assim, não há muito o que eu possa fazer a não ser alertá-lo. Portanto, eis meu aviso: Cuidado para não abusar do Sistema. Se você assim o fizer, não será capaz de voltar atrás.
Coloquei a xícara vazia na mesa e quando percebi, havia agora um pequeno cesto com alguns cookies com gotas de chocolate. “Deus” me vendo encarando-os fez um sinal para que eu os pegasse — pode servir.
Depois de mastigar e engolir algumas porções, senti-me revigorado tanto quanto depois de tomar o café. Esses sabores, quão bons são para mim.
— Até eu que nunca fui fã de jogos eletrônicos percebi que estava injusto. No entanto, como assim abusar do Sistema? Você está dizendo sobre os níveis absurdos, pontos de habilidades e todas outras coisas? Não é como se eu estivesse trapaceando. Se você está me acompanhando e viu, não tenho culpa disso.
— Sim, eu sei. — Depois de confirmar, colocou a mão sobre a boca para tossir, se levantou e me encarou de cima. — Porém, ainda que tenha sido dessa forma, é sua escolha usar ou não desse poder.
— Então eu não deveria usá-lo, é isso?
— Eu gostaria que não, no entanto, não é tão simples assim. Um equilíbrio é tudo que precisa. Apesar de estar vendo este novo mundo como um jogo, saiba que apenas você tem acesso a esse Sistema. Então, seria o único a ver o mundo dessa forma. Todos outros vivem tão naturalmente neste mundo quanto você viveria no seu mundo original.
Como ele se levantou, levantei-me também. E assim que meu campo de visão deixou de ver a mesa e todos aqueles objetos, quando olhei novamente para eles, já tinham desaparecido. O tal deus começou a caminhar e eu comecei a andar do seu lado.
A sala de antes já não tinha aquele aspecto surreal. Também não estávamos mais naquela casa de chá japonesa.
Agora estávamos andando em um campo gramado no alto duma colina. Era como se a visão fosse coberta por um mar verde com inúmeras flores coloridas. Ao fundo, montanhas que cortam o horizonte e seu céu azulado com algumas poucas nuvens brancas.
Estávamos caminhando em direção à árvore.
— Então você está me dizendo que sou único?
— Provavelmente sim.
— Olhe, mais uma vez, eu não pedi por isso... também não sei como eu vim parar aqui ou o porquê. Se esse Sistema é baseado em um jogo, o que deveríamos esperar no final disso tudo? — Enquanto andávamos, comecei a fazer várias perguntas: — Você não é um deus? Não deveria saber dessas coisas?
— Entendo que você esteja associando estes poderes a mim. No entanto, “deus” está mais para lhe ajudar a compreender o que eu sou. E não... até mesmo eu não sei ou poderia fazer de tudo.
Apesar de não intencional, soltei um leve sorriso no rosto. Se esse deus estava sobre regras de algo superior, imagine eu? De qualquer forma, com o que aquele sistema apresentou, duvido muito que algo conseguiria me parar com toda aquela roubalheira.
— Então... por ser um jogo. Você acha que ele irá criar algum tipo de desafio específico para mim? — perguntei, para voltar ao assunto original. — Além disso, jogos normalmente possuem fim, certo?
— Não esqueça que posso entender seus pensamentos, Sr. Ottoe. Por isso é melhor pensar em não abusar desse sistema. E, sobre o que perguntou, sim, é o que eu acho que irá acontecer. Desafio é a palavra que estava procurando. — Observava a grande árvore e novamente tossia antes de continuar: — Até então, você é muito mais forte que os outros que tenha encontrado, porém, se o sistema resolver criar um desafio pensando em você... imagine o que aconteceria com os outros, até mesmo com o lugar ao redor de onde estivesse...
A árvore estava próxima de nós. Seu cume era tão denso que até mesmo o sol daquele lugar tinha dificuldade de atravessá-la, e por isso mesmo, havia uma gigantesca sombra fresca no qual pudéssemos repousar.
— Merda... logo agora que eu estava pensando em ficar no topo sem nenhum tipo de esforço — disse de maneira irônica. — De qualquer forma, como eu poderia saber se estou ou não abusando do Sistema? Não encontrei nada que me servisse como um padrão de dificuldade.
Assim que chegamos naquela árvore, deus apontou para seu tronco – em uma passagem dentro dela – e depois para todo os arredores, como se estivesse fazendo uma fotografia panorâmica.
— Neste caso, aconselho-te a entender sobre esse mundo, tal como você já estava procurando saber, depois disso, explorar e compreender as coisas ao seu redor. — Deu alguns passos para se aproximar de mim antes de perguntar: — Vê essa grande árvore e os campos?
— Sim, como não poderia ver se são as únicas coisas nesse lugar? O que há com isso, você o fez, não?
— Sim e não. Deixe-me explicar um pouco sobre mim: eu sou o deus do equilíbrio.
— “Deus do equilíbrio”? O que é isso, algum título extravagante?
— Entenda como se minha prioridade fosse manter os equilíbrios das coisas, sem que um lado ou força tenha muito mais força que o outro. Isso se aplica a tudo, a essa árvore, a esse campo, a esse céu, a esse mundo e exclusivamente a você.
Ele continuou apresentando a paisagem ao redor, e sua natureza abundante. Tal como uma pintura fantástica de um artista famoso, era esse lugar. A árvore solitária e seus campos floridos fazem parte dessa grande arte.
— Vê como há uma única árvore nessa colina? Não precisamos de muitas para contemplar sua beleza e mesmo assim ela é mais que suficiente para deixar esse lugar único, especial... real. Agora, e se ela não estivesse aqui? Algo não estaria certo.
— O que você quer dizer com isso?
— Assim como essa árvore é suficiente, ela também é necessária. As flores em que ela dá suporte, seja por nutrientes, seja por sombra, não viveriam sem ela. Mas, também não significa que somente com ela poderiam viver. O sol, os ventos, todo o restante são necessários. Portanto, não é somente por ela existir que as flores poderiam existir...
— Sim, isso eu entendo, até uma criança do primário saberia disso... Vá logo ao ponto.
— Certo, Sr. Ottoe. Estou apenas lhe mostrando que as coisas, mesmo que grandes e imponentes, ou poderosas e únicas, precisam estar cientes que muitas outras coisas dependem dela, assim como ela depende dessas pequenas coisas. Espero que você não se esqueça disso.
— Não se preocupe comigo, não é como se eu desejasse destruir esse mundo ou seguir qualquer coisa relacionada ao tal “rei demônio” e suas lendas absurdas. Mas, você não está insinuando que eu deva me preocupar com “tudo”, né? Até porque eu não vou me preocupar com as formigas que irei pisar.
Aquele deus riu de maneira tão alta que até me senti um pouco intrigado, porém, logo depois de tossir – e o que há com essa tosse infinita? – pela primeira vez ele fez um sinal positivo com a cabeça antes de continuar:
— O mundo é injusto, tu pensarias? É uma afirmação comum para os humanos. E mesmo sendo deus do equilíbrio, não posso negar que isso está certo de alguma forma. Então, Sr. Ottoe, não estou pedindo que trate todas as coisas da mesma forma, apenas que você saiba a importância delas para todas as coisas, mesmo aquelas pequenas que você poderia considerar insignificante.
— Se é assim, o que eu tenho a ver com isso?
— Olhe, entendo e acredito em você quando diz que não irá fazer mal ao mundo, porém, o Sistema ainda continua contigo e ele em si, é uma incógnita para o que eu preciso fazer. Mesmo agora, eu repito, gostaria de removê-lo e acho que eu preciso removê-lo, porém, não posso.
— Se é assim, então não jogue seus problemas para mim, estou farto dos “superiores” ficarem jogando seus problemas enquanto não se esforçam para resolvê-los.
— Cuidado, Sr. Ottoe. Não pense por que eu não possa interferir diretamente que você estará a salvo de ser tão arrogante. Lembre-se da ruína de seu antigo mundo. As decisões e essa atitude o fizeram até aqui, mesmo que você não concorde, ganhaste uma segunda chance.
— Que isso? Vai me dar lição de moral agora?
— Não. Longe disso, apenas lembrar-te que você não é mais o seu antigo eu, não é mais Itsuki Ottoe, portanto, não aja como tal. Sr. Ottoe, pense nessa segunda chance como uma forma de melhorar e não cometer os mesmos erros.
— Melhorar? Erros? Eu estava fazendo tudo perfeitamente na minha vida passada. Não acho que ser morto pelo meu “melhor” amigo seja cometer um erro. Ele foi o culpado por isso. Eu não tive nada a ver com as escolhas e decisões dos líderes da empresa.
— Vejo que não perde seu orgulho... certo? Sra... Yami.
Mas que merda? De repente perdi o formato do meu corpo e voltei a estar naquele corpo infantil. Da garota... da “Yami”.
— Não estou te culpando pelo que aconteceu, Yami, muito menos procurando culpados. Apenas estou lhe avisando, afinal, quem avisa amigo é, certo?
— Se é isso que tem para me falar, por favor, me leve de volta ou acabe o quanto antes com isso. Basta eu ter sido lançado naquele mundo maluco no corpo de uma criança, não preciso de você me dizendo que eu sou o errado aqui.
— Acalme-se. Não precisa se desesperar, já estamos terminando aqui.
— Ok, continue então.
— Além de ter cuidado com o Sistema, preciso que você saiba: o mundo é vasto e há muitos pontos de vista. Já percebi que você valoriza o seu próprio para tomar suas decisões, ainda que também tenha escolhido ações que me agradam. Porém, cuidado para não usar apenas o conhecimento do mundo anterior.
— Você me diz para não cometer os erros e que eu faça o “certo”, mas, que certo é esse? O que eu preciso fazer?
— Isso você precisa descobrir por conta própria.
— Ótimo — falei de maneira sarcástica — Bem, essa será nossa última conversa... deus?
— Provavelmente não. Mas, eu não deveria interferir diretamente. O que estou fazendo já é contra as regras. Portanto, não espere ter uma conversa ou mesmo tomar aquele café comigo tão cedo.
— Até mesmo você precisa seguir regras? — perguntei, ironizando a situação.
— Sim. Claro que não as regras dos mortais.
— Então, no final de tudo, isso só significa que nós dois deveríamos focar em ganhar uma promoção para nos tornarmos o Chefe que pode alterar tais regras.
— Hahaha — riu do mesmo jeito de antes — Gostei do seu jeito de pensar. Realmente, Yami. Quem sabe o que nos espera no futuro?
No momento que eu olhei para o outro lado e tentei voltar a atenção ao velho, ele desapareceu tão repentinamente como tinha aparecido.
O que está acontecendo?
Meu corpo começou a sentir-se leve e eu mesmo, observando-o, pude notar que estava ficando cada vez mais transparente.
Era como se eu ganhasse características fantasmagóricas e ao mesmo tempo que eu começava a planar, subindo em direção ao céu, tudo ao redor começava a se desmontar como peças de um grande quebra-cabeça.
A luz voltou me cegando por um momento e quando o clarão terminou, eu vi a escuridão novamente. No entanto, essa escuridão desapareceu no instante que eu abri meus olhos.
Aiii... como minha cabeça dói.
Coloquei minhas mãos sobre a cabeça tentando amenizar a dor.
Malditos chifres, são eles os culpados? Sinto como se algo estivesse martelando-os para dentro do meu crânio e por causa deles, é como se eu não conseguisse alcançar a fonte da dor.
Aquele “sonho”, não foi um sonho, certo? Mesmo sendo tão improvável quanto, ter um deus conversando comigo é tão... Absurdo? Só de imaginar que eu estava conversando com monstros como goblins, tudo já seria passível de ser verdade.
E agora... onde eu estou?
Olhei para os lados e vi que estava em uma sala, ainda dentro da caverna, porém, em um dos “cantos” dessa sala havia uma estante repleta de prateleiras com livros e frascos. Também nessa parede, estavam quadros de paisagens e outros objetos caros.
Essas pinturas, não seriam as mesmas daquele sonho? Isso não importa agora.
Era como se eu estivesse em um quarto da realeza ou de gente rica. Além daquele espaço, eu mesmo estava deitado sobre uma cama de casal, coberto por vários tecidos finos quase transparentes.
Levantei-me com certa dificuldade e vi que estava nu – outra vez.
Minhas mãos... essa pele de âmbar e estas garras... realmente, voltei para o corpo da garotinha de antes. Meu “eu” atual.
Se tudo aquilo realmente aconteceu, quanto tempo se passou desde que estava desacordado?
Me ajustei para que pudesse ficar sentado, porém, de lado na cama. Ainda estava com certo receio de saltar e me levantar por completo pois estava sentindo tonturas e a dor de cabeça, mesmo que amenizada, ainda era algo difícil de se lidar.
Respirei por alguns momentos tentando me acalmar quando de repente a cortina do lado da cama balançou e dela saiu Yaga.
— Ah, princesa Yami. Acordastes? Como está? — perguntou Yaga, se aproximando e colocando uma bacia de madeira cheia de água ao lado.
— O que aconteceu, Yaga? Onde estou?
— Você está no meu quarto, Yami.
— Quê? Por quê? — perguntei surpreso.
— Acalme-se, minha senhora, está tudo bem agora.
— Acalmar? E por que estou sem roupas?
— Me desculpe por minha incompetência, deixe-me explicar com mais detalhes. Assim que você terminou de explicar as condições do contrato, algo surgiu diante de todos que estavam observando aquele estranho objeto mágico. Parecia algum tipo de alavanca ou botão, mesmo aqueles que não sabiam a linguagem comum entenderam do que se tratava.
— ... — Apesar de ele estar detalhando o suficiente, isso ainda é muito confuso para mim.
— Todos entenderam quando aquela misteriosa voz perguntou se concordamos com os termos e se queríamos o poder da Princesa Demônio.
— Voz? Que voz?
— Não saberia explicar, senhora Yami, era uma voz tão diferente, que sequer poderia dizer ser natural. Além disso, a voz ecoou em nossas mentes diretamente. Sem pensar muito, aqueles que escutaram a proposta logo aceitaram. Posso dizer que todos aceitaram ao mesmo tempo quando a pergunta chegou até eles.
— Você quer dizer que... depois que essa voz perguntou se todos aceitavam os termos, eles mesmo concordaram e aceitaram juntos?
— Sim.
— Certo, acho que entendi, “eles” se referem aos goblins, né?
— Sim.
— E... por isso estou aqui? Eu apenas senti-me fraco e acordei aqui.
— Certamente. É claro que o que você fez seria impossível para qualquer um de nós, ouso dizer, mesmo com risco de ser amaldiçoado pelo meu antigo senhor, que você já o superou no que se trata capacidades mágicas. Você literalmente criou um contrato com inúmeros indivíduos ao mesmo tempo. — Ele se afastou da cama e foi até a estante.
Yaga pegou um copo de madeira e uma jarra. Ele encheu o copo com água e veio até mim, me entregando.
Apenas aceitei. Mesmo que os Demônios-reais não precisassem comer ou beber algo, como o sistema tinha dito, acho que isso pode me ajudar a amenizar essa dor de cabeça.
Peguei o copo e tomei água, que... refrescante. E vendo o copo, assim como sentindo-o diretamente, não é madeira, é barro.
Yaga continuou:
— Meril e eu discutimos sobre isso... sobre o que aconteceu. Mesmo com seu poder absurdo, por estar neste corpo, de uma criança, você não pode usá-lo da maneira correta. Enquanto ainda for jovem, estará limitada e foi por isso que ao aceitarem o contrato, o poder que você poderia usar foi exaurido rapidamente.
— Sério... que loucura.
— “Loucura”? Pode-se dizer que sim, mas, também seria “loucura” o tempo que você se recuperou.
— O que quer dizer com isso? Quanto tempo estou desacordado?
— Apenas alguns minutos.
— Certo, Yaga, acho que entendi. — Olhei novamente para o fino tecido transparente cobrindo meu corpo. — E o que diabos é isso? Por que estou desse jeito?
— Isso... Yami...
Antes que Yaga terminasse de falar, Meril também atravessou a porta do quarto e me vendo levantada, correu em minha direção, ajoelhando-se e pondo a observar minha temperatura com as mãos na minha testa.
— Yami! Estás se sentindo melhor? Que bom que estás acordada.
— Qual é esse desespero todo? — Tirei a mão da Meril sobre mim.
Ela apenas acenou e se levantou, pondo a me observar à distância. Pelo jeito a preocupação com os goblins sumiu de vez, afinal, ela e Yaga estão lado a lado.
Como ela está tão tranquila com essa situação? Além disso, se eu estava desacordado por alguns minutos, o que aconteceu durante esse tempo? Por causa do que aconteceu, meu corpo simplesmente se desligou da realidade. Não tenho nenhuma lembrança – ou mesmo memória muscular – do que aconteceu.
— E as outras garotas? — perguntei um pouco aflito.
— Ainda estão te esperando na Arena.
— E pensar que vocês não se aproveitaram para me matar ou algo do tipo... — comentei baixinho.
Meril que escutou, fez um sinal negativo com a cabeça e se aproximou novamente, cobrindo minhas mãos com as suas próprias, tentando me consolar:
— Yami, eu não vou mentir sobre isso: assim que a vi cair, pensei seriamente em fazer algo. No entanto, eu não poderia perder essa oportunidade e aceitei o quanto antes os termos conforme o pedido daquela voz e tirei você dos braços da Sheyla para trazer-lhe aqui.
— As outras aceitaram o que você fez?
— Foi a própria Sheyla que pediu para que eu a ajudasse. Mesmo ela não sabendo que eu tinha aceitado o contrato. Sendo assim, creio que ela, pelo seu jeito, decidiu ajudá-la. As outras garotas, incluindo Ninx, ainda não aceitaram o contrato.
— Entendo... bem, isso era apenas um caminho opcional de qualquer forma — respondi. E, parando para pensar, por que Meril tem tanta convicção que elas não aceitaram o contrato? — Meril, o que te faz pensar que Sheyla ou as outras não aceitaram? Se a própria Sheyla não percebeu sua escolha, o que seria diferente?
— Oh, isso? Yami, eu não sei bem explicar, mas é como se houvesse um estranho poder que nos conecta. Lembra-te, tanto o Escravo quanto o Mestre podem perceber suas localizações caso eles permitam.
— E... eu permiti isso?
— Bem... acho que sim. Afinal, além de sentir você, isso parece funcionar com qualquer outro que também tenha aceitado se tornar seu escravo.
Escravo aqui, escravo acolá... esse termo não vai cair tão bem tão cedo, ou melhor, não deveria. E, parando para pensar, quando eu vejo as telas do Sistema, parece que surgiu um novo botão no menu de opções. Ele se chama... “Funcionário”.
Sistema: [Funcionário]
[Funcionário – Essa janela permite analisar, administrar, recompensar, penalizar e localizar os funcionários através de cargos, funções ou individualmente. Veja todos seus status, atributos e habilidades, assim como definições e últimas ordens].
Que loucura. É como se eu estivesse vendo suas fichas profissionais.
— Como você está se sentindo? — perguntei a Meril e depois olhei para Yaga, também perguntando: — E você, Yaga?
— Eu? Estou ótima! Só o fato de ter aceitado o contrato, não só senti meus poderes aumentarem como acredito ser capaz de fazer diversas coisas que antes seria impossível. Yami, você é realmente poderosa, e considerando o quanto você compartilhou com isso... é inacreditável.
— Eu concordo com as palavras da Sra. Meril. Até mesmo esse velho goblin sentiu que suas habilidades melhoraram de uma maneira surreal. Se isso foi apenas o início, o quão grandioso será nosso caminho daqui para frente? — comentou Yaga.
Apesar de terem essa sensação de poder, seus níveis não aumentaram. No entanto, em seus status é possível ver, com números e símbolos, os valores de crescimento que o contrato ofereceu ao aceitar. E por seguir as regras das condições, seus poderes estão baseados em cima dos seus próprios valores básicos.
O que isso tudo significa? Não tenho a mínima ideia, se pudesse apenas resumir: Eles ficaram mais fortes, bem mais fortes.
— Isso é ótimo, e tudo bem. Porém, o mais importante... Por que... eu... estou pelado aqui?! — gritei para os dois.
Meril olhou para Yaga e eles trocaram olhares culpando um ao outro. Depois disso, Meril suspirou e estufou o peito como se tivesse algo super importante para falar:
— Isso é porque eu queria aproveitar e ver seu corpo.
Ah, então é isso, ela queria ver meu corpo..., MAS QUE CARALHOS?
— Como é, Meril? Que porra é essa! Por acaso você tem algum tipo de fetiche?
— Fetiche? Não! Me desculpe, Yami. Desde que te vi depois da batalha, senti-me inquieta pensando sobre o assunto. É que... Nunca vi ou escutei falar sobre um demônio em forma humana, nem mesmo aqueles de nível superior. Até mesmo os demi-human ou meio-demônios não teriam um corpo tão... humano quanto o seu.
— Aí você decidiu se aproveitar da situação e tirar aqueles... — eu poderia chamar aqueles pedaços de trapos velhos de roupa?
— Não! Por favor, não me entenda mal. Me desculpe... sério!
— Olhe... Meril, você não fez nada de errado comigo, certo?
— Não, eu juro!
Não é como se ela pudesse mentir já que aceitou o contrato, porém, o que seria o errado nessa situação? Quem iria julgar isso? Eu, que estava desacordado, o Sistema ou aquele tipo de “deus” stalkeador acompanhando todos meus passos.
— Ela diz a verdade, Yami. Meril não fez nada de estranho.
— Mas que diabos? E você, Yaga, espero que não tenha tentado fazer nada.
— Oh, não se preocupe comigo, Meril me impediu que me aproximasse durante suas pesquisas e descoberta.
— Que porra?! — Argh, maldita dor de cabeça que ainda continua. Sequer posso me irritar agora pois a dor de cabeça logo volta. — Ok... vamos esquecer isso. Porém... Meril, se você voltar a fazer isso, e se você permitir — apontei para Yaga — saibam que vocês não sairão impunes. Não permitirei que ninguém brinque comigo ou com meu corpo.
— Me desculpe. Por favor, Yami, me perdoe — lamentou-se Meril.
— Entendi, princesa Yami. Isso não voltará a se repetir.
— E pare com isso de Princesa.
— CEO Yami? — perguntou Yaga tentando por honoríficos no meu nome.
— Não, caralho, só Yami, ok? Não precisa de títulos quando se refere a mim.
Talvez eu esteja louco, porém, não tão louco a ponto de permitir que criaturas e monstros me chamem ou me tratem com “respeito” sem motivo algum. Tudo que eu consegui na minha vida passada foi puramente por esforço, portanto, estarem me referindo com tanta babação-de-ovo por causa de uma apelação do Sistema, é como se estivesse atacando meu orgulho.
— Entendido, Yami. Irei me corrigir.
Com essa nova opção, eu consigo ver a posição dos “funcionários” e... opa, o que isso? “Mapa”? Ao clicar no botão e seu ícone, algo como uma janela circular apareceu diante do meu campo de visão. Isso seria o famoso minimapa dos jogos? E... eu consigo abrir o maior?
Por algum motivo, que só o Sistema sabe, uma janela apareceu diante de mim com o mapa da região. E não só isso, ele parecia ser capaz de determinar os inúmeros corredores e salas da caverna, tal como áreas e locais fora da caverna desde onde eu acordei até aqui.
Pelo jeito, esse mapa revela as áreas onde eu estou e alguns bons metros ao meu redor.
A maioria, senão todos os goblins ainda estão na Arena. E Meril está aqui, comigo.
É bem conveniente que o próprio mapa seja capaz de separar eles em grupos:
Há 43 goblins, 1 hobgoblin e 1 humano. Se todas as garotas aceitarem, posso dizer que minha empresa começou com 50 funcionários... do nada.
— Bem, vamos voltar para Arena... preciso dar fim a essa novela toda.
— Espere, Yami, consegue se levantar? — perguntou Meril, se aproximando e me ajudando.
— Sim... consigo... eu só não posso sair assim — olhei para o meu estado.
— Não se preocupe, Yami, irei pedir para que Tina e Saga preparem algo para vestir-lhe. E, agora mais que nunca, você não pode vestir qualquer coisa. Observe, Yami — Yaga apontou para um baú próximo ao outro canto da sala. — Apesar de ter recusado antes, espero que reconsidere... Use qualquer uma dessas roupas ou ordene que as goblins criem a partir delas.
Hmmm... então, por que eu tive que usar aquele vestido branco surrado de antes? Não... não posso culpá-lo por isso, ele realmente me ofereceu suas roupas e eu que recusei.
— Como estou melhorando, assim que voltarmos, irei definir algumas regras. Querendo ou não, teremos que mudar.
— Conto com você, Yami, e é claro, eu entregarei toda minha experiência e conhecimento — afirmou Meril.
— Como desejar, Yami. Eu e todos os goblins da montanha serviremos seus comandos sem hesitar.
Acenei com a cabeça e agora é só esperar que as “garotas” goblins cheguem aqui.
E, considerando que tenho essa nova janela [Empresa], terei que passar um tempo entendendo e aprendendo como ela funciona. Ainda que muitos achassem que trabalhar fosse um saco, eu, um viciado em trabalho, certamente terei uma motivação a mais para não achar esse mundo um lixo completo.
Agora eu só preciso ver quem são esses meus “funcionários” e decidir o que fazer agora. Sistema, sisteminha, o que você vai me dizer sobre isso? E você, deus, o que achas? Estou seguindo o caminho certo que tanto estava comentando?
Vamos ver se esse gigantesco tutorial termina e a aventura de fato começa. Pois, não irei parar por nada agora.