Volume 2

Capítulo 114: O ESPELHO PARTIDO

Kai pigarreou, a cabeça latejando. A areia havia perdido parte da luz quando ele abriu os olhos. O entrelugar parecia menor, mais estreito. Talvez respirasse menos. Talvez ele respirasse menos.

O peso no peito voltara, mas não com a mesma fúria de antes. Era uma presença quieta, quase paciente. Quase.

Nos últimos dias, ele labutou numa contenda dura e fria para tentar enxergar a Voragem. Não era fácil, mas… novamente, quando o caminho de Kai tinha alguma facilidade?

Era irrelevante analisar toda sua trajetória até aqui. Cada percurso trilhado e traçado por Kai estava fresco em sua memória, incapaz de ser esquecido. 

Seu trajeto era duro, ardiloso e vil. Nada vinha fácil para Kai. Por isso seu espírito e vontade foram temperados com tanta labuta e perseverança. Por isso Kai não desistia fácil, também.

— Certo… — murmurou, sem erguer a cabeça. — Isso é cair menos?

A voz veio de trás, carregando toda a vontade igualmente latente de Naor, que vinha sendo paciente e gentil nos últimos dias. Kai quase se sentia culpado por isso, também. Quase.

— Não, isso é apenas acordar.

Kai girou lentamente o pescoço. A dor se arrastou como uma lasca de gelo sob a pele. Naor estava sentado mais distante dessa vez, longe da fogueira que agora mal ardia.

— Hoje — continuou o Esquecido — Você vai tropeçar. E perceber onde tropeça.

Kai esfregou os olhos, lutando para não acreditar que tinha percebido uma leve pirraça vinda da voz do Esquecido. Era isso uma demonstração legítima de rebeldia e leviandade?

— Por que eu suspeito que vai doer?

Naor sorriu.

— Porque vai.

A sinceridade irritante dele quase fez Kai sorrir. Quase.

Kai se levantou… ou tentou. O chão cedeu alguns centímetros sob seus pés, como se fosse feito de poeira líquida. A Voragem se mexeu dentro dele — agora muito mais perceptível por causa das tentativas anteriores de tentar enxergá-la — um longo arranhar sem direção. Não estava faminta, nem furiosa… apenas desperta.

Por enquanto, ela mantinha-se como espectadora, talvez querendo ver até onde essa falsa tentativa de lhe afastar iria. De vez em quando, envenenava Kai com suas palavras disfarçadas.

“Olha só… ele quer brincar de novo.”

Kai fechou os olhos com força, esperando a onda de sarcasmo vir. Mas ela não veio. A coisa ficou ali, à espreita, como um animal velho que observava o movimento lento da presa, estudando.

Naor se remexeu.

— Lembra do que fez ontem?

Kai não respondeu, aprendendo lentamente a fazer isso apenas no seu tempo. Naor era bom ensinando a ter calma e paciência, também.

— Observe — respondeu ele, num sussurro cansado.

— Observe — confirmou Naor. — Mas hoje, não apenas o peso. Hoje você vai notar quando ele tenta te puxar.

Kai respirou fundo; não tão fundo, contudo. O ar ainda era espesso demais. 

— E se puxar forte?

Naor ajeitou o cajado, e a fogueira atrás dele cuspiu uma pequena chama azulada.

— Então você cai. Mas segura em algo antes de tocar o chão.

Kai arqueou a sobrancelha.

— Tipo o quê?

Os olhos dourados de Naor cintilavam.

— A si mesmo.

Uma carranca se aprofundou em Kai, ele abriu os olhos um pouco.

— Isso não ajuda muito…

— Por isso chama-se aprendizado. — disse Naor, sereno, seu rosto totalmente contrário ao que suas palavras poderiam parecer. — Agora feche os olhos. A segunda fase… já está perto de começar.

Kai fechou os olhos, mas o escuro não veio. Naquele entrelugar, fechar os olhos só mudava a forma da luz, nunca sua presença. Ainda assim ele obedeceu.

A primeira coisa que sentiu foi o peito repuxando — um puxão breve, quase imperceptível, como se alguém segurasse seu coração entre dois dedos.

— Aí — disse Naor, calmamente. — Esse é o primeiro movimento dela hoje.

Kai piscou, tentando manter a respiração.

— Parece… menor.

— Parece — corrigiu Naor — porque você está atento. Nada fica menor sozinho.

Havia… verdade em suas palavras. Kai vinha aprendendo muito com o homem, apesar de sentir indignação por muitas das coisas absurdas que ele dizia.

Mas, ao contrário de homens que Kai conheceu em sua vida antes de Orquídea, Naor não era um sujeito que falava coisas à esmo. Ele tinha confiança no que dizia, nunca se gabava por saber coisas das quais Kai nem sonhava, e havia esse ar ligeiramente sábio ao redor dele, como se nada que visse pudesse surpreendê-lo.

Ainda que houvesse, ele era alguém de adaptação sobrenatural, compreendendo as coisas no mesmo momento. Sua mente fria e perspicaz análise eram serenas, o que lhe dava uma vantagem para lidar com momentos de crise e tensão. Talvez sua calma pudesse parecer teatral demais.

Mas Kai sabia que se fosse o caso, sua máscara já teria ruído em todo esse tempo. Ele realmente estava calmo, o que poderia irritar alguém como Kai.

Naturalmente, Kai também percebeu que era assim, no passado. Alguém que não se irritava facilmente, e que mantinha a calma mesmo em momentos mais desoladores…

Havia uma razão para a calma e pacificidade do Esquecido, é claro. Nada disso vinha fácil também, e uma pontada de curiosidade crescia e aumentava em Kai toda vez que ele pensava no caminho trilhado por Naor até aquele momento… até ser quem era hoje. Kai não podia esquecer que Naor e seus Esquecidos eram diferentes de tudo que ele vira em Atom até aqui.

O que aconteceu para serem assim? A vida antiga dos sacerdotes da areia era um mistério.

Como para afastar tais pensamentos, a segunda onda veio mais forte. Uma lufada quente subiu pela nuca, como se a Voragem tentasse empurrar seu pensamento para algum canto escuro. Kai vacilou. O chão cedeu sob ele por meio segundo.

— Isso é cair? — perguntou, os dentes rangendo.

— Isso é tropeçar — respondeu Naor. — Cair é quando você deixa de perceber que tropeçou.

Kai inspirou, mas o peso interno empurrou o ar de volta para fora. O parasita, ou veneno, como Naor descreveu, mexeu-se como água sob gelo fino.

“Ele acha que você consegue. Engraçado.”

Kai tremeu.

— Ei — chamou Naor, firme, pela primeira vez menos doce. — Volte.

Kai abriu um pouco os olhos… algo doía dentro, ofuscando sua concentração. Havia ao mesmo tempo uma vontade de dormir e ceder à essa dor… o cansaço era muito, e o descansar era convidativo.

— Eu… estou aqui.

A voz de Kai saiu num sussurro, no automático. Naor sabia que o perigo morava aqui, pois Kai estava mais vulnerável do que antes. Esse era o verdadeiro terror, e era aqui que a vontade de Kai tinha de se sobressair.

Mas o que facilmente seria uma escolha fácil para qualquer outra pessoa… era o momento em que Kai brilhava.

Quando sob pressão, sua vontade era irascível e latente, e ele não sabia disso, mas sentia. Era em momentos de inconsciência que seu ser mais se firmava.

Concentrando-se, o peso escorregou de seu peito para o estômago, depois subiu de novo, girando devagar, como um olho sem pálpebras procurando um lugar para descansar.

Sua vontade ganhava mais firmeza, enraizando-se em sua alma, um claro lembrete do que ele era feito antes de tudo isso. Que havia força aqui também.

— Ela… está me cheirando. Procurando algo fraco.

— Ótimo — disse Naor. — Mas não descreva o que ela faz. Descreva o que você sente.

Kai hesitou. Ele sabia como isso era difícil para ele… falar sobre seus sentimentos. Era mais simples fugir, ir embora… do que enfrentar qualquer coisa que fosse complicada demais e que não estivesse a seu alcance do controle.

Pensando melhor… essa era a primeira vez que Kai colocava isso em cheque. Foi preciso evoluir muito para admitir isso, mesmo que fosse para si mesmo. Ele fugiu quando as coisas pioraram, de volta à Neve Sempiterna.

E fugiu quando Fioled lhe deu uma alternativa. Ele era querido por ela e pelos seus. Foi-se, dizendo a si mesmo que era por causa da complicação que seria o depois…, mas, no fundo, Kai podia lidar com política, e com estratagemas, e com a batalha por si só…

Mas diante de algo concreto, ele se acovardou. Ele se apequenou. Podia dizer que não gostava da menina o suficiente para ficar com ela, que nunca a amaria como ela precisava…

Contudo, como ele saberia se não tentasse?

Novamente, ele preferia lutar, arriscar a vida, sangrar e sofrer uma tortura… do que se abrir. Foi assim sua vida inteira. Mesmo que não fosse tão cético para notar que havia algo de errado, pois procurou se curar quando percebeu o que se passava… ainda era muito diferente de simplesmente transformar seus problemas em palavras.

Dizer o que sentia era simplesmente difícil demais para alguém que foi criado para suprimir o que sentia. Dor, medo, ausência e perda… tudo sempre aconteceu em sua vida com uma profusão clara e profunda, sem qualquer comedimento. E ele lidou com isso, mesmo pequeno, melhor do que deveria. Do jeito que sabia: ignorando tudo e seguindo em frente. Era mais fácil remendar uma ferida do que um coração partido.

Não culpava Siobhan por isso, afinal, ele não sabia como criar uma criança, e criou um guerreiro.

Entretanto… aqui estava um problema realmente sério. Não havia escapatória. Kai tinha de falar, ou algo pior surgiria da omissão.

Ominoso e hesitante, ele suspirou. O que ele sentia…?

Medo, claro. Repulsa. Exaustão. Mas também algo mais profundo, mais nu: vigilância. Como se estivesse diante de uma fera enorme que ele conhecia desde a infância.

— Eu… sinto que ela… me examina — disse, enfim. — Quer achar o ponto onde eu desisto.

Naor sorriu apenas com os olhos.

— Então hoje seu objetivo é simples, Kai Stone.

Ele levantou se, o cajado riscando um arco preciso na areia, e a luz na bolha piscou.

— Não dê a ela nada para examinar.

Kai franziu a testa.

— Como?

— Só há um jeito — respondeu Naor, com um ar de obviedade. — Permaneça inteiro… mesmo rachado. A rachadura não te destrói. A desistência, sim.

Kai ficou parado, sentindo o peso deslizar outra vez, com mais pressa.  A coisa parecia irritada… ou faminta. Ele respirou. E, por um segundo, o peso não avançou.

— Isso — murmurou Naor. — A queda menos profunda começa assim.

A fogueira atrás deles estalou, cuspindo outra pequena língua de luz azul.

Kai percebeu que tremia. Não era medo, apenas esforço excessivo.

— Devo supor que amanhã…

Naor apertou o cajado, um sorriso firme surgindo em sua pele de terracota.

— Amanhã… você tropeça melhor. 

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