Volume 1

Capítulo 42: DESMEMBRAMENTO SECULAR





O ar circulando por Arjuani ondulou e deteriorou tudo ao redor.

Ela girou no eixo, conjurando esferas voluptuosas feitas de vento.

Éter fluiu por seus poros, juntando-se mais e mais ao novo ataque coordenado da vitanti.

As esferas giraram em torno de si mesmas, produzindo sons de ar sendo laminado.

Arjuani puxou um punho para o peito enquanto empurrava a palma aberta da outra mão para a frente. As esferas ondularam e riscaram seu caminho rasgando tudo.

O mago à sua frente conjurou uma enorme muralha de ar invisível, sendo vista apenas por ela.

A primeira esfera se desfez à poucos centímetros de encostar na muralha de ar, que se condensou sobre si mesma e caiu para baixo feito uma onda de névoa e papel folha.

Aquela onda caiu sobre muitos monstros e inundou tudo à sua volta, desgovernada. O som das criaturas sibilando e gritando de pavor pôde ser ouvido ao longe.

“Este sujeito…” Pensou Juani, correndo para não ser atingida. “Ele é ainda mais poderoso do que aquele Calaher...”

Quando a névoa se dispersou, os corpos de todos aqueles que foram banhados por ela despargiam-se pelo campo de batalha, secos e sem vida.

– Pelotão zero da Unidade Fronteira! – Sua voz rugiu e rasgou os quatro ventos. – Quero todos vocês longe daqui, tentem ao máximo não deixar que outros vitanti se aproximem.

Sua ordem causou pânico e uma sensação de inquietude imediata no pelotão. Responderam em uníssono: SIM!

A névoa tornou a se concretizar, formando adagas que faiscaram ao serem arremessadas em Arjuani.

Ela ergueu um escudo de terra, gesticulando com as mãos para o lado. O escudo afundou no chão novamente.

O mago diminuiu espaço, criando uma lufada de vento e lançando-a contra a vitanti.

Arjuani desviou do golpe e diminuiu o espaço, criando lâminas de ar alinhadas em seus dedos, espécies de garras.

Pulou em cima do mago que, prontamente, ergueu um escudo de vento.

O choque entre os ataques produziu um baque surdo, empurrando ambos para trás.

O mago logo ergueu as mãos e nuvens carregadas de 10 metros se formaram sobre Arjuani; trovões e raios rimbombaram na direção dela.

Rapidamente a vitanti enfiou uma das mãos no chão e puxou a terra como se estivesse pegando um lençol. A terra se dobrou sobre ela formando um casulo de 8 metros de diâmetro.

Os trovões atingiram todo o raio abaixo, inclusive o casulo improvisado de Arjuani.

Ela não tentaria outra vez o controle de feitiço inimigo, uma vez que aquilo quase a levou ao desmaio.

Quando os raios cessaram, ela desfez o casulo e enfiou as mãos no chão.

A terra nos perímetros próximos ondulou, como uma enorme onda de lama aparente.

O mago saltou, chutando o ar e se estabilizando ali. Contudo, um braço grosso e roliço feito de lama e terra saiu do chão indo em direção do mago, que foi agarrado pelo tornozelo.

O braço trouxe o mago ao chão, enfiando-o na lama.

A terra que estava mole começou a se solidificar e o mago a afundar. Ele gritou e praguejou.

O nível de concentração de Arjuani tinha de ser máximo, já que essa era a sua primeira batalha usando tanto os poderes da razão.

Entrementes, o mago afundava mais e mais; num determinado momento, apenas sua cabeça ficou de fora e ele praguejou.

Arjuani suspirou e se ergueu, pensando que tudo havia terminado.

No entanto, a terra ao redor do mago vibrou e se explodiu de baixo para cima. Uma força invisível puxou o corpo soterrado do mago, e ele já estava preparando um feitiço.

Ele balbuciou algumas palavras e uma enorme coluna vertical com 3m de diâmetro e 9 de comprimento se formou, descendo em direção à Arjuani.

Foi tudo muito rápido, mas ela conseguiu se desviar do golpe devastador; sabendo dos riscos, formou um escudo de terra em volta do braço direito e uma lança de ar com lâmina giratória na mão esquerda.

Assim que se viu longe do feitiço lançado, o mago apareceu pairando a poucos metros.

Lançara um cone feito de vento que desceu em alta velocidade. Arjuani ergueu o escudo, ciente de que não poderia desviar.

O choque entre feitiços foi tão grande que o escudo se estilhaçou, assim como o cone. Mas o impulso do feitiço foi forte o suficiente para arremessar a vitanti para trás.

Quando finalmente conseguiu parar de deslizar, seu braço direito latejava, dormente.



Sabendo do gasto que era lutar usando tanto éter para conjurar os elementos, Arjuani decidiu se aproximar e iniciar uma luta franca.

Era provável que, do outro lado, o mago também possuísse esse déficit. Então ficou preparada para isso.

Conjurou éter puro nos punhos fechados, visando sanar a falta que suas manoplas fariam.

Lembrou-se, de repente, da suave voz do pai no momento em que lhe entregara suas primeiras luvas: Isso somente lhe dará uma melhor manipulação e controle, mas lembre-se, sua força vem daqui.

Éter transparente se formou.

Seus sentidos alarmaram para um ataque à sua esquerda, e ela girou no eixo. Fora recebida por uma série daqueles cortes inquisidores de antes.

No entanto, a força do feitiço diminuíra, notou ela, o que era um claro indicador de que o outro mago também estava ficando sem manti.

Havia uma grossa camada de névoa rodeando o lugar, impossibilitando a visão dela. Ela sabia que ele tentaria ataques à longa distância enquanto sua energia não se esvaia por inteiro. E isso a estava incomodando.

Concentrou-se no éter ambiente, nas indicações que este dava sempre que a concentração de um vitanti se intensificava.

Abriu os olhos e diminuiu espaço, preparando-se para a colisão.

Ergueu o punho direito e golpeou forte para a frente. O ar naquele lugar se dispersou, mas o mago não estava ali.

Ele se jogara para trás, um tanto irritado. Arjuani não entendeu aquela reação, então novamente diminuiu o espaço.

O mago movia-se para trás, sem precisar correr ou olhar se havia algo em seu caminho. Era como se o vento fizesse o trabalho para ele. Ele mantinha as mãos perto do peito, como se segurasse um orbe invisível, e sua feição estava mais severa que antes.

Estava conjurando algo.

Arjuani apressou-se, jogando seu corpo para frente enquanto intensificava seus sentidos.

Fechou os punhos novamente, reunindo nova quantidade de éter para lançar sobre a razão. Esperou estar um pouco mais perto e socou o ar.

O mago fora atingido pelos golpes invisíveis do feitiço de Arjuani. Cuspiu sangue e o supercilio abriu-se. Mas não perdeu a compostura. Mudou o foco e gritou:

– Fellibylur: ruptura consciente.

Instantaneamente, enormes rajadas de vento se formaram ao redor dele e cortaram caminho até Arjuani, destruindo tudo e mais um pouco.

Arjuani fora cortada em diversos pontos, mas isso não foi o mais prejudicial, e sim a lentidão que aqueles ventos lhe causaram.

O mago parou de repente, recompondo-se e, aproveitando a diminuição de Arjuani, escalou o ar e correu rapidamente até ela.

– Aqui finda-se nossa contenda, vitanti de muitas cores. – Ele sorriu, mas não com desdém. Tornou a suar mais e mais. Suas mãos mantiveram-se do mesmo modo de antes. – Admito que tu foste voraz, derrotando aquele que amiúde se gabava de suas regalias. Fora firme e, em determinado momento, vi-me na morte inescrupulosa. Mas o senhor do ar, aquele que me tem e me fortalece, permitiu que minha mana não se esvaísse por inteiro.

“Não permitirei palavras finais, pois desta fonte inesgotável de reviravoltas não bebo. Saiba que enfrentá-la foi de muita estima para mim e, por isso, digo-lhe o nome de seu ceifador: Oto Cuzco, este que vos fala, da famigerada família Cuzco dos Montes Carmim, há de decretar seu sofrimento.”

Após essas palavras, uma pequena figura geométrica se formou no centro de suas mãos, que estavam junto ao peito.

Ele se aproximou dela, ficando há poucos pés de distância.

Finalmente, uma fina camada cresceu, formando-se numa figura de dez lados e dez ângulos. Brilhou intensamente à medida que crescia e se alargava, pairando no centro das mãos do mago.

Com extrema dificuldade, ele ergueu os braços, suando muito, e apontou para a cabeça de Arjuani.

Ainda paralisada pelo ataque anterior, nem o éter reagiria a tempo do que quer que estivesse vindo.

A figura se alargou, ficando do tamanho da cabeça de uma pessoa comum, com os dez lados e dez ângulos perfeitamente iguais.

O esforço mínimo de manter aquele ataque custaria caro a Oto.

– Aluíre Mathor: Força de encantamento decagonal. Suplente deus ar, faísca do amanhecer inconsequente. Lança-te.

Após isso, a face do decágono brilhou, irradiando uma forte vibração. Oto esticou os braços para frente e um poderoso ataque fora lançado na direção de Arjuani.

Tinha o formato de dez lados e era completamente destrutivo, como uma rajada de vento e poeira. Expandiu-se com uma linha reta até ela, destruindo tudo no seu caminho, com um raio de 10 mil metros.

Houve uma explosão imensa quando o feitiço atingiu o solo, destruindo finalmente seu alvo e tudo que estivesse próximo. Foi mais ou menos um minuto e meio de pura destruição, com terra sendo pulverizada e o chão virando um caminho sem volta de cinzas.

Quando finalmente perdeu sua força e o decágono diminuiu, Oto foi lentamente pairando até o chão, completamente exaurido.

Suspirava forte, sorrindo freneticamente. Observou o raio de destruição que seu ataque fizera...

Havia uma enorme cratera por onde Aluíre Mathor passou, com mais de 90 metros de profundidade e 1880 metros de diâmetro. Execrou toda vida que havia ali.

Oto suava sangue pelo excesso de estresse que passou ao profanar aquelas palavras, que possuíam real significado para os seguidores do deus ar e, principalmente para os Cuzco dos Montes Carmim.

Aluíre Mathor era um feitiço proibido pelo homem, e foi extinguido da linhagem Cuzco quando os reinos irmãos, Algüros e Freödor, e o reino de Eskol, onde os Cuzco faziam residência, se juntaram ao Instituto com uma lei imperial sancionada.  

Mas Oto roubou esse e uma dúzia de magias proibidas, consideras profanas aos olhos dos homens.

Aluíre Mathor... uma magia única criada pelo patriarca da família Cuzco, quando o território dos homens ainda era dos reinos livres. Quando a família Cuzco era apenas uma tribo das longas terras do sul.

Este era um feitiço de grau 9, com capacidades de destruir uma nação, quiçá um continente.

Quanto menos lados e ângulos aquele feitiço detivesse, mais destrutivo seria.

Se um Aluíre Mathor de dez lados deixou aquele nível de destruição, o de cinco ou menos lados seria capaz de destruir toda a entrada da floresta... não, seria capaz de aniquilar 40% do Bulogg. A floresta era o maior ser vivo de todo aquele continente, Oto não podia esquecer.

Suas mãos tremiam, sangrando por diversos poros dela. Era matemática mágica e arcana simples.

O uso indevido de mana projetou aquele nível de destruição corporal, semelhante ao que ocorreu com Kai antes de perder seu núcleo de mana.

Oto sabia dos riscos; aquela magia era grau 9 e ele, um Arquimago de nível 1. Havia limites.

Os magos e os feitiços eram nivelados por um único motivo: evitar situações como essa. Aprender não era a parte difícil, mas usar sim. E seu corpo, no momento, não tinha forças ou mana o suficiente para manipular um feitiço tão agressivo quanto aquele.

– A garota era uma das mais fortes aqui... – escapou ele, sorrindo e suspirando. – Espero não ter exagerado muito...

– Eu também espero. – Disse uma voz grave, ao lado direito de Oto.

O mago virou-se lentamente e o que viu o deixou perplexo.

Havia um vitanti de, no mínimo, dois metros de altura. Sua pele era roxa escura; seus cabelos eram longos e sedosos da cor de amêndoa. Tinha tatuagens ao redor do pescoço, que era rodeado por um cordão com contas redondas feitas de âmbar e produzidas de pau-ferro, com um rosto gentil. Vestia um manto longo com mangas longas cor de ocre que cobriam seus braços. A parte da calça também tinha partes longas cobrindo os pés.

Pousou lentamente no chão com uma surpreendida Arjuani em seus braços.

Ao tocar no chão, colocou-a também, empertigando seus ombros.

Ele sorriu e ergueu um dos braços; a longa manga de ocre caiu, revelando um braço musculoso cheio de tatuagens maori e um outro cordão, este com contas de semente de junco e figueira.

– Se eu chegasse um pouquinho mais tarde – ele apertou os olhos e aproximou os dedos, gesticulando algo pequeno. – Talvez a futura senhora do clã Verband fosse poeira junto dessas pobres criaturas.

Arjuani olhou da cratera para o recém-chegado, estupefata.

“Como... ele conseguiu me tirar de lá sem nenhum arranhão... eu senti o feitiço queimando minha pele!” Ela tateou o rosto, em busca de feridas que não existiam.

– Droga! – Gritou Oto, exaurido. – Quem raios é você?

– Oh! Ninguém importante. Agora...

O vitanti colocou um saco de couro amarrado com uma corda dourada nas mãos de Arjuani e sumiu. Um segundo mais tarde, apareceu na frente de Oto, que permaneceu olhando para Arjuani.

Ergueu uma palma da mão à um fio de cabelo de distância do rosto de Oto e sorriu, os olhos ainda fechados.

– Parece que vocês, magos humanos, tem a perigosa tendência de gritar o nome de seus ataques antes de lançarem o feitiço. Isso tira a força deles, sabia? Mas é magnânimo, admito.

O ar ondulou entre a palma da mão do vitanti e o rosto do mago, que não teve nem tempo de olhar o que aconteceu.

Houve um pequeno papoco, uma luzinha brilhou e um tinido atingiu o ouvido de Arjuani, como se tivesse ocorrido uma explosão próxima.

– Desmembramento Secular. – Disse ele lentamente, após toda a pele de Oto ir se descolando lentamente para trás, seguido pela epiderme, derme, tecido subcutâneo e músculo. Esses tecidos ficaram boiando no vácuo atrás de Oto, tudo se desintegrando lentamente, até mesmo o sangue de seu corpo, flutuando como bolhas.

O vitanti recuou a mão e juntou os braços a frente do corpo, as mangas cobrindo-os.

60 segundos depois, tudo caiu ao chão, produzindo som algum. O restante do corpo de Oto ficou imóvel, os órgãos internos pulsando até pararem lentamente.

– Pronto! – Disse o vitanti. – Pronunciar o nome após o feitiço é bem mais interessante, não acha?

Arjuani deu um passo, boquiaberta.

O vitanti se virou para ela.

– Acho melhor comer uma dessas sementes, querida. – Ele apontou para o saco de couro. – Vejo que você recém despertou a razão, mas isso é estranho considerando os fatos de sua linhagem... bom, deixemos isso a cabo de Abwn, sim?!

Arjuani balançou lentamente a cabeça, ainda incrédula.

– Bom, deixarei que descanse um pouco, mas venha logo se juntar a nós. Senti aquele feitiço de longe e você será de enorme adição para nós, certo? Não se demore muito, e não coma mais do que uma semente. Até.

E num instante não estava mais ali.

Arjuani caiu no chão sentada, a boca ainda aberta. Encarou toda a destruição à sua frente.

Que raios tinha acabado de acontecer?!  



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