Volume 1

Capítulo 39: QUEDA DO REDIMIDO



Oren se distanciou, ofegante e suando bastante.

Estava a enfrentar um inimigo muito dificultoso. Alguém que mesmo vivo, ele não sabia se conseguiria vencer.

Enquanto vivo, Erde era calado, atencioso e muito gentil. Qualidades as quais Oren abominava.

Nunca soube lidar muito bem com a raiva dentro de si, essa era a verdade. E ver alguém que conseguia ser o seu completo oposto com tanta facilidade, o causava ares de inveja.

E ele se odiava por isso, pois Oren era o homem mais fiel ao seu povo possível. E tinha a certeza de que um vitanti não deveria ter sentimentos como inveja, medo, insegurança e coisas do tipo; era fraqueza.

No entanto, sempre que encontrava com Erde do alto clã Vildret o causava não somente inveja, mas medo de que nunca pudesse alcançar aquele nível de majestade.

E Erde, assim como Mael, era um dos mais jovens vitanti a compreender a tal razão que os anciões tanto falavam.

Em certo momento, Oren até mesmo achou que não fosse digno de estar ali; pelo fato de ser um mudanti, por ser raivoso e alguém de extrema e difícil convivência.

E Erde, mais uma vez, era tudo que ele abominava. Ele abominava a facilidade de Erde de ser um bom vitanti e abominava o sentimento que isso causava nele.

No fim, era sempre algo ruim.

Agora, de frente para ele, sabendo que este ser à sua frente não continha nada de semelhante à não ser o éter e o rosto do homem que um dia ele invejou, sentiu seu estômago borbulhar.

Não por inveja; era raiva.

Sentia raiva por não ter sido próximo de Erde, que muito provavelmente estava alheio a todos os sentimentos que este tinha para consigo.

E realmente estava.

Suspirando, Oren ergueu a lança dourada.

Era hora de parar de brincadeira.

O campo ao redor continuava do mesmo jeito: barulhento e sombrio.

Oren se impulsionou para frente, evitando uma série de feitiços lançados contra si.

Diminuiu o espaço, alcançando Erde.

Erguendo a lança acima da cabeça, Oren desceu-a com tanta velocidade que o ar sibilou.

Erde não teve tempo de reação, apenas ergueu o rosto cinza, assustado.

Mas, como se reagindo ao alarmismo, gavinha negras da sombra ondularam abaixo de Erde, colocando um mago no seu lugar um fio de cabelo de distância da lâmina da lança dourada.

A lança, mais uma vez, desceu como faca na manteiga.

Ela rasgou tecido, armadura, carne, osso... tudo.

O mago gemeu, tal e qual o outro, e pendeu para a frente assim que Oren retirou a lança e partiu em nova investida.

Aquele joguete de trocar de lugar já estava dando nos nervos do mudanti.

Isto é, ele queria acabar logo com aquilo.

Tinha plena convicção de que apenas a magia de luz de Mael poderia ser capaz de parar a magia das sombras de Erde que, com aquele manto escuro levantado sobre a floresta, ficava mais poderoso ainda.
Partiu novamente para cima de Erde. Este também veio em sua direção.

Erde brandiu sua pequena espada negra, e Oren recebeu o ataque direcionando a lâmina para a direita.

Tiveram uma troca franca de lâminas, onde, por vezes, Oren se saiu sobressalente. Mas isto era apenas uma casca, Oren sabia.

Bastava Erde tornar a usar seu poder sobre a razão que essa luta estaria acabada. Oren, por sua vez, aguentou até onde pôde.

Girou a lança acima da cabeça e desceu-a rapidamente; Erde segurou o cabo com as duas mãos e bloqueou o ataque. A força do golpe enviou-o para o lado, tropeçando.

Oren deslizou a mão pelo cabo da lança, esticando-a como uma extensão de seu braço.

A ponta da lâmina atingiu Erde no peito, que urrou e caiu para trás.

Com um repuxe do cabo, Oren virou sua extremidade e acertou o pomo traseiro no rosto do cadáver Vildret.

“Minha lança pode ser mágica, anular feitiços..., mas não teve tanto efeito contra as sombras de Erde... isso só mostra que, dentre os que compreendem a razão, aqueles de poderes raros são os mais poderosos. Não à toa que ele é de um Alto Clã... pessoas abaixo somente de uma linhagem...” pensou ele.

Erde foi jogado para o lado, sua espada caindo longe.

A fim de usar a magia contida na lança, Oren não perdeu tempo: jogou-se para frente com a lança embaixo do braço direito, a ponta direcionada para a cabeça de Erde.

No entanto, o ar ondulou e as sombras se reuniram ao redor do cadáver Vildret.

Oren sempre achou magnífico como Erde conseguia materializar a sombra em gavinhas e espinhos.

Quando novas gavinhas feitas de um material tão escuro se formaram na direção de Oren, os pelos de sua nuca eriçaram.

“Lá vem!” Sua mente gritou.

Dez gavinhas se formaram numa só, com uma ponta fina e negra como petróleo.

Ela serpenteou em direção de Oren, que ergueu o cabo da lança e fora atingido com uma força descomunal.

A força do ataque fez os braços de Oren adormecerem. Enquanto era jogado para trás, e a sombra serpenteava riscando o cabo da lança, seus músculos tremeram.

Lembrou-se imediatamente da última vez em que sentiu aquilo...

O impacto do golpe mais o serpentear insinuante da sombra, culminou na partição da lança, quebrando-a ao meio.

A sombra, desenfreada, seguiu seu rumo para frente, como se descontrolada.

Atingiu Oren bem no peito, acima do coração, assim que este aterrissou no chão, levantado poeira, capim e cuspindo sangue.

Fora empalado pela sombra no chão e soltou um urro alto.

Quando a poeira baixou e os sons ao redor ficaram inaudíveis, a gavinha negra perdeu sua cor e foi voltando ao chão até sumir.

Pontinhos pularam na frente dos olhos de Oren, seu peito ardeu e sua respiração ficou pesada.

Xingou mentalmente, enquanto éter se reunia ao redor da ferida para estanca-la, pelo menos.

Sentou, ciente que não havia tempo a perder.

Olhou para o chão ao lado, sua lança partida ao meio. Não tinha tempo de lamentar, sabia.

Levantou, tirou a poeira das vestes e correu, decidido a acabar com aquilo.

Enquanto o éter agia lentamente ao redor de sua ferida, e ele sabia que estava se esforçando demais, ignorou os pensamentos alarmistas e conjurou pequenas quantidades de éter nas mãos.

Uma energia incolor se formou, parecendo luvas de gel.

Correndo e ouvindo o som de seus irmãos morrendo, Oren estava alheio ao que acontecia à sua frente, uma vez que nova onda de raiva se apossava de seu peito.

Um caranguejo se precipitou para cima dele, sentindo a fraqueza vinda dali. O sangue deveria ser como chamariz.

– Não pensem que são páreos, escória. – Bradou ele, segurando a criatura pela garganta conforme dava passos largos na direção de Erde.

A criatura se debateu, buscando arranhar a mão nua do mudanti, que nem se incomodou com aquilo. Parecia, na verdade, preocupado com outra coisa.

Com um estalo do punho fechando, quebrou o pescoço do caranguejo e continuou seu caminhou.

Finalmente chegou onde havia derrubado Erde.

Parou no meio do campo de batalha, olhando nas várias direções possíveis. Nem sinal do cadáver.

– Droga! – Xingou.

Virou o rosto para a esquerda e seu tempo de reação foi menor ainda do que o de Erde antes: só teve tempo de erguer o braço direito.

Éter, no entanto, não foi tão rápido para cobrir-lhe a região do antebraço.

Uma enorme espada negra desceu, arrancando seu braço direito.  

Sangue jorrou do corte, fazendo-o diminuir o espaço.


***


Mael urrou.

Aquela batalha estava se demorando demais. Dedos-de-mel era um péssimo adversário.

– Devia saber, Dedos-de-mel – disse Mael. – Que numa luta franca, oponentes não costumam trocar tanto diálogo.

O vitanti se aproximou e desferiu um forte golpe na costela do gorila, que cambaleou.

Após guinchar, este franziu a testa.

– E daí? Papai me disse que quanto mais eu o atrasasse e o fizesse se cansar, melhores resultados teríamos.

Mael sorriu com a sinceridade ingênua do gorila.

– Seu pai disse isso? Me admira que ele tenha pensado em algo tão inteligente. Mas já era de se esperar.

– Ora seu! – Berrou o gorila, agitando os braços e pulando na direção de Mael.

O vitanti rolou para o lado, éter se formando nos punhos.

“Essa luta está chata e não tem propósito algum que não me atrasar... preciso descobrir a razão disto antes de acabar com tudo aqui. Parece que o jovem gorila tem certa resistência, então vou usar mais força que o normal.”

A verdade é que Mael não queria matar Dedos-de-mel. Ele tinha certeza que sangue não se pagava com sangue. Isso era algo que vinha há muito refletindo.

Apesar de ter enfrentado e matado centopeias e caranguejos, espécies de parasitas do Bulogg, estava tentando evitar uma matança generalizada.

Seu pai sempre lhe disse que a melhor forma de acabar com um embate de anos era dialogando; o uso da força só deveria ser requerido em caso de última opção.

Enquanto o gorila esticava os braços para lhe pegar e ele, Mael, deslizava entre as brechas dadas pelo jovem peludo, éter se formava em suas mãos.

Identificou uma série de aberturas que, numa luta mais complicada, teriam sido bem vindas. Mas este não era o ponto aqui.

Sem acertar o punho em Dedos-de-mel, Mael tocou com seus dedos e éter em lugares ao longo dos braços do jovem gorila.

“Aquele livro sobre chi veio a calhar, finalmente...” pensou, sorrindo.

Após isso, Dedos-de-mel caiu sobre os joelhos, molenga.

– Que... é... que... fez... comigo... violeta...? – resmungou, baba caindo.

Mael sorriu e suspirou, feliz por não ter que gastar seu estoque de éter com magias desnecessárias.

Em tese e prática, o uso de éter era menos gasto se usado de modo direto, ou seja, quando era o éter puro usado como força de combate.

Quando ele era direcionado para o uso da razão, esgotava-se mais facilmente e, pessoas com um curto estoque de éter cansavam-se mais rapidamente.

É claro, usar éter ambiente era uma das práticas constantes de guerreiros vitanti; eles aprendiam isso desde a infância. Mas não significava que era rápido e fácil. Principalmente tentar se alimentar de éter do ambiente durante uma luta.

Sem a devida concentração, muitos chegavam a colapsar. Mael, por mais que tivesse habilidades extraclasse e fosse conhecido como um querido pelo éter, não estava isento disso.

Suspirou mais uma vez, caminhando até Dedos-de-mel.

Mesmo de joelhos e arfando muito, o gorila era um pouco maior que Mael.

O vitanti se aproximou, a carranca se fechando.

– Quais os planos de seu pai?

Dedos-de-mel olhou para o além, como se visualizando algo.

– Responda-me... violeta... – balbuciou outra vez o gorila.

Mael, sem paciência, pousou sua mão direita no ombro do gorila e iniciou certa pressão junto ao polegar.

Dedos-de-mel arregalou os olhos, suas narinas dilatando e baba escorrendo.

– Eu conheço a anatomia dos gorilas, Dedos-de-mel. Ela quase não difere muito da dos vitanti; derivamos de um ancestral em comum, afinal. Aqui, onde aperto, é conhecido como ponto de pressão. Se pressionado sozinho, é capaz de gerar grande alivio corporal... – Mael se aproximou, um sorriso de canto.

“Acontece que este não é o caso...” – continuou, com Dedos-de-mel transpirando e suando frio. “Antes, ativei pontos de pressão ao longo dos seus braços, que impossibilitaram seus movimentos... e esses pontos tem como ponto de partida e ramificação bem onde pressiono, jovem gorila.”

Ele aumentou a pressão do polegar.

“Isso está inibindo não só seus movimentos, mas como o fluxo sanguíneo das veias que bombeiam seu coração. Suas narinas dilatam, pois buscam inalar uma quantidade maior de ar, pois não está sendo o suficiente para inflar seus pulmões. Logo, você sentirá mais do que dormência... seu sangue começará a criar pequenas bolhas; isso se chama de processo de coagulação. Você sabe o que acontece quando seu sangue coagula, Dedos-de-mel?”

Assustado, o gorila arregalou mais ainda seus olhos e meneou a cabeça lentamente.

– Então diga os seus planos!

Mael liberou um pouco da pressão. Dedos-de-mel respirou.

– Meu... pai... e o tal... xamã... têm um acordo...

– Isso eu sei. – Disse Mael, franzindo a testa. – Quero saber o que eles querem aqui. Por que meu pai?

– Meu pai... não sabe..., mas... ele supõe... que seja... algo grande...

Droga. Xingou Mael mentalmente.



***


Após nocautear Dedos-de-mel depois de não descobrir nada, Mael correu de volta para a luta contra Erde, um quê de frustração crescendo em seu peito.

Fora em vão lutar contra o gorila. Primeiro que ele não foi um oponente que chegasse à altura – modéstia parte. Segundo que perdeu tempo valioso; poderia estar lutando contra Erde agora.

Enquanto corria, buscou renovar suas forças. As criaturas ao redor sequer notaram sua presença. Ele era tão veloz quanto um lince.

Por um instante, seu éter alarmou seus sentidos, indicando que ficasse alerta para um possível inimigo.

Um segundo após isso, tudo ficou silencioso.

Ouviu-se uma enorme explosão logo à frente, seguido por gritos e ondas de éter vazando.

Mael adiantou-se e logo chegou ao local.

Haviam vitanti caídos e outros sendo arremessados em longas distâncias.

No centro do caos, três vitanti tinham seus corpos perfurados por gavinhas enormes e negras.

Logo ali perto, as gavinhas se originavam da sombra de um Erde completamente ensandecido.

De frente para ele, Oren estava sem um braço, totalmente ensanguentado.

O corpo pendia um pouco para a frente, mas continuava de pé.

Como se percebendo a presença de Mael, virou a cabeça para o amigo.

Havia um grande buraco na parte da têmpora.

Mael arregalou os olhos, assustado.

Como ele ainda está vivo?! pensou.

Oren sorriu, fechou os olhos e balbuciou algo.

Erde segurou o cabo de sua longa espada com as duas mãos e espetou-a no peito de Oren.

Das costas, enormes gavinhas negras se projetaram, como galhos de uma enorme árvore.

Erde ergueu o corpo de Oren com sua espada e as gavinhas recuaram. Deslizou-o pela lâmina, e o corpo do mudanti caiu, sem vida.

Mael encarou a cena com descrença e aflição.



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