Volume 1

Capítulo 32: OUTRA VIDA




Desperte...

Kai piscou várias vezes, aturdido.

Olhou ao redor e notou uma algazarra e risadas soando ao fundo.

Sua audição foi levemente escapando do infinito zumbido que o pegava de assalto a todo momento.

Encarando melhor a situação, respirou fundo.

Estava sentado em uma arquibancada elevada e semicircular.

Abaixo havia uma arena, ao qual estava repleta de jovens filhos de figuras importantes da cidade.  

Aquele era o local onde todos esses jovens aspirantes treinavam, onde os futuros recrutas bem como futuros magos se desenvolviam.

Haviam várias pequenas arenas ao redor, onde embates aconteciam aqui e ali, sempre com um Mentor administrando as chamadas partidas.

Também era um lugar usado pelos novos recrutas do Batalhão da cidade.

Particularmente, Kai fora uma criança cujo sempre teve os melhores mentores e professores de Neve Sempiterna, muito por causa da posição que ocupava.

Mas nunca deixou de ir à arena, mesmo que olhos julgadores o fitassem com certo ódio.

Ele encarou uma arena próxima, onde um punhado de gente se reunia ali.

O clima se dividia entre pessoas com rostos assustados e risadas irritantes.

Dois sujeitos se encaravam no ringue, no qual um deles era o motivo de constante risada por boa parte dos telespectadores.

Este era um dos jovens recrutas do batalhão Dito, recém integrado.

Kai sabia disso pois ele usava um conjunto de roupas apertado e um símbolo de duas espadas se cruzando com uma lança ao fundo no lado esquerdo do peito.

Aquela era uma situação inusitada, visto que acadêmicos e recrutas não podiam, jamais e em hipótese alguma, duelar entre si.

Isto era um grave delito da constituição estatal.

Mas ao olhar para o outro sujeito, tudo fez sentido.

Ruffael Murphy era o seu oponente.

Ele ria feito uma gazela, apesar de ser bastante atraente.

Seus cabelos curtos e cor de fogo eram uma clara lembrança ao seu avô, Enguerrand Murphy, que morrera nas incursões do gelo, nas Geleiras.

Seus seguidores eram compostos pelo primo, Jim Lei e outro punhado de gente no qual Kai não tinha o menor apreço.

Ele bufou. Sabia bem que as leis poderiam se curvar perante alguém tão importante.

Ruff se adiantou, com aquela gargalhada que fazia Kai querer vomitar, e ergueu um punho.

O recruta, que estava claramente rendido, mal conseguia respirar, enquanto arfava fortemente ao chão.

Ruff desceu o punho e acertou-o bem no rosto. Então mais gargalhadas se fizeram ouvir.

Kai olhou ao redor, para ver se algum mentor iria se opor.

Mas aqueles mais próximos eram Mentores que seguiam abertamente Enoryt Murphy, então não fariam vista grossa para qualquer delito por parte de seus filhos.

Sem contar que um recruta, que deveria ser a parte mais baixa da casta de guerreiros da cidade, estar perdendo para um simples acadêmico que não tinha nem tirado sua licença mágica ainda... era patético.

Ele desviou o olhar para mais longe, em busca de um Mentor mais experiente, mas todos que viu estavam absortos em treinar a jovem Ardara Murphy.

Ele a encarou por um pouco de tempo.

Ela tinha os cabelos de fogo presos em coque, enquanto que fios caiam a frente de seu rosto. Suava um pouco, com sua bochecha levemente vermelha.

Kai sempre se perdera na beleza de sua prima.

Mas logo notou um par de olhos o encarando, que o deixou incomodado.

Há pouca distância daquele ringue, Gunter Dito mantinha uma expressão fria e cautelosa, com o par de olhos negros e caídos o encarando.

Kai sempre o achou um tanto bobo, alguém que não valia a pena dialogar. Mas tinha de admitir que o sujeito tinha culhões.

Então ele voltou sua atenção para o ringue outra vez.

TSK! – Ruff bufou, em desdém. – É só isso que um recruta tem? É isso que aquele inútil do Clay Dito tem feito, admitindo essa escória? Você não serviu nem para me fazer soar, inútil.

E cuspiu no chão, com seguidas gargalhadas de seus seguidores.

Havia certa verdade no que o sujeito disse. Depender de pessoas mais fracas que acadêmicos para defender Neve Sempiterna era um pouco decadente.

Ele como o futuro líder da cidade sabia que isso poderia ser um problema a longo prazo.

Mas também sabia que nem todo mundo tinha acesso ao mais alto nível de estudo, com muitos dos recrutas nunca tendo pisado em academias.

Olhando para o sujeito caído, ele não deveria ter mais do que 25 anos.

Era velho, mesmo para um recruta. Essa deve ter sido sua última tentativa de fazer dinheiro, mesmo que o salário de um recruta não fosse tão alto assim.

Deveria ser um civil até pouco tempo atrás.

No entanto, Kai não conseguiu deixar de ignorar o tom arrogante do primo. Ele sempre teve nojo de gente assim.

Então se levantou e caminhou calmamente pulando de arquibancada em arquibancada.

Quando finalmente pousou no térreo, respirou fundo.

Algumas pessoas mais atrás o encararam, medo estampado em seus rostos. Ele os ignorou.

– Veja... É o Jovem Lorde...

– Ele é tão franzino, nem parece que derrotou lorde Bron...

GULP!

– Se eu não estivesse lá, diria que era mentira.

Alguns sussurros soaram, mas foram poucos.

Entrementes, Kai parou de frente para uma parede cujo várias armas estavam dispostas.

Ele olhou atentamente e pegou uma espada de cabo curto e lâmina achatada. Moveu-a rapidamente, deixando mana vazar aos poucos por ela.

Tinha um bom equilíbrio.

Ele caminhou lentamente por entre aqueles que observavam tudo estarrecidos.

Havia um silêncio absoluto.

Entrementes, os Mentores próximos ameaçaram se mover, mas vendo quem andava lentamente, decidiram apenas observar.

Kai finalmente parou na borda do ringue elevado, encarando o sujeito que cuspia um punhado de sangue no chão.

Ele fora severamente humilhado.

Enquanto Ruff e seu bando ria compulsivamente, um deles notou o silêncio repentino e encarou Kai, suor começava a descer por sua testa.

Ele engoliu seco e tremeu levemente.

– J-jovem L-lorde... de-deseja alguma coisa?

Indagou, temeroso.

Ruff franziu a testa e se virou.

Ao encarar o rosto inexpressivo de seu primo, suor frio desceu por sua espinha.

– Primo! – Disse após algum tempo, com um falso sorriso. – Deseja usar esse ringue, é? Lamento, mas eu e meus amigos estamos usando-o por agora, será que não poderia escolher outro? Sabe... estamos colocando o lixo no lixo.

E deu uma enorme gargalhada. Seus seguidores riram também, mas um tanto pesarosos.

Eles conheciam o pavio curto de Kai Murphy.

– Na verdade – Kai pôs um pé na arena. Alguns tremeram com essa ação. – Eu acho que vou usar a arena agora, Ruffael.

Ele deu um sorriso irônico. Sabia que o sujeito odiava ser chamado pelo nome inteiro.

Jim se precipitou e pegou no braço de Ruff.

– Vamos, Ruff, já estamos aqui há um tempo.

Ruffael franziu a testa e deu uma breve olhada para seu primo, então olhou para o próprio braço e puxou-o. Logo tornou a encarar Kai.

– Será que não pode procurar um outro lugar? Sabe, estamos aqui há um tempo.

Fazendo ouvidos de mercador, Kai rodopiou o braço que usava a espada e estalou o pescoço. Então suspirou firme e, depois de um longo tempo, olhou para seu primo, como se ele não tivesse dito nada.

– Ainda está aqui é? – Ele franziu a testa. – Saiba que não sou como esses capachos do seu pai que fazem vista grossa para tudo... eu sou um pouco estressado.

Ao ouvir isso, aqueles que encaravam a cena se desenrolar tremeram de medo. Todos sabiam dos rumores que permeavam o Jovem Lorde.

Agressivo, descontrolado, cruel... dentre outros pronomes.

– Que é? Só porque ganhou do meu irmão pensa que é o mais forte da cidade? Saiba que você só venceu porque ele quis... se fosse eu...

Kai ergueu uma sobrancelha, mana vazando.

– Você é arrogante ao ponto de se comparar ao seu irmão, é? Engula suas palavras antes que eu mesmo as faça por você.

O clima esfriou levemente, a espada nas mãos de Kai zunindo.

Todos puderam ver a mana que vazava do corpo do jovem rapaz. E ela lentamente envolvia Ruff, fazendo-o tremer aos poucos.

– Dá o fora. – Kai disse, após encarar Ruff nos olhos.

Jim se aproximou lentamente e tocou no ombro do sujeito ruivo.

– Vamos, primo, não vale a pena.

O sujeito estava prestes a ir embora, mas resolveu voltar.

– Sabe, eu queria saber se você é isso tudo mesmo. Vamos lá, uma luta entre você e eu... pode até ser que eu me torne o novo prodígio de Neve Sempiterna.

Kai ergueu uma sobrancelha e soltou uma grave gargalhada.

Ele riu por um tempo considerável; todos encararam aquilo como descontrole.

Por fim, Kai enxugou uma lágrima e suspirou fundo.

– Você? Você só é prodígio em falar merda.

Os ânimos entraram em atrito.

Praguejando, Jim recuou gritando para quem estivesse perto também o fizesse.

Ruff ergueu uma mão e uma espada veio voando da parede, então pousou na sua mão.

Era sabido que magias não podiam ser usadas ali, no entanto, tanto Kai quanto Ruff ignoravam tudo sobre as leis.

O ruivo ergueu a espada e desceu-a verticalmente, visando a cabeça de Kai.

Este deu dois passos para trás, como se o movimento fosse muito previsível.

Então se aproximou do recruta caído e num movimento rápido, o jogou para fora do ringue.

Logo apertou o cabo da espada, mas recuou sua mana de volta. Não iria infringir mais uma lei, não agora que fora publicamente anunciado como sucessor de Neve Sempiterna.

Ele apenas devolveria a humilhação que o outro recebeu antes.

Ao diminuir o espaço, encarou Ruff de frente.

Fora do ringue, alguns mentores se aproximaram, tinham notado o vazamento de mana vindo dos dois sujeitos.

– Que está acontecendo aqui? – Indagou um dos mais antigos mentores, aquele que treinava Ardara.

Jim olhou em direção ao homem, cautela estampada no rosto.

Ardara que estava ao lado e com um rosto preocupado, encarou seu primo.

– Responda. – Disse, severamente.

Depois de explicar a situação, Jim suspirou.

– Esse idiota...

Ardara deixou escapar, mas ninguém pode dizer a quem ela se referia. Sua expressão era indecifrável.

Gunter fez menção de interferir, mas a garota não permitiu.

Entrementes, o combate fazia cada pessoa suspirar de medo.

Cada investida de Kai era contida de uma força sobre-humana, que impulsionava Ruff para trás mais e mais.

TING! BANG! TING!

O encontro de espadas soltava fagulhas e zoadas que preenchiam toda a arena.

Logo alguns guardas permeavam o local, absortos nos movimentos do Jovem Lorde.

– Esse nível de destreza... – Um mentor disse, fazendo a atenção de alguns acadêmicos o encararem. – É quase como se...

– É como se o Jovem Lorde fosse uma fonte infinita de poder... – disse um guarda, num tom orgulhoso. – Como se na luta contra Bron, ele sequer tivesse dado tudo de si.

Todos se alarmaram com tal alegação. Se isso fosse verdade, qual seria o limite dos poderes do Jovem Lorde?

No ringue, cada golpe da espada de Kai era como se direcionasse os movimentos de Ruff, fazendo-o tomar um rumo para onde exatamente ele queria.

E isso apenas usando um braço.

Uma expressão de calma e tédio preenchia o rosto de Kai.

Já Ruff, estava completamente encharcado de suor.

Kai apertou o cabo da espada e sorriu, investindo mais pesadamente em Ruff.

Ele avançou com a espada em horizontal.

Pronto para receber o golpe na lateral, Ruff não viu que era uma finta.

Kai ergueu a perna esquerda e acertou a costela do seu primo com toda força. Este urrou e arqueou.

Então numa ação considerada errada, Kai soltou a espada e ergueu o joelho esquerdo, agarrando firmemente o cabelo de seu primo pela nuca.

Ouviu-se um forte baque e o som de ossos se quebrando quando o golpe acertou em cheio.

Kai soltou Ruff, que cambaleou para trás, o rosto inchado e o nariz quebrado.

Sangue vazava por seu nariz e boca. Ele soltou a espada e caiu no chão de bunda, molenga.

Sorrindo, Kai caminhou até o sujeito e o pegou pela gola com a mão esquerda.

Então desferiu vários golpes em seu rosto. Sua mão logo ficou encharcada com sangue e seu rosto cheio de suor.

– Acha que pode ser arrogante a vida toda, é? Arrogância precede a queda, seu imbecil.

BAQUE! BAQUE!

– Ser o prodígio de Neve Sempiterna? Você não é mais forte nem que uma velha com artrose, seu inútil.

BAQUE! BAQUE!

Quando Kai estava para dar mais um soco, seu braço foi segurado firme.

Ele soltou Ruff e ergueu o rosto, a testa franzida.

Deu de cara com Gunter o apertando firme enquanto a outra mão agarrava o cabo da espada, ameaçando puxá-la.

– Hã? Vai me ameaçar, é, cãozinho?

Gunter franziu a testa, tentando puxar o braço de Kai para si.

Que força é essa? Esse sujeito não deveria ser um mago?

Para ele, as alegações da força monstruosa de Kai eram apenas mentiras. Vendo de perto, ele provou a veracidade dos fatos.

– Que é? Vai erguer sua espada contra mim? Acho que seu pai não ficaria feliz em enterrar mais um membro de sua família.

Neste momento, veias saltaram da testa do sujeito. Ele só tinha se contido até ali por causa de seu pai e de Ardara Murphy, mas vendo a repentina onda de provocação, estava prestes a explodir.

– Se me desacatar mais uma vez, prometo que não será apenas um braço a ficar inválido.

Mana vazou do homem, indo em direção de Kai.

Este apenas franziu a testa, entediado.

– Estou apenas educando meu primo, seu guarda.

Kai sorriu, irônico.

– Solte-o já, Gunter.

Uma voz doce e firme soou.

Quando olharam para trás, Ardara vinha a passos largos em sua direção.

Estava brava.

– Mas srta...

Ardara passou por seu irmão inconsciente e andou até Kai, que foi solto pelo outro sujeito.

O que ela fez surpreendeu a todos.

Deu-lhe uma tapa firme no rosto, fazendo um silêncio perturbador e constrangedor se prolongar pelo local.

Kai franziu o rosto ao sentir o golpe. Aquilo o pegou desprevenido.

– Quem você pensa que é? – Ela disse, claramente irritada. – Pagando arrogância com arrogância... Não seja você um arrogante.

Aquelas palavras deixaram todos estupefatos. Poucas pessoas tinham a capacidade de deixar Kai Murphy sem palavras.

Esperando que outra batalha estourasse, os guardas ficaram a postos.

Mas a atitude de Kai é que deixou todos estupefatos. Conhecido por ter pavio curto, o rapaz nunca levava desaforo pra casa.

Ele, no entanto, sorriu.

– Ora, meu amor, isso são modos de tratar seu futuro esposo? Deixe que cuidemos desses assuntos naquele lugar, meu bem. – Disse, irônico.

O rosto de Ardara ruborizou e ela ergueu a mão mais uma vez; todos sabiam que eles não tinham se casado ainda. Que pensariam ao ouvir isso? Que eles tinham encontros secretos?

Mas para a surpresa dela, o novo tapa nunca foi dado. Isto porque Kai agarrou firmemente seu pulso e a trouxe para perto.

– Há limites para minha paciência, Ardara. Não abuse dela.

A menina tremeu ao ouvir isso. Ambos se encararam por uma fração de segundos, até que ela puxou o braço severamente e se virou para ir embora, os longos cabelos batendo no rosto do rapaz.

Ele olhou para Gunter e estalou a língua, como se chamasse um cachorro. O sujeito bufou e saiu andando atrás da jovem dama.

Kai massageou a bochecha do tapa e sorriu.

– Nossa primeira briga de casal, hã? – Disse baixinho.



***

Kai piscou firme. Tinha perdido a noção de tempo.

Havia um zumbido chato no seu ouvido; não conseguia se livrar daquilo por nada.

Ele olhou ao redor, piscando firme.

Estava sentado numa poltrona de veludo repleta de ornamentos dourados e verdes.

O lugar em que se encontrava era um repleto de coisas, abafado e pequeno; estava cheio de tecidos pendurados e fios entrelaçados uns nos outros.

Havia um senhor em pé de frente para um espelho, segurando vestes negras cerimoniais. Ele piscou com seus olhinhos por trás dos óculos de aro redondo.

Parado ao lado do velho estava Ómra, com cara de bobo.

– Vamos, cara, acorda pra vida. Que é que você estava pensando aí?

Kai piscou, como se há um segundo estivesse em outro lugar..., mas não parecia certo. Não era correto.

Ele balançou a cabeça, expulsando esses pensamentos de vez.

Ao erguer um olhar de dúvida, pegou um copo que estava pousado ao seu lado e bebericou. Fez careta quando notou que era apenas água.

– Tem hidromel aqui? Ou cerveja? Ou alguma coisa com álcool?

O velho o encarou, medroso. Depois olhou para Ómra, que deu de ombros.

– Mas eu acabei de lhe oferecer, o senhor disse que preferia apenas água.

Kai encarou o copo e depois o escudeiro. Suspirou fundo e massageou a testa.

– Eu mudei de ideia, vá buscar uma garrafa de algo contendo álcool.

O velho colocou a roupa delicadamente num divã próximo e saiu resmungando e caxingando.

Ómra encarou enquanto o velho saia e se virou para Kai.

– Que é que está acontecendo? É o negócio do Helder Mader ainda? Cara, já fazem seis meses, vê se supera. Lorde Jona e lorde Drico já assumiram a frente disso, a cobra venenosa também... você deve focar em outras coisas. Daqui uma semana é o grande dia e você nem sequer escolheu sua roupa, cara.

Kai ergueu um rosto confuso.

– Já sei, é medo, não é? Eu também teria se fosse me casar com a dama de ferro... me desculpe chefe, eu sei que é sua prima...

– De segundo grau. – Kai disse, respirando fundo.

– Como é que é? – Perguntou Ómra, piscando.

– Ardara não é minha prima, seu pai é que é. Ela é apenas minha prima de segundo grau.

Ómra pigarreou.

– E que diferença isso faz? Cara... eu daria tudo para casar com essa beldade... com todo respeito, chefe.

Entrementes, o velho voltou segurando duas garrafas transparentes. Uma continha um líquido amarelo e outra continha um líquido âmbar, com lascas de algo flutuando.

– Essa aqui é uma cerveja amarga de Tartessos. – Ele ergueu a outra garrafa. – Este aqui é um uísque envelhecido das Penínsulas de Lima. Sabe, tenho grande apreço por este, já que meu avô o conquistou na batalha de Freödor em Axtonville, há noven-...
 
– Só me entregue esse uísque logo. – Disse Kai, rude.

O velho se precipitou, alarmado. Entregou a garrafa ao rapaz.

A cabeça de Kai ia explodir, ele se sentia confuso. Tomou a garrafa da mão do velho e tirou a rolha que a tampava.

Quando o fez, um cheiro forte subiu, mas ele ignorou.

Virou a garrafa e começou a bebe-la, sem dó nem piedade.

– Vai com calma, chefe...

Disse Ómra, cauteloso.

Enquanto Kai virava a garrafa quase toda, ele abriu os olhos e viu uma silhueta detrás dos dois.

Ele franziu o cenho. Mas ignorou completamente.



***


O vento uivou. Uma leve geada permeou o chão e o peitoral do muro.

Kai piscou os olhos, sua cabeça doía muito.

– Penso que poderia ter sido menos rude... quer que todos achem que você é assim, um arrogante?

Ele olhou para o lado e franziu a testa. Parada ao lado, Ardara Murphy encarava a floresta a frente.

Sua pele branca estava levemente ruborizada, por causa do frio. Mas não deixava de estar linda.

Ela estava falando sobre a ocasião com Ruff.

– Não vejo diferença.

Ardara se virou para ele, brava.

– Pois eu vejo. – Disse, irritada. Isso não surpreendeu a Kai. – Há de se tornar o Lorde de Neve Sempiterna, quer que as pessoas tenham pouca empatia por você? Quer ser pra sempre conhecido com falsas alcunhas? Isso não poderia ser menos humilhante.

Ele bufou, se sentindo engraçado.

– Está preocupada com o que as pessoas hão de pensar sobre mim, ou o que elas poderão pensar sobre você, como sendo a esposa do destemperado e destrambelhado Kai Murphy.

Ardara se virou para ele, ofendida. Ela se aproximou, a sobrancelha franzida, fazendo uma espécie de beicinho.

Algo em Kai ferveu compulsivamente.

– Não poderia estar mais enganado, seu estulto. Pensa que sou tão frívola... insípida?

Kai franziu a testa. Que raios de insultos eram esses?

– Estou aqui preocupada com o que podem achar de você, e tudo o que faz é achar tempo para me chamar de interesseira e conveniente. Me poupe, Kai Murphy. Você acha que...

O rapaz interrompeu o falatório de Ardara dando um passo a frente e puxando-a pela sua cintura.

Ao trazê-la para si, deu-lhe um doce beijo que durou por segundos.

Quando se soltaram, ele tinha uma expressão encantada e ela, alarmada.

Fora completamente desarmada, não teve reação alguma.

Seu rosto ruborizou e, dando um passo à frente, ela deu novo tapa no rosto de Kai.

Então saiu bufando e soltando xingamentos.

– Acho que desta vez eu fiz por merecer... – Disse Kai, massageando o rosto estapeado e com um largo sorriso bobo.

Ele tocou os lábios com a ponta dos dedos e encarou a jovem indo embora, deixando rastros fundos pela neve.

Então por um momento ele sentiu algo estranho, como se estivesse sendo observado, e encarou a floresta abaixo.

Era como se um par de olhos o espreitasse...

Ele ouviu um sussurro que o fez arrepiar até o último fio de cabelo.

Desperte...



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