Volume 1
Capítulo 31: O CARRASCO
EEEE!
Sons de copos se chocando e de gritaria se fizeram ouvir no salão do Castelo Negro.
Muitos homens bebiam e se envolviam com mulheres enquanto altas chamas crepitavam numa enorme lareira e sons de flauta e bardos cantavam poesias sobre o longo inverno.
Nas paredes de concreto e pedra bruta, archotes despargiam a cada dois metros, com flamulas penduradas com o enorme símbolo da casa Murphy, um dos Dez Grandes.
Ao longo de muitas mesas, a gritaria e conversa era a mesma: a vitória surpreendente de Kai Murphy sobre seu primo, Bron.
Havia uma enorme mesa que circundava o lugar, cujo dava espaço para somente a família Murphy e seus próximos sentarem.
No ponto mais importante, logo no meio, estava Siobhan Murphy, o Lobo Ruivo do Norte.
À sua direita estava Jona Dito, o senhor da casa Dito. Ele era grande, de cabelo ralo e de pele parda. Tinha uma enorme cicatriz no lado esquerdo do rosto. Era muito amigo de Siobhan, além de seu segundo em comando.
Logo após ele, estava a sobrinha de Siobhan, Hayle Lei. A mulher era radiante, uma verdadeira Murphy em beleza: olhos verdes gentis e encantadores. Cabelos vermelhos como o pôr do Sol, e uma pele macia estonteando sua beleza.
Ao seu lado estava seu filho, Jim. O rapaz era a cara de seu pai, exceto pelos enormes olhos verdes e gentis. Mas, de gentil o garoto não tinha nada.
Logo após ele estava seu pai, Bimos Lei, com sua enorme careca e uma cicatriz em forma de X riscando-a. Em seguida estava a onça de olhos astutos: o Touro Negro, Enoryt Murphy.
Ao seu lado estava Eileen Murphy, com olhos negros e cabelos castanhos como amêndoa. Em seguida estava o pequeno Mairon Murphy, que era a cara do pai. Logo depois Ruffael Murphy, o invejoso que mais lembrava em aparência o antigo lorde de Neve Sempiterna, Enguerrand Murphy.
Finalmente veio Bron Murphy. Ele tinha uma caricatura indecifrável, exceto que um enorme pano lhe cobria parte do rosto. Parecia descaído.
Finalmente, mas não menos importante: Ardara Murphy.
Esta não precisava ter esforços medidos quanto a sua beleza. Era linda como sua tia, Hayle. No entanto, seus olhos eram frios e gelados, sem emoção alguma. Era incapaz de olhar para qualquer um que não fosse o teto ou o Lorde de Neve Sempiterna.
Logo depois dela estavam mais dois senhores cujas casas eram subordinadas dos Murphy: Magnus Ogurry, com seu enorme rosto de cavalo e Fiona Gook, que detinha uma beleza estonteante. Mas nada igualado às beldades Murphy.
Na esquerda de Siobhan, estava seu chefe de finanças, Helder Mader.
O homem estava se debruçando sobre uma coxa de porco.
Depois de Helder vieram alguns dos senhores de casas subordinadas: Lucio Fal, o senhor Firmo, Mostus, Fellner, Glory, Moraes e Guntry.
E, no final da mesa, Kai apenas observava todos comendo e rindo.
Siobhan e Jona conversavam relaxados. Kai observou Clay Dito, o guarda costas do lorde e filho de seu braço direito, parado logo atrás.
Imediatamente seu olhar foi até Gunter Dito, o filho mais novo de Jona. Ele era guarda costas privado de Ardara Murphy.
Olhando melhor, quase todos tinham um guarda costas privado, exceto ele, que decidiu por ter apenas um escudeiro. Seu melhor amigo, Ómra Eldrass.
Ele encarou por um minuto Ardara Murphy, e notou que Gunter o encarava de volta. O sujeito nunca gostou muito dele.
Mas isso não fazia sentido, ele pensava em Gunter como... amigo.
O pensamento o fez sorrir e ele bebeu um gole de seu hidromel.
– Do que é que o Jovem Lorde acha graça, se não for muito inconveniente...
Kai olhou para o lado e Maneta Guntry o encarava.
O homem tinha cerca de 55 anos, era esbelto e tinha um cabelo ralo e grisalho. Tinha uma barba rala e grandes olheiras despontavam seu rosto.
Mas era um dos poucos, salvo Lucio Fal e Drico Fellner, cujo Kai gostava de manter uma boa conversa.
– Não se acanhe, lorde Guntry, sabe que perguntas me são sempre bem vindas. – Kai encarou o homem. – Lembrei-me apenas de uma piada.
Maneta suprimiu uma risada e limpou o canto da boca com um paninho.
– Entendo..., mas peço que não seja tão formal comigo, Jovem Lorde. Assim você eleva demais minha estima. O senhor sabe que não sou lorde, apenas um bom subordinado de sua casa. Por favor, chame-me apenas de senhor ou, se preferir, Maneta.
– Pois eu discordo, Lorde Guntry.
O homem ficou surpreso. Ele bebericou de seu vinho e olhou para Kai com curiosidade.
– Sim, pois para mim, cada um de vocês aqui é um lorde. Por que deveríamos nos tratar de maneira diferente que não essa? Não fosse por vocês, senhores de casas subordinadas, Neve Sempiterna não se manteria no topo do comércio de comida e armamento em Algüros. Lembre-se, nada é construído sozinho, lorde Guntry.
Maneta reprimiu uma risada.
– Decerto..., mas me envergonha ser chamado por tal título, Jovem Lorde. É um nome que deve ser apenas destinado aqueles de maiores grandezas, como o senhor.
Kai franziu a testa.
– E o senhor não é nobre, lorde Guntry? Não lida com tantos assuntos quanto o próprio Lorde de Neve Sempiterna? Não detém terras assim como nós? Não nos é de grande valia tanto quanto somos para o rei e o reino? Há certa nobreza aí, lorde Guntry, não se engane.
– Mas nos comparar à uma das Dez Grandes? – Maneta quase se engasgou. – Não... não posso aceitar tal honraria, Jovem Lorde. Vocês fazem parte do sangue dos Dez Fundadores dos reinos irmãos. E nós somos apenas subordinados... as coisas são como são.
Kai o encarou por um longo tempo. Ele bebericou de seu hidromel e depois o pousou na mesa.
Não continuaria com tal conversa, era impossível mudar a mente de um homem a muito formada.
Em vez disto, ele iniciou um novo tópico.
– Diga, Guntry, o que pensa acerca da exploração das Geleiras e da Navegação no estreito de Njord?
Aquela pergunta pegou Maneta de surpresa. Era um tabu falar sobre esse assunto.
Com o tempo, alguns lordes daquele lado da mesa passaram a ouvir esta conversa.
– Não penso muito a respeito, Jovem Lorde... veja bem, eu apenas administro as plantações e indústrias no Sul da Cidade. Não tenho pensamentos sobre...
Kai franziu o cenho.
– Eu soube que seu sonho, antes de assumir as Indústrias GG, era ser um marinheiro. – Disse Kai, o interrompendo. Ele encarou Enoryt antes de continuar. – Mas aqui em Neve Sempiterna, esse sonho é como ir contra a maré. Não há futuro, não é? Então me diga, por que não ir para cidades como Porto Longevo, que detém imenso poderio marítimo? Por que não ir atrás do seu sonho?
Maneta limpou seu rosto, que suava um pouco. Ele olhou para o senhor ao seu lado e deu um sorriso fraco, sem graça.
– Ora... isso nunca passou de um sonho de criança, Jovem Lorde... sabe, comandar uma Indústria tão grande é de imensa...
– Tenho pensamentos muito bem formados acerca deste assunto, lorde Guntry. – Disse Kai, interrompendo-o.
O homem pareceu levemente incomodado, mas sua curiosidade foi maior.
– E que pensamentos seriam esses, Jovem Lorde?
Kai se aplumou na sua cadeira e bebericou de seu hidromel.
Ele olhou para sua esquerda e Servent Moraes o encarava. Parecia que estava ouvindo a conversa dos dois.
Kai tornou a encostar na cadeira. Olhou ao redor e alguns rostos o encaravam, atentos.
– Neve Sempiterna sente falta de matéria prima, lorde Moraes. Ouvi dizer que alguns caçadores sempre se aventuram pelas entradas das Geleiras, encontram animais como o Sikelin, aquele cuja pele formamos estas capas que vocês vestem e são tão firmes e boas.
Kai parou por um instante. Apesar da gritaria dos soldados à direita, alguns mais atentos escutavam tudo. Do outro lado da mesa, Bimos Lei e Enoryt Murphy não eram exceção.
Siobhan o encarava, como se esperasse uma conclusão para aquilo. Kai sentiu a deixa, mas não tornou a falar.
– Continue, Jovem Lorde. – Disse Servent Moraes depois de um longo tempo esperando.
Kai suspirou.
– Imagine se montássemos uma caravana com nossos melhores soldados, com nossos melhores caçadores... se, finalmente, tomássemos coragem para desbravar esta imensidão fria que nos assombra por eras... imagino que muitas coisas nos surpreenderiam.
Todos se encararam, imaginando se este moleque falava sério ou era apenas seu senso de humor negro.
Uma gargalhada seca despontou da mesa, afinal.
Alguns olharam para o dono da voz: Helder Mader.
Ele finalmente tinha se engasgado com o pedaço de coxa que mastigava freneticamente. Ele bebeu rapidamente de seu vinho e limpou a garganta.
Pegou um lenço da mesa e limpou o suor do rosto.
– O Jovem Lorde... ah, Jovem Lorde... isso iria custar muito aos cofres de Neve Sempiterna, sem contar que seria uma transgressão grave à coroa... tomar iniciativas assim, isso não passa de um sonho de criança.
Kai sorriu.
Alguns lordes ficaram sem graça.
Bimos disse alguma coisa no ouvido de Enoryt, que sorriu e encarou Kai.
– É imperativo que isso pudesse acontecer, o próprio lorde sabe. – Continuou Helder Mader. – As questões climáticas, geológicas, financeiras... Demandaria tempo que não nos é permitido. E sobre navegações marítimas: está pensando que somos Porto Longevo? Nossas questões sempre foram voltadas para exército e mais recentemente para comércio. Tire esses pensamentos da cabeça, Jovem Lorde, ou não ficará nem uma semana na suserania de Neve Sempiterna.
Todos ficaram calados. Até mesmo as sonatas de flauta e banjo pararam de tocar. Apenas a barulheira descabida dos soldados continuou.
Helder Mader lançou um olhar cauteloso a Siobhan Murphy e, em seguida, a Enoryt.
Kai sorriu. Esta atitude fez o homem franzir a testa. Por que esse moleque só sabia rir?
– E o que um maldito ladrãozinho nojento e xexelento como você saberia? Acho que se você parasse de nos roubar, um ou outro dinheiro poderia ser investido.
Após a voz de Kai cair, fez-se um silêncio profundo.
Drico Fellner suprimiu uma risada; Lucio Fal encarou Kai, surpreso com a afronta do rapaz.
Ardara Murphy finalmente foi capaz de descer do seu palanque e dar atenção à intriga.
Helder Mader tornou a se engasgar e tomou um gole longo de seu vinho, batendo o copo na mesa ao terminar.
– La-ladrãozinho? – Disse, nervoso e irritado. – Nojento e xexelento? Me respeite, moleque. Não fosse por mim, seu pai já teria falido por causa de sua bebedeira e farra constantes.
– Somente por isso, é? – Kai sorriu. – E o déficit nos cofres do Banco local?
Por um instante, Kai teve um deja vu.
Alguns se viraram para Helder Mader.
– Do que ele está falando, Mader? – Indagou Jona Dito.
– Este moleque vive bêbado... não deem ouvidos a ele. Sinceramente... não sei como pensaram em colocá-lo no trono de nossa cidade... penso que...
– Já chega! – Disse Siobhan, mana vazando de sua voz. – Explique-se, Helder.
– Se-senhor... não vai mesmo acreditar nas palavras desse menino, não é? Sabe, é como dizem... as palavras de um ladrão têm dez vezes mais valia que a de um bastar-...
Na mesma hora, uma adaga apareceu no pescoço de Helder. Logo, sangue começou a escorrer.
– Mais um insulto ao Jovem Lorde, e você perderá bem mais do que algumas gotas de sangue.
Todos ficaram estupefatos com a rapidez com que um sujeito apareceu ali. Há um segundo não tinha ninguém além dos guardas pessoais de Helder, que se assustaram e levaram suas mãos ao cabo de suas espadas.
O sujeito, por outro lado, estava coberto por um enorme manto negro justo.
– Oren. – Siobhan levantou a mão. A adaga foi lentamente saindo da garganta de um Helder Mader estático e pálido. Oren voltou à escuridão.
– Você percebe que ao insultar o Jovem Lorde, também insulta o lorde, não é, Helder? – Indagou Jona Dito.
O homem assentiu freneticamente.
– Então mantenha seus pensamentos para si.
Ele assentiu mais rapidamente ainda.
– Vamos, Mader, explique do que se trata isso. – Disse Drico Fellner.
– É-é tudo um mal entendido do J-jovem Lorde... eu tenho certeza que é um engano...
– E como você explica o sumiço das mais de 22 mil moedas de ouro do estoque mensal da cidade? – Disse Kai, bebendo seu hidromel calmamente.
Todos olharam para ele, estáticos. Depois viraram lentamente seus olhares para Helder.
– 22? – Jona indagou, o rosto tremendo levemente. – Isso é quase...
– Isso é exatamente 88 por cento do que lucramos ao mês. – Disse Kai, checando suas unhas. – Óbvio que há uma clara modéstia nesses dados, uma vez que nem checamos corretamente o que anda faltando na conta-poupança dos cidadãos.
O clima se tornou pesado. Ninguém se atrevia a dizer um a.
– Isso é uma acusação muito grave, Jovem Lorde. – Disse Lady Gook.
– Só que receio que o Jovem Lorde esteja correto em suas afirmações... – Disse Bimos Lei. – E isso é apenas a ponta do iceberg.
– A ponta? – Indagou Lucio Fal, mana começava a vazar de seus punhos. Quando ele ficava irritado, isso acontecia. – E há mais?
– Sim. O que descobrimos é que mais ou menos 155 mil moedas de ouro foram roubadas no último semestre, mas nós não lucramos apenas 25 mil moedas todo mês... então pode ser que esse valor esteja numa margem de 170 ou 175 mil moedas de prata. E isso é apenas o montante mensal dos cofres que nosso governador lucra para a cidade... certamente há um déficit maior nas conta-poupanças.
– Então estamos tendo um déficit de quase seis meses. – Disse Drico, calmo.
Todos olharam para Helder, que estava totalmente em pânico.
Siobhan, por sua vez, encarou seu sobrinho.
– Você já sabia sobre isso, Enoryt?
O homem encarou Kai. Ao contrário do que muitos pensavam, ele não queria o trono para si. Na verdade, ele estava muito feliz sendo apenas ministro da fazenda.
– O garoto veio até mim com dúvidas pendentes, coisas corriqueiras do dia a dia. Vimos um déficit grande. E eu, como ministro da fazenda, não pude deixar isso pra lá. Lamento ter escondido de você, tio.
Siobhan olhou para o chão, indecifrável.
Kai se levantou e ergueu a mão. Ómra veio correndo e entregou um pacote para ele.
Ele caminhou até seu pai e o encarou. Então ogou o pacote a frente de Siobhan e sorriu.
O velho pegou o pacote, abriu e tirou um bocado de papéis e começou a ler. A cada momento sua feição mudava de espanto, para incredulidade, até que finalmente mudou para ódio. Ele entregou os papéis a Jona e encarou Helder com uma raiva escancarada.
Jona Dito teve a mesma reação.
– Clay, prenda Helder Mader por suborno qualificado, roubo capital, estorno, ameaça e tráfico humano. Você será julgado pelas leis de Algüros, tudo dependerá dos juízes da Capital Azul. Tudo que disse pode e será usado contra você.
Kai se virou para o homem, sorrindo.
– Então, acha que se ajustarmos esse valor, pode ser que aquele sonho de criança se realize?
Helder Mader não aguentou o deboche e puxou uma adaga de dentro das vestes e pulou por cima da mesa em direção de Kai.
– Eu vou te matar seu bastardo malditooooo...
Mas ouve um som de tilintar e um clarão permeou o lugar.
Alguns soldados pararam quando notaram que a música havia cessado e se viraram para a área onde os figurões se encontravam.
Tudo aconteceu rápido demais.
Kai estava com uma mão no bolso, encostado na mesa enquanto tomava um longe gole de vinho.
Alguns senhores tinham feições estritamente pálidas.
A reação era um emaranhado de medo, cautela e nojo.
De pé, segurando uma longa espada com sangue escorrendo por sua lâmina, Enoryt Murphy encarava sombrio e irritado, o corpo decapitado de Helder Mader espasmando em sua frente.
– Você foi avisado sobre sua língua, sr. Mader... ninguém comete o mesmo crime duas vezes e sai impune. Não no meu turno.
Disse o Touro Negro do Norte, irritado.
Sua cabeça rolou até os pés de Kai, e ele ainda tinha uma feição de ódio estampada para o garoto.
Kai encarou-o enquanto notava seu rosto distante, suavizando o ódio e perdendo a cor. Ele o encarou até que ouviu uma voz...
Desperte...