Volume 1

Capítulo 27: DANIEL 6: 1-28

Kai, Fioled e Ysgarlad caminhavam ao longo da margem de um riacho.

A luz mal tocava aquele ponto, sendo necessário o uso de uma tocha.

Kai alimentava fortemente a ideia de que deveriam evitar ao máximo o uso de energia espiritual. Fosse éter, fosse chi.

Apesar do rapaz estar curioso para ver as habilidades acerca do éter dos vitanti – só tinha visto as habilidades de combate de alguns deles.

Estavam em busca do povo remanescente dos mudanti; Kai, com ajuda de Ómra, conseguiu reverter o feitiço envolto na bússola, sendo capaz de localizar essas pessoas.

Ele levou em consideração que o ponteiro não só apontava para a pedra que estava em posse da atual líder mudanti, Daisysia, tal e qual obtinha a localização dos próprios mudanti; sempre considerando, é claro, que para este último era sempre um caminho mais fraco quando se comparado à pedra.

Mas tudo não passava de um enorme “e se”.

Mesmo assim, foram capazes de localizar boa parte do povo perdido.

– Acha que poderemos encontrar eles logo? – Indagou Fioled, cautelosa.

– Com sorte, sim. – Kai a olhou de soslaio; ela estava distante. – Que foi?

Ela o encarou, depois suspirou.

– Estou preocupada com essa guerra. Estamos perdendo tantos... só queria poder fazer mais.

Kai se lembrou imediatamente da amiga dela. Fioled saiu de seu aconchego para ir atrás de alguém e nem sabia por onde procurar. Ela realmente se importava.

– Não há muito que possa fazer... – ele tentou remediar. – Você já é uma bela adição, não pode pensar que consegue resolver tudo sozinha.

Um sorriso se formou no rosto da garota.

– Quer dizer, nem todo mundo é tão cheio de bravata quanto você, não é?

Ele sorriu de volta.

– Eu sou bem único, sabe?!

Ela soltou uma risada.

Passados trinta minutos, Kai retirou a bússola do bolso. Com o upgrade, ela apontava sempre para a localização mais próxima de mudanti. Haviam retirado o feitiço cujo ela sempre dava prioridade à rocha.

É claro que havia um mudanti ali com eles, mas Ómra criou um belo sistema onde a bússola tinha de encontrar quem estivesse perdido. Era como se ela tivesse consciência própria.

Já haviam se passado três dias e três noites desde que começaram a busca por essa última leva.

O mudanti havia tomado a dianteira. Desde que conseguiram localizar os primeiros sobreviventes, seu tratamento com Kai havia mudado. Já não o chamava mais de qésserin de forma pejorativa.

Agora ele se dirigia ao rapaz com mais respeito e cautela. Em parte, por ter visto seu capitão ser derrotado, outra por ter ficado admirado quando viu o plano dar certo.

Estavam nas margens de um córrego quando Ysgarlad soltou um suspiro alegre.

– Finalmente passamos pela fronteira Adurant – disse ele, mantendo o ritmo. – Em breve estaremos mais perto do território do homem, uma terra ao noroeste.

Deve ser Cardos, pensou Kai.

– Como sabe que estamos próximos do território humano, Ysgarlad? – indagou ele.

O sujeito apontou para o córrego.

– Esta ribeira leva à um rio que se chama Adurant. Ele tem vários riachos que percorrem a floresta de Bulogg. Mas, à medida que vai se alongando, significa que estamos nos aproximando de sua nascente, que está localizada no território do homem; como eu disse, é à noroeste. 

Kai ficou surpreso com o entendimento geográfico do sujeito.

A névoa se adensou, com lufadas de ar frio indo e vindo.

Pela primeira vez desde que aprendeu a cultivar seu chi, Kai teve a mesma sensação ruim de quando pisou pela primeira vez além do escudo de Algüros.

Um arrepio perpassou por seu pescoço e ele não resistiu à vontade de puxar mais uma vez a bússola.

Quando abriu sua tampa redonda, o ponteiro girava enlouquecido, até que, depois de um minuto inteiro, ele parou. Mas vibrava violentamente numa só direção.

Kai ergueu o rosto para Fioled; em seguida encarou Ysgarlad.

O mudanti tinha uma feição sombria.

– Está apontando para noroeste...

– É próximo ao território do homem... – Fioled disse, pressurosa.

Kai a olhou de soslaio. Havia certa apreensão no ar. Era inegável que, de todas as interações que aquele povo tivera com a raça humana, 99,99 por cento das vezes ocorreu ostracismo e/ou matança.

Sem contar os muitos casos onde vitanti foram feitos de escravos e coisa pior.

Portanto, era comum que a garota tivesse receio.

Mas Kai estava ali. E Ysgarlad também, é claro.

– Não se preocupe – respondeu o mudanti, fingindo serenidade. – Eles têm mais a temer do que nós. Vamos continuar.

Caminharam por mais alguns quilômetros intermináveis, a agulha sempre apontando para noroeste.

Somente naquele momento Kai parou pra pensar que poderia ver um outro ser humano. Isto é, sem levar em consideração o péssimo encontro com os mercenários.

Notou também que, por alguma razão, as luzes do sol se recusavam a perpassar ou iluminar qualquer que fosse o canto plano daquela floresta.

Houve um momento em que ficou insustentável continuar ouvindo o baque surdo de rocha contra rocha.

Isto é, a bússola tremia compulsivamente, como se indicando que estavam bem próximos do destino final.

Parecia que ela ganharia vida a qualquer momento e diria: “JÁ CHEGAMOS, NÃO ESTÃO VENDO?”.

Eles pararam finalmente defronte a uma elevação descampada e árida. Incomum.

Muito pelo fato de estarem numa floresta onde a mata predominava. Era imperativo que ocorresse justamente ali a falta de relva.

E estava nítido que era algum tipo de feitiço, pois rocha alguma se formaria como essa. Era tão artificial que dava dor na vista.

Sem contar a meia dúzia de árvores dispostas ao redor da enorme rocha, que, diga-se de passagem, tinha um formato oval e agudo em seu topo.

Ysgarlad ficou de cócoras, os outros dois repetiram o gesto.

– Que faremos? Está na cara que é o esconderijo deles.

Kai suspirou. Ele poderia muito bem usar um feitiço de identificação, entender o ninho que estariam prestes a entrar. Conhecer os arredores.

Mas isso demandaria tempo e perda de energia, no entanto. E ele tinha de mantê-la. Sem contar que queria evitar o uso de feitiços por motivos óbvios.

– Teremos de entrar. – Disse, sem pestanejar.

– Está louco? – Indagou Ysgarlad, surpreso e irritado. – Nem temos conhecimento do que há lá dentro, até onde sabemos, podem existir milhares de centenas de pestes e pragas.

– Sim, mas não temos tempo pra tentar desvendar esse mistério, cara. E muito menos pra esperar se entra ou sai alguém de lá.

– Mesmo assim...

Kai o fitou. Ele estava realmente nervoso. Havia perdido toda fachada de despreocupado. Parecia temer algo.

– Do que é que tem tanto medo? Achei que os mudanti fossem corajosos. – Provocou.

– E somos! – Ysgarlad respondeu, ofendido. – Só não temos o hábito de sair entrando em qualquer caverna que vemos...

– Mesmo que isso signifique não salvar seu próprio povo? – Kai franziu a testa.

Passaram alguns segundos se encarando, até que o rapaz respirou e se levantou.

– Bom, se você não vai, eu vou. Fioled, você vem?

– É claro!

Kai saiu correndo enquanto esquadrinhava o local, Fioled em seu encalço. 

O mudanti praguejou mentalmente.

“Esses curoh’nekedoh são realmente malucos... Droga!”



***


Depois de um longo tempo procurando, eles finalmente conseguiram encontrar a entrada para o que seria uma caverna.

Ysgarlad improvisou uma segunda tocha e seguiram caminho.

As paredes eram arqueadas e o teto era cheio de estalactites, cujo um líquido caia vez ou outra.

Kai ia na frente segurando a tocha, com Fioled no meio e Ysgarlad na retaguarda.

Ao iluminar as paredes, notaram que estavam pintadas, em ambos os lados, com inscrições e desenhos numa cor rubra.

E ela fedia... ah, como fedia!

Era uma mistura de enxofre com estrume e podridão.

Era essa a sensação. De morte.

– Que fedor... – Ysgarlad balbuciou.

– Parece que alguma coisa morreu aqui... – Comentou Fioled.

– Sim... – Concordou o mudanti. – É como se mil cavalos tivessem defecado e mil raposas orelha de morcego tivessem morrido e sua carne apodrecido...

Kai pigarreou.

– Isso foi bem específico.

Fioled reprimiu uma risada.

Continuaram caminhando pelo que pareceu uma eternidade.

– É como se estivéssemos caminhando pelas entranhas de alguma coisa enorme e... viva. – Ysgarlad disse. – Como se aqui fosse a parede estomacal de uma fera imensa e tivéssemos próximos do órgão onde as fezes são expelidas...

– Ok. – Kai suspirou. – Temos que ter uma conversa acerca de detalhes... às vezes, não precisa ser tão específico, tá legal?

Fioled pôs a mão no rosto, o cheiro estava se tornando insuportável.

– Isso me lembra o conto de Yonah e as vacas aquáticas... – Disse ela.

Kai franziu a testa mentalmente.

Yonah e as vacas aquáticas?
Pensou. Fez um enorme esforço para não tirar sarro. 

Por uma dúzia de vezes chegaram em divisões de três ou quatro caminhos, mas seguiam sempre pelo lado cujo as paredes estavam pintadas.

Em determinado ponto, passaram a ouvir um ruído muito, muito baixo. Era como se uma conversa interminável estivesse acontecendo.

Kai fez sinal de silêncio. Ele mesmo tomou cuidado com os passos, não cometeria o mesmo erro duas vezes...

Viraram uma esquina e o cochicho aumentou. Kai parou de chofre e voltou pelo caminho de onde vieram.

Encostou-se na parede e levou o indicador direito aos lábios.

SHHH!

– O mestrezinho disse que demoraria, não é? – disse uma voz fina e esganiçada. – Que tal provarmos só um pouco deles? Não comemos há eras. Goblins não devem ter tanta fome assim.

Goblins... criaturinhas traiçoeiras e nojentas. Assassinos mórbidos e canibais. Se fossem mesmo goblins, então haveria uma centena... não, talvez duas ou três centenas dessas pestes.

Houve um baque surdo seguido de um urro de dor.

– Não seja idiota, cretino. – Falou uma outra voz, esganiçada e irritada. – “Não comemos há eras”... fazem apenas algumas horas desde nossa última refeição.

– E o que você sabe sobre isso, hã? É apenas um pau-mandado deles. Byzga tem fo...

A outra voz foi interrompida e mais baques surdos puderam ser escutados. O dono da voz fina e esganiçada estava certamente sendo punido.

– Já falei para não faltar com respeito a Crocog, idiota. Crocog é seu líder agora, e ele é quem decide as coisas. Agora vá vigiar as entradas e pare de falar besteiras. Os senhores irão trazes mais escravos, disso Crocog tem certeza.

Kai e Fioled se encararam.

O som de passos começou a se distanciar, até que pudessem ouvir apenas a própria respiração, o gotejar e as reclamações da outra criatura.

– Crocog é seu líder... – A vozinha balbuciou, fazendo uma perfeita imitação da outra. – Uma ova que Byzga tem novo líder, uma ova. Líder de Byzga e de todos os goblins das cavernas é Urkaaz. Ah, se Urkaaz estivesse aqui... nunca trabalharia com comida... onde já se viu, receber ordens da refeição? Magos malditos. Byzga amaldiçoa eles, amaldiçoa...

Enquanto balbuciava e falava ofensas, aquele que se autointitulava Byzga passou a caminhar na direção de Kai e dos outros.

Quando ele virou a esquina ainda praguejando, deu de cara com Kai.

Ficaram se encarando por longos minutos. Byzga tão sem reação quanto Fioled e Ysgarlad. Kai permaneceu neutro.

– Era disso que eu tinha medo. – Falou o mudanti já se preparando para atacar. 

O goblin ficou parado, encarando.

E era feio: baixinho, não media mais que 1m. Tinha orelhas pontudas e cheias de brincos. Seu nariz era enorme e cheio de verrugas. Ele usava trapos na cabeça e uma roupa igualmente feia e fedorenta.

Sua pele era verde como lodo, e seus dentes pareciam as estalactites da caverna.

– Então já veio, é? – Disse ele a Kai, com um respeito fingido. – O-o senhor ouviu alguma coisa da conversa?!

Fioled e Ysgarlad se encararam, confusos.

O goblin inclinou a cabeça.

– Dessa vez trouxe uma de outra cor – ele franziu o nariz e o fedor de sua boca quase fez Kai cair para trás. – Mas dessa vez foram bem poucos.

Ele olhou para Kai e franziu a testa, tentando enxergar.

– Você é novo? Nunca te vi por aqui... não vai dizer nada?

Kai piscou, finalmente entendendo o enredo. Ele franziu a testa e inclinou o queixo.

– É porque você fede demais, seu goblin linguarudo.

Byzga deu um passo para trás, tremendo.

– Não... não foi minha intenção, jovem mago senhor... Byzga tem fome, entende? e... e se Byzga não comer logo, pode morrer.

– Deixe de dizer asneiras. – Disse Kai. – Vamos logo e me mostre o caminho para os outros escravos, há uma dúzia chegando aí.

– Mas é claro, se-senhor...

Byzga saiu na frente tropeçando e arfando. Era certo que os goblins eram covardes, mas na primeira oportunidade apunhalariam qualquer um.

Kai olhou rapidamente para trás e gesticulou para seguirem a deixa.

– E-então jovem mago... se não for muita intromissão... gostaria de saber a razão do senhor não os manter em algemas mágicas? Sabe, pro caso deles tentarem atacar o senhor...

Kai congelou momentaneamente, era óbvio que isso daria errado. Mas ele não entregou os pontos imediatamente.

– Estão ligados a mim por magia da alma. Caso tentem algo contra mim ou contra minha vontade, sofrerão uma dor imensa, como se tivessem sido queimados por um fogo do inferno.

– Oh! – Byzga exclamou, surpreso. – Então o senhor é um mago de alto nível, não é? Byzga já viu magos assim antes. Que assustadores... o senhor deve ser bem forte...

– Sou! E se não calar essa sua boca, farei com que sinta a mesma coisa elevada a dez.

O goblin virou-se para frente e apressou o passo.

Ao longo de todo caminho, mais goblins foram aparecendo, olhando feio para Byzga. Faziam reverências a Kai como se ele fosse um deus. Ele já sabia dessa característica dos goblins.

Se fingiam de inocentes para depois matar e comer suas presas. Muitos humanos foram feitos de vítimas em Algüros, até que um punhado de magos comandados pelo rei começaram a caçar essas pragas tal qual outras. Elas nunca mais foram vistas nas Terras do Norte.

Sua grande maioria, aqueles selvagens, foram despachados para A Geleira, um imenso deserto de neve, ao norte de Algüros.

Chegaram na entrada de uma abertura que dava para um enorme espaço. Cheio de estacas no teto e nas paredes. Haviam vários goblins, e o lugar fedia como nunca. Junto às paredes, pelo menos uma centena de escravos mudanti estava algemada.

Ysgarlad deu um passo para frente, como se fosse correr até eles. Byzga notou e franziu o cenho.

– O senhor não disse que tinha controle sobre ele? – e apontou para o mudanti.

Kai respirou fundo. O mudanti olhou para ele, como se não fosse mais capaz de se segurar.

– Não! – Kai disse, sem usar chi ou aura.

Ysgarlad piscou, tremendo de raiva.

– Desculpa, Kai, mas é meu povo.

Byzga imediatamente ergueu o rosto e um sorriso foi se formando.

– Kai? Como Kai Stone?

O rapaz o olhou, confuso. Como essa criatura poderia saber seu nome?

– Então você não é um dos mercenários malditos... isso fica mais interessante.

Entrementes, Ysgarlad partiu correndo até as pessoas presas ao longo da parede. Sofreu uma tentativa de interceptação, mas era muito mais poderoso que os goblins. A única vantagem dessas criaturas era o número.

Fioled, por sua vez, sacou uma adaga e ficou em guarda.

– Como sabe quem sou?

– Isso não importa... – Byzga lambeu os lábios. – Byzga será conhecido como aquele que capturou o Kai Stone. Sabe, Byzga ouviu a conversa de alguns dos seus amigos magos... eles vão ficar felizes.

Uma balburdia generalizada se iniciou.

Byzga deu um passo para o lado.

– Vá em frente, Kai Stone. Sirva de herói.

Alguma coisa estava estranha. De algum modo, ele sabia que se entrasse na caverna, não sairia mais.

Ele olhou de Byzga para o meio da caverna: Ysgarlad começava a ter problemas. Ele não usava feitiço algum, era apenas flechas.

Fioled se aproximou de Kai e apertou seu braço.

– Vamos, sei que isso parece estranho, mas ele precisa de nós.

Kai deu uma última encarada em Byzga, que sorria compulsivamente. Então correu caverna adentro.



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