Volume 2 – Arco 6: Cruzeiro
Relatório 51: Expedição Marítima
30/04/2002, 8:00 da manhã…
Dormir? Quem dera tivesse sido capaz disso. Apesar da roupa bonita, o rosto de Guto mais parecia o de um cadáver que acabara de ser desenterrado. Se não fosse pela algema, teria esquecido a preciosa maleta no hotel.
UWA~! O longo bocejo foi cortado por um poderosíssimo FOM! provindo da embarcação titânica logo à sua frente.
O navio, estilo de cruzeiro, gritava na direção do passageiro que mais importava furiosamente, alertando sobre o fim das preparações que já duravam longas horas.
Aquele número enorme de marinheiros estava desde a noite passada carregando caixas e mais caixas para dentro do grande navio. Até onde Guto sabia, tratava-se de alimentos enlatados e outros com longa durabilidade.
“Vai ser uma longa viagem”, lamentou, consolado pelo silêncio carregado pela brisa salgada. “Aff! Que tipo de plano aquele maluco pensou dessa vez?”
A atenção desceu sobre a maleta com a água milagrosa. O pequeno frasco, além de ser uma segunda chance caso algo desse errado com o transporte terrestre, também se tornara uma alternativa para garantir a sobrevivência de Guto.
Se ver que é necessário, não hesite em arriscar usar essa água com você! As palavras de Alex não poderiam ser mais claras que isso. Bem, não era como se fosse sequer possível compreender os objetivos daquele cientista, tudo que podia fazer era aceitar e seguir as ordens.
Outro alerta veio do navio, e os marinheiros — já à bordo — acenaram para Romanov se apressar. Ele logo o fez, em passos hesitantes, mas ainda o fez. Seu olhar constantemente vagava para trás, parecendo esperar alguém, e era óbvio também que a ilusão era o que mais dominava seu semblante toda vez que realizava o ato.
Entrar naquela imensa embarcação apenas tornou mais notável o quão imensa ela era. Era um dos maiores cruzeiros que havia visto desde que se entendia como gente, quiçá maior que um navio cargueiro.
Não teve outro pensamento senão "exagerado". Isso era, de longe, uma pura demonstração do quão poderosa a FESOL era, ao ponto de alugar (isso se a embarcação não for deles) uma coisa daquele tamanho para o transporte de uma única pessoa.
No entanto, pensar nisso fez Guto se perguntar se tanto trabalho era por sua causa ou daquilo que se prendia em seu pulso.
Chegou a conclusão de que a última opção era a mais provável.
“Vinte dias? Não, se esse navio ter sido projetado por membros da FESOL, deve levar metade do tempo, talvez menos."
Normalmente, um cruzeiro comum que partisse de Paradise para a FESOL levaria entre 20 a 30 dias para chegar ao porto. Esta, no entanto, não era a ocasião. Se Alex tivesse o mínimo envolvimento no projeto, não seria surpreendente aquele ser o barco mais rápido e econômico do mundo.
Porém, mesmo sendo algo da própria FESOL, não havia total garantia de que imprevistos não iriam acontecer.
“Melhor eu não ficar paranoico com isso."
Ele definitivamente ficaria, mais do que poderia imaginar.
***
— Levantar âncora!!
Ele ouviu com dificuldade aquele grito. As paredes eram grossas o bastante para parecer que havia isolamento acústico, mas mesmo isso não o impediu de ouvir aquele sinal.
"Será que eu saio agora? Não, melhor esperar até que o barco se afaste do continente."
Hector se escondia entre algumas caixas de suprimentos emergenciais num ambiente escuro que deveria ser o depósito.
Cada segundo que passava era equivalente a pelo menos três pessoas passando pela porta da sala. Obviamente, a sua mão não soltava da arma destravada em hipótese alguma.
Suas considerações eram simples, mas de confiança duvidosa.
O Fator B que ganhara a partir do furto de Yellow cometido contra o tal do Informante era uma grande incógnita. Desde permitir viajar entre países em cinco minutos até passar despercebido em qualquer lugar. Era uma gama de habilidades que muitos pagariam com a vida para ter.
“Se essa merda funcionar que nem antes, talvez eu consiga resolver a situação sem dificuldade."
Por mais que dezenas ou até centenas de marinheiros estivessem à bordo, não havia como combater um inimigo que não se podia notar.
E foi repetindo esse plano dentro de sua mente que ele esperou o tempo passar.
Foram cerca de trinta minutos, o suficiente para que, quando olhasse pela janela, não enxergasse nada no horizonte além de uma água azul profundo.
Já era mais que tempo (tinha era passado da hora)! Talvez por essa sabedoria que Hector tivera o reflexo de chutar a porta—!!
—Só o reflexo mesmo, pois conseguiu conter a perna nervosa.
Com uma leveza nunca antes vista em sua pessoa, ele revelou o caminho o qual adentraria a partir de agora.
Nenhum marinheiro andava pela área no momento, então não era possível saber se a função "invisível" de seu Fator B estava funcionando.
Havia o ditado que dizia que "é nos piores momentos que uma pessoa desperta suas melhores habilidades", mas o detetive tinha total descrença nisso. Apenas soava muito sem sentido em sua cabeça.
“O que eu posso fazer pra me livrar deles?"
A quantidade de balas era estressantemente menor que a de marujos, mas, mesmo para Hector, a violência nem sempre era a resposta.
Tendo em vista sua "invisibilidade", uma ideia caiu sobre sua mente. Não havia certeza de que funcionaria, mas era melhor que nada, então tratou de colocá-la em prática logo em seguida.
Saindo para o corredor, ele correu até a primeira esquina à vista, onde se escondeu. Seguidamente, olhou ao redor e, num rápido e profundo estufar de seus pulmões, deu o chute mais forte que conseguiu contra as barras de proteção.
O metal reverberou de modo que o próprio navio pareceu tremer. E como esperava, foi mais que o suficiente para atrair a presa até a armadilha.
— Quem está aí!!? — exclamou um marujo solitário.
O rapaz velozmente conferiu o corredor. Nada. Conferiu o teto. Nada. E por fim, inclinou-se por cima da barra de proteção e vislumbrou o mar.
Talvez a beleza das águas tivesse lhe hipnotizado profundamente, pois, quando menos percebeu, seu corpo havia se jogado na direção dela.
U
U
U
O
O
O
A
H
!!!
TIBUM!!
“Gegege!! E num é que deu certo!!"
Se Hector fosse visível para olhares alheios, tudo que seria identificável em seu rosto seria um sorriso demoníaco isento de arrependimentos.
Constatando que o Fator B estava funcionando, nada mais poderia pará-lo agora.
— Quem tá aí!? — repetiu o segundo marinheiro.
O ciclo seguiu por tempo indeterminado. O marujo surgia, via os colegas no mar e logo se juntava a eles. De certa perspectiva, era uma visão bastante cômica.
Enfim, não foram necessários mais do que vinte minutos para que todos os marujos do barco — ou pelo menos aqueles que não estavam no interior do navio — fossem colocados na prancha e atirados às criaturas marinhas.
O Mar de Botomegamo não era exatamente infestado de predadores capazes de devorar humanos, mas isso não o tornava menos perigoso. Hector sabia bem disso, e mesmo assim atirou-os ao mar sem hesitação.
Agora, ele olhava não mais para as pessoas que desesperadamente gritavam em direção ao navio, mas para o caminho totalmente livre.
Ante a passagem livre, ele estreitou o olhar e sacou sua arma. Logo que estufou o peito, iniciou seu percurso.
A primeira parada não poderia ser outra senão a sala do capitão. Não demorou para que chegasse lá, mas sua mente tardou mais do que esperava para compreender o que acontecia ali.
O Capitão tinha olhos isentos de pupilas. A boca levemente aberta deixava um rastro de baba escorrer pelo queixo e cair sobre o colo. Não falava nada além de murmúrios sem pé nem cabeça.
— Zumbi? — O questionamento foi instintivo. "Será que foi aquele maluco?"
Se uma pessoa fosse capaz de alterar sua estrutura física para assemelhar-se à uma criança, controlar mentes deveria ser uma mera brincadeira.
“E se ele tentar fazer isso comigo? É bem provável, mas devem haver restrições na habilidade. Será que o meu Fator B consegue anular isso?"
O pacto que fizera com Yellow era como a compra de um produto na loja, a diferença era que não havia manual de instruções. Percebendo essa triste comparação, Hector sentiu que foi tapeado.
Agora, uma coisa era certa.
“Não tem como eu prender aquele cara, não consigo nem considerar essa ideia. Então…"
Segurou a pistola com ambas as mãos. Tinha certeza de que o tambor estava totalmente carregado, e mesmo assim não sentia a confiança que normalmente lhe preenchia.
Também, com uma situação dessas, armas de fogo pareciam mais pistolas de água!
Por um segundo considerou usar um dos projéteis no Capitão, mas isso provavelmente resultaria na deriva e, consequentemente, no naufrágio da embarcação. Morrer ali não estava nos planos do detetive, pelo menos não por enquanto.
A vida do Capitão, pelo menos — se é que ele ainda tivesse uma — estava salva. Portanto, Hector saiu da sala de comando sem muitas preocupações. Se outro marinheiro surgisse, bastaria atraí-lo para as bordas do navio e empurrá-lo para o mar como fizera com os outros.
Porém, mesmo que incontáveis homens tivessem andado na prancha momentos atrás, aquela solidão que encontrou no navio era estranha demais para engolir.
“Deviam haver mais deles no interior, mas eu não escuto nada. Será que eram realmente só aqueles?”
Caixas sendo arrastadas, metal sendo batido ou vozes ecoando na solidão, nada alcançava seus ouvidos além das ondas do mar batendo contra a embarcação. Sequer gaivotas estavam mais por ali.
Andar, mesmo que lentamente, fazia o som de seus passos dominar parte do ambiente. Ele se perguntou se o inimigo seria capaz de ouvir isso, mas continuar a fazê-lo poderia distrair-lhe num momento decisivo.
Inevitavelmente, um pouco de suor começou a escorrer. Ele estalou a língua em desagrado. A arma sempre à frente do corpo seria a garantia de vitória, ao mesmo tempo que o indicador para o inimigo de que o diálogo estava longe de ser uma alternativa.
“Onde esse puto tá? Será que vou ter que conferir quarto por quarto?”
Simplesmente abrir uma porta era perigoso o suficiente, mas ter de chutar uma por uma na intenção de realizar um ataque surpresa era uma situação tão contraditória que quase fez o detetive rir de si mesmo.
A cada quarto, ele colocava o ouvido contra a porta. Silêncio, era tudo que escutava através do material gelado que compunha o objeto.
Foram várias tentativas vãs de encontrar o local de hospedagem do suspeito, e cada uma delas fazia a arma em suas mãos pender o cano cada vez mais em direção ao chão.
Não mais algumas gotas isoladas, Hector tinha o rosto inundado por uma cachoeira de suor. A essa altura, começou a considerar que seu alvo não estava à bordo, e que haviam lhe passado a perna.
“Impossível! Impossível! Ele tem que estar aqui em algum lugar!!”
Seus membros começaram a tremer, os passos alargaram e a respiração tornou-se mais audível. Mas ele pouco se importou. Se o Fator B estava ou não ativo era algo irrelevante, a prioridade de sua presença naquele lugar agora era descobrir se estava ou não acompanhado de seu alvo!
Ele caminhou, tropeçou, correu e caiu por todo o navio. Se ali houvesse algum hóspede, seria impossível não ouvir tamanha comoção mesmo em um barco tão massivo. Porém, tal como ele já esperava, o silêncio fora seu único companheiro durante toda essa corrida alucinada.
Estava agora à frente do navio, num corredor que, ao seu fim, tinha uma porta com apenas duas janelas circulares. Do outro lado do vidro, era possível ver o céu azul e um pedaço do mar. Aquela era o salão de jantar, localizado abaixo do andar dos dormitórios.
Mesmo aquela vista privilegiada do horizonte adiante não acalmaria os nervos do detetive, mas lá ainda era o único local pelo qual seu olhar afiado não fizera uma vistoria.
Seria uma mentira dizer que havia esperança em sua atitude. Já andava desleixado como se fosse o único ser humano vivo na face da Terra, capaz até de se despir caso a roupa persistisse em manter o corpo superaquecido.
Entretanto, bastou uma rápida visualização do salão pelas janelas para que sua atitude fosse da água para o vinho.
Os olhos arregalaram e ele despencou, ficando com um dos joelhos apoiados no chão enquanto o outro servia de base para apoiar o braço que segurava a arma.
“E-ELE! É ELE!!!” Organizou os pensamentos da forma que pôde.
Lentamente, ele empurrou a porta que dava para o ambiente, ato que passou despercebido (de alguma forma) pela figura que se sentava em uma das mesas do salão.
Um homem de pele negra e cabelos prateados se aconchegava solitariamente numa mesa com lugar para três. Estava de lado em consideração à porta do salão, mas seu olhar pesado se direcionava para o além mar à frente. A roupa não era nada em especial, algo que qualquer civil com estilo o suficiente poderia vestir.
Na mesa, entretanto, havia um item curioso. Uma maleta de metal estava deitada ali, com uma algema que ligava sua alça com um dos pulsos do elemento.
Precisava ser mais óbvio para dizer que havia algo importante ali?
Pelo o que pareceu ser horas, Hector encarou aquela figura fixamente ao passo que suas lembranças faziam o trabalho de perícia.
Voltando aos eventos recentes no laboratório da FESOL, teve a oportunidade de ver coisas muito além que mapas de Solum.
Aquele homem era idêntico ao da ficha que visualizara no local! Em várias das características, ele seria apenas mais um cidadão comum, mas o que lhe denunciava era não apenas o colar em seu pescoço, mas também a cor incomum de seu cabelo.
Prateado. Não era branco, como os de alguém que passava pela transição entre 2° e 3° idade, mas algo além disso. A prata era um metal que ainda sofria oxidação, apesar desse problema ser facilmente resolvido, mas a tal que se projetava nos cabelos daquele homem era inexpugnável até pelo próprio tempo! Uma visão hipnotizante, para dizer o mínimo.
“É ele! O Sarmatiano que o Victor estava procurando! Guto Romanov!!”
Se pudesse, ele obviamente ligaria para o colega imediatamente, mas nem em sonhos isso seria possível agora.
Sua única e mais clara alternativa fora erguer a arma até a altura de sua cabeça e, confiando em sua habilidade, passar pela fresta da porta.
Tal como uma sombra, ele se projetou para dentro do salão. Guto manteve o olhar desviado. Ele se levantou e apontou para o homem. Ele mantinha-se distraído.
“Ele realmente não tá me vendo?”, considerou enquanto as mãos tremiam. “Eu tenho que aproveitar isso!”
Por mais violento que Hector fosse, ele ainda tinha — em algum canto de seu coração — o mínimo de empatia com o próximo. Portanto, se fosse para dar um fim à vida de alguém, que fosse com uma morte instantânea.
Aproximou-se a passos lentos, o bastante para que fossem inaudíveis até para um cachorro. O único problema era seu coração, cujas batidas aumentavam ao ponto de se assemelharem com um tambor de guerra à medida que se aproximava do alvo.
Com tamanha facilidade, o detetive considerou agradecer Yellow em sua mente pela primeira vezes por ter lhe dado a habilidade do Informante, mas não quis agraciar o demônio nem com isso.
Agora parecia uma tartaruga andando, a diferença era que estava armado. (Será que era isso o necessário para ser uma tartaruga ninja?)
Cada passo era um batida do tambor em seu peito, um ritmo tão bem sincronizado que fez-lhe acreditar que o próprio coração cessaria os batimentos se parasse de andar.
Mas enfim, ele alcançou. Hector se colocou bem ao lado da mesa, a centímetros de seu tão sonhado alvo. Ele ouvia não apenas a sua respiração, como a de Guto também. E diferente da sua, o pesar que se expelia a cada esvair de seus pulmões carregava algo diferente da tensão que acompanhava Hector.
“Apenas morre de uma vez, colega.” Apontou a arma para a cabeça do elemento, quase encostando o cano.
Com a arma já destravada desde o início, o único movimento que Hector precisou realizar no momento foi colocar o dedo sobre o gatilho. Assim que o fez, franziu o cenho fortemente, inflou os pulmões como balões e…
!! Uma mão agarrou seu braço com força. Os olhos saltaram das órbitas e um resmungo de surpresa foi travado na garganta graças ao punho que desceu contra seu rosto.
SEU… PORRA!!! Saltou para trás na ideia de não cair no chão. Sangue escorria por entre seus lábios, mas não sentia que havia mordido a língua, o que já era um bom sinal. Então, ele encarou aquele que lhe dera o golpe.
Romanov havia se levantado da mesa repentinamente. Seu rosto, antes límpido e isento de emoções, agora se igualava perfeitamente com o de Hector. Suor frio despencava pela testa e encharcava-lhe a roupa, os olhos miravam o detetive em esplêndida estupefação e a mão que havia desferido o golpe tremia como se estivesse congelando.
Por um breve momento, eles se encararam, só então capazes de processar aquela situação.
“Como ele me percebeu! Não era pra acontecer!!”
Ele queria a resposta, mas não havia tempo para adquiri-la. O Amuleto das Formas começou a brilhar, e ao mesmo passo, Hector apontou sua arma para Guto!
BANG!
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